segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

[Novel] No. 6 Volume 2 Capítulo 5

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Capítulo 5: Perigo oculto

No primeiro dia, todos apontavam para seus países. No terceiro ou quarto dia estávamos apontando para os nossos continentes. Ao quinto dia, víamos apenas uma Terra.
- Sultan bin Salman Al-Saud, astronauta

Depois que Shion havia acabado de ler o livro de imagens, Karan deu um suspiro de satisfação.

"Foi uma boa história."

Rico abriu suas narinas mal-humorado. Ele brincou com os curativos recém mudados em seu pescoço e reclamou.

"Bem, eu não acho que foi bom. Histórias sobre coelhos são chatas."

"Então, que tipo de história que você quer ouvir, Rico?" Shion perguntou.

"Ummmm..." Rico parou por um momento de reflexão. "Ah, uma história sobre o pão. E... e uma sobre sopa e batatas doce fritas."

"Você deve estar com fome, Rico."

Karan virou-se para Shion e assentiu.

"Ele está com fome o tempo todo. Rico fica mais com fome do que qualquer outra pessoa."

"Só um minuto, então. Eu acho que tenho um pouco de sopa..." Havia sopa sobrando para ele? Uma tigela de sopa que poderia saciar o estômago vazio de Rico por um curto tempo...

Karan se levantou.

"Não, obrigado. Está tudo bem. Temos de ir para casa agora." Ela levou o seu irmão mais novo pela mão e foi até a porta. Ela parou, virou-se e falou em voz baixa. "Obrigado por ler para gente."

"Vocês são muito bem-vindos."

"Podemos vir amanhã de novo?"

"É claro."

"Ok". Um sorriso se espalhou pelo rosto Karan, e ela meio que arrastou Rico para fora. Nezumi se esticou na sombra de uma pilha de livros.

"Estúpido como sempre, não é?"

"Estúpido? Eu?"

"Dizem que os maiores idiotas são aqueles que não percebem que são idiotas. Acho que tinha um provérbio assim." Nezumi se levantou, e colocou o pano de super fibra em seu pescoço. "Você tentou ajudar as crianças. Você tentou dar-lhes resto de sopa."

"Isso é uma coisa estúpida de se fazer?"

"Essas crianças vieram aqui para que você lesse para elas, não vieram para mendigar. Se você pudesse garantir que Rico nunca fosse morrer de fome de novo, seria bom e legal. Mas se você lhe der sobras de sopa um dia por capricho, o que vai fazer da próxima vez que ele morrer de fome? Você não seria capaz de cuidar dele o tempo todo. Se você estiver indo ser irresponsável e for abandoná-lo no meio do caminho, seria melhor que não desse nada a ele em primeiro lugar. Karan tem uma ideia melhor de como as coisas funcionam. Essa menina é brilhante e digna. Ela soube recusar a sua caridade meio-sentimental e imprudente."

Shion se afundou em uma cadeira. As palavras de Nezumi sempre lhe infligia dor. Parecia que sua pele estava sendo arrancada de seu corpo. Ele quase podia ouvir o som de sua carne sendo rasgada por ele. Sua idiotice, sua arrogância, sua negligência. Sua vaidade fora despojada dele, ele fora deixado nu: superficial e pretensioso ― seu verdadeiro eu. Nezumi caminhou à sua frente e continuou a falar enquanto colocava um par de luvas.

"Há um segundo exemplo de sua estupidez. Quer ouvir?"

"Claro. Diga-me."

"Você fez uma promessa para amanhã."

"Há algo de errado nisso?"

"Não há nenhuma garantia de que vai haver um amanhã."

Shion respirou fundo.

"Então você está dizendo que eu não posso ter certeza de que eu vou estar vivo amanhã para ler um livro para essas crianças?"

"É. Veja, você está começando a pegar as coisas mais rapidamente. Você está na lista de procurados da Secretaria, e saiu vagando ontem. Eu não ficaria surpreso se os satélites de rastreamento já te pegaram. Talvez os caras que não têm nada melhor para fazer na divisória da aplicação da Lei da Secretaria de Segurança estejam vindo para cá agora. Se estiverem, então você pode esquecer de ter um amanhã de leitura. Na melhor das hipóteses você estaria em uma cela solitária na Unidade Correcional, na pior das hipóteses, você não iria nem mesmo ser capaz de falar, porque estaria morto".

Shion estava olhando para as mãos cobertas palas luvas de couro de Nezumi. Mesmo quando ele estava falando cruelmente, seus movimentos ainda eram graciosos. Shion queria imitá-lo se pudesse.

"O que?" Disse Nezumi. "Você está no espaço de novo."

"Ah... oh, me desculpe."

"Você realmente não tem noção do perigo, não é? Acho que até um gamo recém-nascido seria mais cauteloso do que você."

"Nezumi".

"Eu não quero ouvir isso", disse ele abruptamente. "Eu estou indo trabalhar."

"Será que as autoridades da cidade realmente têm a intenção de me prender?"

Nezumi parou.

"Este lugar é ao lado da Nº 6", Shion continuou. "Se eles realmente se propuseram para me pegar, não seria difícil para eles, de qualquer modo... não, não só a mim. Você também é um VC foragido, não é? E, ao contrário de mim, você saiu andando lá fora o tempo todo. Os satélites de rastreamento na Nº 6 são capazes de manter a vigilância detalhada em um local em sua órbita estacionária".

"Uh-huh, então?"

"Então, eu estou querendo saber o porquê. As autoridades não estão sérias em tentar nos pegar. Eles certamente não ficaram desesperados com isso, para dizer o mínimo."

Nezumi encolheu os ombros.

"Shion, de ambas as formas, boas e más, a cidade em que você nasceu não está interessada nas coisas fora dela. Para eles, tudo é completo dentro daquelas paredes. O Bloco Ocidental é a sua lata de lixo. Aqui, eles jogam fora os seus resíduos, suas pus. Se você é pus a eles, provavelmente acham que o Bloco Ocidental é um lugar apropriado para você. Eles apertaram o pus para fora de seu ferimento minúsculo e jogaram no lixo. Eles não vão voltar procurando por isso."

"Então, eu estaria seguro enquanto estivesse aqui."

"Quem sabe? Provavelmente as coisas não irão muito bem, mas há uma chance de você ficar seguro... Você disse que queria continuar a viver aqui, não disse? Talvez o seu sonho vá se realizar."

"Até a primavera, pelo menos."

Ele tinha uma moradia até a primavera. Uma vez que a primavera chegasse, e as vespas entrassem em seu período de atividade, o que aconteceria no interior da Cidade Santa? Será que as vespas parasitas varreriam a cidade com seu medo? Ele tinha que fazer algo antes que ficasse mais quente, antes que a primavera chegasse. Ele tinha que bolar um plano antes que terminasse o inverno.

"As vespas comedoras de gente finalmente se mostraram", disse Nezumi alegremente. "Você deve apenas sentar e assistir. Vai ser um palco interessante para ver o que acontece na Nº 6. Nossa vespa será a estrela do palco. Uma tragédia como nenhuma outra, ou uma comédia como nenhuma outra. Eu me pergunto o que vai ser?"

"Minha mãe ainda está dentro daquela cidade. Eu não posso parar e ficar olhando."

"O que, você está pensando em ir para casa?"

"Uma vez, antes da primavera chegar. Vou ver se consigo fazer um soro sanguíneo então."

"Usando o seu próprio sangue?"

"É. Seria impossível fazer um perfeito, claro, mas vale a pena tentar."

"Ei, você pode ser um gênio, mas o que você pode fazer sem frascos e seringas? Você com certeza não poderá obtê-los aqui."

"Eu vou tentar pedir a Rikiga-san. Talvez ele possa conseguir pelo menos o mínimo de equipamento de que vou precisar."

"O homem não vai fazer nada a menos que ele coloque dinheiro no bolso", Nezumi disse categoricamente. "Você pode ser o filho de uma garota que ele amava, mas tentar convencê-lo a fazer o trabalho de graça, e ele vai dar a volta tão rápido quanto qualquer coisa."

"Você acha?" Shion disse com dúvida. "Mas nós ainda vamos precisar de um soro. Sim, eu vou dizer a ele que se tudo der certo, ele poderá ganhar um pouco dinheiro com isso. Vou convencê-lo de algum mo..."

Os pés de Nezumi se moveram. Shion, com cadeira e tudo, saiu voando pelo chão. Uma pilha de livros caiu. Os ratos saíram correndo.

"O que foi isso?" Ele tentou se levantar. Antes que Shion pudesse se mover, o joelho de Nezumi estava em seu peito, e sua mão estava segurando seu ombro para baixo.

"Shion". Olhando para o rosto de Shion enquanto ele estava deitado de costas, Nezumi moveu os dedos do ombro Shion para sua garganta. Através do couro de suas luvas, Shion podia sentir a sensação de cinco dedos em seu pescoço. Eles começaram a apertar lentamente.

"Você não vai resistir?"

"Não. Não ia adiantar nada. E você concorda", Shion disse calmamente.

"Desiste muito facilmente, hein? Não se preocupa com a sua vida?"

"É claro que sim."

"Ou você está pensando que eu nunca te mataria?"

"Sim".

Nezumi sorriu. Seus olhos cinzentos, seus lábios finos e seu nariz bem definido formaram um sorriso bonito, mas cruel e impiedoso.

"Não pense muito bem de si mesmo", ele disse suavemente. Uma faca apareceu na mão de Nezumi, como se por magia. "Lembro-me de fazer algo assim há quatro anos também. Eu estava te segurando bem assim em sua cama."

"Eu também me lembro", disse Shion. "Naquela época, fui eu quem se lançou em direção a você. Você se esquivou como se fosse nada, e no momento seguinte, você estava me prendendo e eu não conseguia nem me mover."

Naquela noite tempestuosa. Lembrou-se do vento uivando fora de sua janela. Lembrou-se da sensação de corpo magro de Nezumi, febril e quente. Fazia quatro anos desde então.

Já faz quatro anos, e eu ainda não tenho nem a habilidade e nem o coração para empurrar este corpo de lado.

"Naquela época, eu estava segurando uma colher. E eu disse ― você se lembra? ― Que, se isso fosse uma faca, você estaria morto."

"Sim".

"Quer tentar?" Seus dedos se afastaram da garganta de Shion. Em seu lugar, a lâmina de uma faca foi empurrada sob seu queixo. Estava frio. Shion sentiu uma pontada de dor.

"Eu não vou deixar você fazer um soro sanguíneo", Nezumi sussurrou. "Eu não te salvei para que você pudesse sair por aí fazendo algo assim. Mantenha seu nariz fora das coisas que não são da sua conta. Fique escondido aqui até chegar a hora."

"Até chegar a hora? Quando é que vai ser?"

"Quando eu atacar Nº 6 com o seu golpe fatal, é nesse momento."

"Quando você atacar Nº 6..."

"É. Vou sufocá-la até o último suspiro."

O peso se levantou do peito de Shion. Nezumi guardou sua faca, e limpou o sorriso cruel de seu rosto. Ele tirou uma luva, e acariciou Shion sob o queixo com o dedo nu. Uma pequena mancha vermelha saiu na ponta de seu dedo.

"Este é o seu sangue. Nem pense em fazer algo tolo como um soro. Conserve isso para que se possa fazer um melhor uso."

"Nezumi". Shion agarrou seu pulso. "Por que você detesta tanto a Nº 6?"

Não houve resposta.

"O que aconteceu entre você e Nº 6? Por que você tem tanto ódio por ela?"

Nezumi exalou brevemente. Os músculos de seu pulso flexionaram.

"Shion, você ainda não entendeu que tipo de lugar é a Nº 6? Ela suga os nutrientes dos lugares ao seu redor, e enquanto eles crescem magros, ela só fica mais inchada. É uma horrível..."

"Cidade Parasita".

"É. Então você sabe o que eu estou falando. A humanidade está tendo mais e mais a intenção de expulsar organismos parasitas. O que eu estou fazendo é a mesma coisa. Vou exterminar e limpar a Nº 6 da face da terra. Uma vez que o lugar se for, as pessoas aqui não terão mais de viver em uma lata de lixo."

"Mas o que eu quero ouvir é a sua razão pessoal", Shion persistiu.

"Eu não tenho uma."

"Você está mentindo. Foi você quem me disse apenas para lutar por mim mesmo."

Nezumi ficou em silêncio e encolheu os ombros.

"Seria vingança?"

Silêncio. Nezumi nem mesmo se incomodou de tirar o pulso de Shion, e olhou para ele no momento em que eles ficaram cara-a-cara.

"Você quer se vingar de Nº 6? Se você quer... então o que aconteceu?"

"Eu não preciso te dizer."

"Eu quero ouvir isso." Shion cerrou os dedos ao redor do pulso de Nezumi. "Eu quero saber, Nezumi".

De repente, Nezumi começou a rir. Parecia uma risada que era genuinamente cheia de alegria.

"Nossa, você é como um pirralho fazendo uma birra. Certo, Shion."

"Mm-hmm?"

"Se eu te contar, você vai cooperar comigo?"

"Hein?"

"Quer me ajudar quando eu esfaquear o coração da cidade em que você nasceu e cresceu? Você me ajudaria a trazer destruição ― não a salvação ― para a cidade? Eu não preciso de qualquer soro sanguíneo. Se as vespas parasitas existem, então vou usá-las. quero causar estragos dentro da Nº 6. Quero ver as pessoas que sempre viveram em segurança caírem em pânico, fugirem em confusão, e se levarem a destruição. Esse é o tipo de coisa que eu tenho em mente. Você vai me ajudar, Shion?"

Shion balançou a cabeça de um lado para o outro. Ele baixou o olhar do par de olhos cinzentos.

"Eu não posso fazer isso."

Os dedos de Shion foram sacudidos.

"Você é sempre assim," Nezumi cuspiu. "Você sempre diz que quer saber, mas nunca está preparado para lidar com isso. Saber significa estar preparado para saber. Depois de descobrir a verdade, não há como voltar atrás. Você não pode voltar a ser da maneira que era, feliz e despreocupado. Porque você não pode entender isso? Shion, deixe-me fazer outra pergunta."

Nezumi agachou-se, e enganchou um dedo sob o queixo de Shion.

"Eu ou a Nº 6 - qual você escolhe?"

A respiração de Shion ficou presa na garganta. Ele sabia que seria confrontado com esta decisão um dia. Ele sentiu que ia acontecer.

O que ele deveria escolher? Se ele escolhesse um, perderia o outro. Ele não queria voltar para Nº 6. Nesse sentido, ele não tinha qualquer laço deixado por aquela cidade. Mas com as pessoas, era diferente. Sua mãe, e Safu, que estava em outra cidade agora, e os moradores da Cidade Perdida estavam todos dentro daquelas paredes. Dentro daquelas paredes tinha um cenário familiar e boas lembranças.

Se Nezumi nutria ódio da Nº 6 inteira, de seu povo, da paisagem, das memórias e de tudo mais, então ele não poderia simpatizar com aquele ódio.

Os dedos de Nezumi se retiraram de seu queixo.

"Você ama a Nº 6, e eu a odeio. É por isso que, um dia, vamos ser inimigos."

Foi um murmúrio. Um murmúrio que esfaqueou seu coração.

"Eu tenho a sensação de que vamos", Nezumi disse calmamente.

Ele havia dito algo semelhante antes. Naquela vez, também, Shion tinha dito que ele queria saber. Ele queria saber como Nezumi cresceu. Eu quero saber sobre você, tinha dito. E agora ele estava recebendo a mesma resposta que recebeu naquele momento. Nós vamos ser inimigos. Mas naquela época, ainda havia riso nos olhos de Nezumi, e sua voz era leve com tom de brincadeira. Mas agora, estava pesada. Uma escuridão pairava sobre a declaração, esta realidade pesada afundou ainda mais em Shion. Era a resposta honesta de Nezumi.

Algum dia, nós vamos ser inimigos.

Nezumi se levantou, e olhou para o relógio na parede.

"Merda, estou atrasado", disse ele a si mesmo. "O gerente provavelmente está irritado." Ele virou as costas para Shion. Sua voz e seus olhos se limparam de qualquer sombra de intenção homicida. Seus olhos cinzentos brilhavam, e seu tom de voz era casual.

"Nezumi".

"Sim, sim", disse Nezumi despreocupadamente. "Mamãe vai trabalhar agora. Cordeirinho, você estará no comando da casa enquanto eu estiver fora. Um lobo assustador vai passar por aqui, mas faça o que fizer, você não tem permissão para abrir a porta. Ok? "

"Não me subestime", Shion disse calmamente.

A expressão de Nezumi endureceu. Ele virou um pouco o rosto para trás, e franziu testa.

"O que você acabou de dizer?"

"Eu disse, não me subestime tanto."

"Você está ofendido porque eu te chamei de cordeirinho? Então é porque eu não posso lhe dar o papel da Chapeuzinho Vermelho? A bonita e inocente Chapeuzinho Vermelho. Alheia às dúvidas e ao cuidado, ela acaba sendo comida pelo lobo. Um papel perfeito para você. "

Eu não vou ser provocado. Você pode me condescender tudo o que você gosta. Mas tenho algo que preciso te dizer.

"Às vezes há coisas que eu posso ver e que você não pode."

"Eu não entendo o que você está dizendo", Nezumi disse sem rodeios. "Oh, espere, supõe-se ser a sua frase habitual, certo?"

"Você coloca tudo em dicotomias", Shion continuou, ignorando o comentário de Nezumi. "Você ama ou você odeia. Você é amigo ou inimigo. Fora da parede, ou dentro da parede. E você sempre diz que só se pode escolher um deles."

"É claro. Se eu estivesse na bifurcação da estrada perdendo tempo tentando decidir o que fazer, eu murcharia. Isso é o que covardes e traidores fazem. Você não pode fugir para sempre. Algum dia você vai ter de escolher um ou outro."

"Você não acha que poderia haver uma terceira via?"

"Terceira via?"

"Sim".

"Shion, o que você está dizendo é incompreensível", Nezumi disse irritado. "Que 'terceira via'?"

"Ao invés de destruir Nº 6, e se você a fizesse desaparecer? Você já pensou sobre isso?"

Nezumi colocou a mão em sua bochecha, e respirou fundo. Ele estava tentando não mostrar seu rosto, mas Shion podia dizer que ele estava agitado. Shion deu um passo adiante.

"Derrube as paredes. Livre-se delas."

"Você quer dizer as barreiras de Nº 6?"

"Sim. Sem suas paredes, Nº 6 em si não irá mais existir. Todo mundo poderá ir e vir livremente. Tire os muros e portões. Então não haverá nada dividindo Nº 6 e os Blocos um do outro, e..."

Nezumi se estourou em risadas. Ele se inclinou, segurando o estômago. Seu riso oco ecoou na sala do porão. Os ratos se amontoaram com medo e se enrolaram em bolas, tornando-os menores ainda.

"Isso tem tanta graça assim para você?" Shion disse tenso.

"É hilário. Isso é tão engraçado, que está me fazendo lacrimejar. Você não é apenas um pouco cabeça de vento, não é? Você também tem tendências ilusórias? Qual terceiro caminho, hein? São apenas palavras bonitas, um conto de fadas irreal."

"Nezumi, eu estava falando sério quando eu disse..."

"Não quero ouvir nada disso." Não havia resquícios de sorriso deixados em seu rosto quando Nezumi disse essas palavras. "Ainda não podemos fazer esse lugar desaparecer tão facilmente. Temos que deixá-lo continuar do jeito que está, deixe-o se vestir e encher a barriga com boa comida, deixe-o crescer gordo. Posso apenas imaginar o quão grande que deve sentir para cortar a barriga aberta com um golpe. Vou tirar todas as suas entranhas empanturradas e expô-la à luz. Eu não posso esperar. Sim, a primavera vai ser grande. Estou bastante animado."

Shion ergueu o queixo, e apertou as mãos em punhos em seus lados.

"Eu não me importo se você rir de mim, eu ainda acho que pode ser feito", disse ele em um tom desafiador. "Eu quero acreditar que é possível."

"Você está apenas procurando por uma rota de fuga", Nezumi atirou de volta. "Você está procurando uma maneira para evitar se machucar. Diga o que vai acontecer se você se livrar dos muros: você não vai obter algum tipo de céu. Vai ser um inferno. Tumulto, desordem, brigas, saques... você não sabe o quanto essas pessoas têm sido oprimidas até agora. Você não sabe quantas pessoas foram sacrificadas para que essa cidade estivesse onde ela está. Você não sabe, e é por isso que você pode inventar contos de fadas como esse. Shion, não pode ser feito. Não é como uma mistura de tintas, você não pode misturá-los e fazer-lhes um. Um vai ter que destruir o outro, essa é a única solução. Isso foi o que o destino definiu. Amor e ódio, amigos e inimigos, aqueles dentro e aqueles fora da parede... e você e eu. Eles nunca poderão ser como um, e nós também não."

"Você não sabe até tentar. De uma coisa..."

"De uma coisa?"

"...Eu sei, que não me tornarei seu inimigo. Nunca. Aconteça o que acontecer, mesmo se eu fosse morto, eu estaria do seu lado."

"Apenas palavras bonitas."

"É a minha decisão."

Era a sua vontade, e era inabalável. Para saber, você tinha de experimentar primeiro. Ele acreditava que as almas humanas, quando confrontadas com um dilema, acabariam por escolher a paz antes da guerra, canções e escrituras antes das armas e o amor antes do ódio. Não era uma fantasia. Era esperança. Ainda não abandonei a esperança. Eu quero encontrar uma estrada que você não pode ver, e apontá-la para você.

Nezumi desviou o olhar. Ele chutou a perna da cadeira, com a ponta do sapato.

"Fico fora do sério às vezes quando eu estou com você. Sua cabeça está cheia de teorias ingênuas e idealistas, e você fala como se fosse realmente sério."

"Você não me ouviria se eu não estivesse falando sério."

"Já basta", disse Nezumi secamente. "Cale-se". Ele começou a colocar de volta no lugar a cadeira que tinha chutado antes, e bateu levemente na almofada desbotada da poltrona. "Um teórico idealista de poltrona como você deveria ficar somente aqui o dia inteiro. Ignorar o mundo lá fora, e meditar sobre isto e aquilo tudo dentro da sua cabeça. Não fale mais comigo. Não me faça ficar mais irritado do que isso."

"Nezumi" Começou Shion.

"Eu não quero ouvir isso. Ouvir você me deixa doente. Doente e cansado. Droga, se eu soubesse que você era tão tagarela, eu nunca teria te trazido aqui em primeiro lugar."

"Eu não sou um tagarela. Eu na verdade nem gosto de falar muito com as pessoas".

"Então, mais uma razão para você calar a boca."

Mas eu não posso somente calar a boca. Eu não posso sentar aqui, me fechar em meu próprio mundo e me isolar do mundo exterior. Eu tenho que falar com você, ouvir a sua história, e buscar uma maneira para que possamos continuar vivendo juntos.

Eu não quero mais viver assim ― tapando meus ouvidos, mantendo minha boca fechada, fechando meus olhos. Nezumi, foi você quem fez me sentir assim. Coloque suas mãos longe de seus ouvidos, você disse, abra a sua boca, e deixe os seus olhos verem. Essas foram as suas palavras. E agora você está me dizendo para calar a boca? Você está me dizendo que não quer ouvir?

"Quem é o covarde agora?" Ele resmungou em voz alta sem pensar. A expressão de Nezumi endureceu.

"O que você disse?"

Isto irá acabar em uma luta? O pensamento passou rapidamente em um canto da sua mente. Então ele decidiu que não se importaria. Se lutassem, Nezumi o levaria facilmente para o chão. De quatro anos atrás até agora, isso não havia mudado. Shion não tinha nenhuma chance contra ele. Mas não se tratava de ganhar ou perder.

Ele queria cobrar de Nezumi com seu próprio corpo, com sua própria carne. Ele não se importaria se ele fosse empurrado para o chão, perfurado, ou preso para que ele não conseguisse respirar. Mesmo por um momento, ele queria colidir com Nezumi como iguais.

Mas Nezumi desviou seu olhar novamente. Ele foi para a porta, sem sequer olhar para Shion. Mas antes que a mão de Nezumi se fechasse em torno da maçaneta, apareceu um som abafado de arranhões do lado de fora. Algo estava arranhando a porta. Um momento depois, houve um latido. Nezumi e Shion se entreolharam.

"Soa como um cão."

Nezumi abriu a porta. Um grande cão marrom escuro estava sentado na soleira da porta, abanando o rabo. Ele tinha um embrulho branco em sua boca.

"Você é de Inukashi... aconteceu alguma coisa?" Nezumi pegou o pacote da boca do cão. Era uma carta. Nezumi a leu e os cantos de sua boca se relaxaram.

"Shion, há uma solicitação de emprego para você."

Shion correu os olhos pela carta que foi passada para ele. Estava quase ilegível. O papel em si era amarelado, velho e molhado com saliva de cachorro, e a caligrafia serpenteava em todo o lugar. Mas emocionou o coração de Shion mais do que qualquer outra carta que havia recebido.

ei Shion, com vontade de trabalhar? é um emprego de lavagem de cães. eu preciso de ajuda. se você quiser fazer isso, siga esse garoto. enquanto ele estiver com você, os Faxineiros não vão fazer nada engraçado. nos vemos mais tarde

Oh PS:esse garoto disse que você foi feito para lavar cães

"O que é lavagem de cães?"

"É como se lê. Você lava cães... os que Inukashi empresta para o aquecimento. São os grandes e tranquilos com pêlo longo. Deve haver cerca de vinte deles ao todo. Inukashi tem clientes que às vezes não pagam porque eles se queixam de que os cães são malcheirosos ou têm pulgas, por isso uma vez por semana em um dia ensolarado, tem que levá-los para uma lavagem. Então o que você vai fazer?"

"Eu vou, é claro", Shion brilhava. "Ele está me perguntando se eu quero ir trabalhar. É o meu primeiro emprego. Eu tenho um emprego agora."

"Você quer parar de transbordar?" Nezumi disse com uma careta. "Cara, você é realmente fácil de agradar, não é?"

"Nezumi, devo levar alguma coisa comigo? Você acha que eu vou precisar de sabão?"

"Você provavelmente não vai precisar de nada. Só cuidado com homens e mulheres que podem te puxar para os becos, eu acho. Se esse cachorro estiver contigo, creio que você não precisa se preocupar. Eu vou com você até metade do caminho."

"Falando nisso, eu quero ver o lugar onde você trabalha um dia. E ver você no palco."

"Não tenha muitas esperanças."

O cão latiu.

"Obrigado", Shion disse à ele. "Graças a você, eu fui capaz de conseguir o meu primeiro emprego. Eu sou todo seu, me leve até lá."

O cão abanou a cauda quando Shion se agachou para ele, e lambeu-lhe a garganta.

"Você está lambendo minha ferida para mim? Você é um bom garoto."

"Imbecil, ele só te lambeu porque sentiu cheiro de sangue".

"Eu não penso assim. Ele fez isso porque estava preocupado comigo. Mas qualquer que seja o motivo, ele é certamente melhor que você", Shion disse ironicamente.

"Não me compare com um vira-lata", disse Nezumi duramente. Ele parecia genuinamente descontente. A maneira como ele franziu os lábios trouxe de volta uma imagem fugaz de seu rosto há quatro anos. De alguma forma isso fez Shion ter vontade de rir, e por alguma razão, o fez se sentir nostálgico.

"O que?" disse Nezumi. "Do que você está rindo"

"Nada", Shion disse suavemente. "Só percebi que ainda tem uma parte infantil restando em você. Isso me fez meio que feliz."

"Hein?"

"Não importa. Certo, então", ele disse rapidamente, "mostre o caminho." Ele acariciou o cão de leve na parte de trás. Pegando a deixa, o cão subiu as escadas. Shion o seguiu e saiu do porão.

O sol brilhava em seus olhos. Vejamos... Um dia como este seria perfeito para lavar cachorros. Ele inclinou o rosto para o céu e respirou profundamente.

Parecia que a figura de Shion estava sendo sugado para a luz. Quando Nezumi se arrastava para fora do buraco escuro a luz sempre esfaqueava seus olhos. Ele não gostava de locais iluminados. Lugares cheios de luz sempre se transformavam facilmente em áreas de perigo. Ele sabia disso muito bem por experiência. Ele não podia ser como Shion e aceitar plenamente a luz sem hesitação.

Amigos e inimigos. Fora da parede e dentro da parede. Amor e ódio. Luz e escuridão.

Eu te disse, não disse? Eles nunca poderão se coexistir. Eu já lhe disse tantas vezes, e você ainda parece não entender.

Ele engoliu um suspiro que estava a meio caminho de sua garganta. O nó se afundou profundamente em seu peito novamente.

Quando Nezumi estava prestes a fechar a porta, um rato apareceu em seu pé.

"Você está de volta." Ele o pegou na mão. O rato parecia exausto. Seus olhos cor de uva estavam embaçados.

"Você trabalhou duro. Descanse." O rato balançou a cabeça e cuspiu uma cápsula na palma de Nezumi. Havia um pedaço de papel azul claro dentro.

"Uma resposta, hein." Se fosse, Shion iria se alegrar. Hoje deve ser um dia de sorte para cartas.

Por um instante, uma escuridão cruzou seu coração. Uma coisa negra. Não tinha forma era só escuridão. Incerteza, um mau pressentimento. Uma dor incômoda pulsava na parte de trás de sua cabeça.

Sua habilidade de sentir o cheiro de perigo iminente ou da calamidade era algo que ele tinha desde o nascimento. Graças a esta habilidade, ele foi capaz de escapar várias vezes, em alguns casos por um triz. O conteúdo desta cápsula carregava um mau cheiro. Cheirava como o primeiro passo em direção a algo que iria levá-lo à destruição...

Abriu a cápsula. O papel estava escrito com o que parecia ser a escrita de Karan.

Safu foi pega pela Secretaria de Segurança. Ajuda. -K

A dor piorou. Nezumi apertou os olhos fechados, e se apoiou pesadamente contra a porta.

Safu era aquela garota. Porque ela ­― ela não era uma elite? Assim como Shion... assim como Shion... o que significa ― ela foi levada no lugar dele? O segundo bode expiatório? Mas ele não sabia por que razão. Porque eles precisam de um sacrifício? Shion foi enquadrado como um assassino para encobrir o que a vespa parasita fez. Eles só deveriam precisar de um agressor. Então, por que ­― por que as autoridades querem outro sacrifício? Por que...

De qualquer maneira, se essa menina é o segundo sacrifício, ela não foi levada para a Secretaria de Segurança. Ela está indo para a Unidade Correcional. Um rato leva metade de um dia para voltar da Nº 6. Não há mais tempo. Ela provavelmente já foi presa na Unidade Correcional.

Por que eles estavam eliminando tão facilmente uma estudante da Classe Privilegiada que haviam avaliado, selecionado cuidadosamente, e que gastaram fundos consideráveis ​​e tempo para sustentar?

Por quê? Por que ― o que estava acontecendo? O que eles estão escondendo? O que está para acontecer?

Nezumi se levantou lentamente.

Ele não sabia. Era um mistério. Mas agora não era o momento de resolver enigmas. Ele tinha uma decisão importante a tomar.

O que fazer com isso?

Se ele mostrasse esta nota para Shion, ele provavelmente iria direto para a Unidade Correcional, mesmo sem saber que tipo de lugar que era. Ele iria, com a única intenção de resgatar Safu. Um tolo menino como ele nunca seria capaz de deixar a morte de um amigo ser ignorada. Se ele pudesse impedir, seria motivo suficiente para ele mergulhar de cabeça em um ninho de cobras venenosas. Ele estaria disposto a embarcar para a sua própria morte.

Ou eu ignoro isso?

Era muito fácil de fazer. Esta menina, Safu, não tinha nada a ver com Nezumi. Ela era uma estranha. Não era da sua conta o que deveria acontecer com ela. Ele poderia deixar as coisas acontecerem, e não teria importância. Nada mudaria.

Mas se Shion morresse, algo dentro dele iria mudar muito. Ele não queria ver Shion morrer. Ele provavelmente iria sofrer. Não Shion, mas ele Nezumi ia sofrer, de ter que viver e estar diante do cadáver de Shion. Ele estaria experimentando o mesmo sofrimento de novo, de ser assado vivo no inferno.

Você deve estar brincando comigo. Eu já tive o suficiente disso.

Ele não queria perdê-lo. Ele não queria experimentar o remorso de ter sido o único que viveu.

Eu não quero perdê-lo? Eu iria sofrer?

Ele estava estalando a língua de frustração.

Então foi neste ponto em que ele havia chegado. Ele quase se sentiu como se estivesse se enrolando no chão.

Ele havia resgatado Shion da Secretaria de Segurança para pagar a dívida que ele lhe devia. E era só isso. Ele nunca quis ter uma ligação com ele. Shion não era o único, ele apenas nunca quis se unir ou compartilhar seu coração com qualquer outra pessoa. Sentimentos por outros eram ainda mais perigosos que a luz. Ele não era de compartilhar uma conexão com alguém. Quer seja com um homem ou uma mulher, ele deveria apenas desenvolver relações que poderiam ser cortadas facilmente.

Nunca abra o seu coração para ninguém. Não acredite em ninguém, mas em si mesmo.

As últimas palavras da velha. Ele estava indo contra elas novamente.

Eu não quero perdê-lo. Eu iria sofrer.

Nezumi cuidadosamente dobrou novamente a nota de Karan e a enfiou dentro da cápsula.

Ele estava acostumado à perda, ele estava acostumado ao sofrimento. Não era? Mesmo se Shion morresse, talvez ele não gemesse em agonia sobre sua perda escancarada. Mesmo se fizesse, talvez fosse apenas por um curto tempo.

Ele poderia usar sua cama e seu chuveiro livremente. Não teria que se preocupar em fazer sopa suficiente. Não seria bombardeado incessantemente com perguntas. Não teria que abaixar um livro para escutar outras palavras, e dar uma resposta ao tentar conter sua irritação.

Ele iria voltar à sua vida normal. E seria isso. Ele deveria apenas passar a cápsula com a nota e tudo para Shion, e depois virar as costas para ele.

Por um capricho, Nezumi abriu a porta novamente.

À frente dele estava seu quarto, cheio de livros e móveis escassos. O porão, rodeado por paredes grossas, era um ninho adequado para um rato como ele.

O quarto parecia estéril e escuro, e maior que o habitual. Seu espaço escuro, frio e vazio penetrou em seus ossos.

Isso era o que estar ligado com alguém significava. Ele não seria mais capaz de viver sozinho. Era uma das muitas armadilhas artisticamente definidas que espreitavam em cada esquina de sua vida. E para esta, ele havia sido vítima.

Será que eu ainda tenho uma chance?

"Nezumi, o que há de errado?" Shion chamou a partir do topo da escada, que levava à entrada ao nível do solo. "O cão está me apressando. Apresse-se e suba logo." Sua figura sombria flutuou contra o brilho do meio-dia.

Será que eu ainda tenho uma chance? Shion, ainda serei capaz de viver sem você? Depois de uma certa quantidade de sofrimento, eu seria capaz de me separar da armadilha que você se tornou?

Eu seria capaz de me separar de você?

"Nezumi?" A voz de cima caiu apreensiva.

"Nada... estou indo." Ele fechou a porta e ouviu o cachorro latir. Havia luz. O farfalhar de uma brisa.

Nezumi enrolou o pano de super fibra ao redor de seu pescoço novamente, e subiu as escadas, passo a passo. Ele seguiu ascendente ao chão.

Leia o volume 3 - capítulo 1

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sábado, 1 de dezembro de 2012

[Novel] No. 6 Volume 2 Capítulo 4

Oi, eu sou Goku Aki. Alguém ainda se lembra de mim? Faz muito tempo… Eu acho que perdi leitores por essa demora toda. Mas de qualquer forma, escutem leiam os meus planos para o futuro.

No site da tradução para inglês, o 9th ave, sempre havia um post todo final de semana. E quando o capítulo era muito gande, era dividido em duas partes. Bem, também tenho a intenção de fazer isso. Estarei postando aqui um capítulo todo sábado, no mais tardar domingo, e no mais tardar ainda na segunda. E se estiver muito grande e eu não conseguir terminar todo o capítulo será dividido em dois.

Só mais um detallhe: neste capítulo o nome de Nezumi estará muitas vezes se correspondendo ao seu significado. Por isso enquanto estiver lendo se lembre de que o nome de Nezumi significa rato, assim algumas partes irão fazer sentido.

Passe o mouse sobre as palavras e textos sublinhados para ver informação

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Capítulo 4: O Anjo do Inferno

Eu o amo, o amo. Ele é uma pedra em volta ao meu pescoço - ele vai me levar para o fundo junto com ele. Mas eu amo essa minha pedra - eu não posso viver sem isso.
-Chekhov "O Jardim das Cerejeiras" Ato III [1]

A menina chegou quando Karan estava prestes a fechar as cortinas da loja.

"Senhora, têm bolinhos sobrando?" Ela era uma criança adorável com um rosto redondo, provavelmente não tinha dez anos ainda.

"Estamos sem o de queijo, mas se você gosta de bolinho de passas, temos um sobrando."

"Vou querer esse, por favor."

"Tudo bem, Lili. Só um segundo." Karan pegou o bolinho que sobrara da bandeja, e o colocou em um saco com duas rosquinhas.

"As rosquinhas são uma coisinha extra."

"Obrigada, senhora." Lili deixou cair algumas moedas de cobre na mão de Karan. Ela provavelmente manteve firmemente em sua mão por todo o seu caminho até aqui, pois, embora não tivesse sangue percorrendo as moedas, elas tinham o calor de um corpo humano.

Lili espiou dentro do saco, e seu rosto brilhou enquanto observava que dentro havia duas rosquinhas inteiras.

"Você é um dos meus clientes regulares, afinal de contas, Lili. Da próxima vez, vou assar alguns bolinhos de queijo extra para você."

"Senhora, você não vai fechar esta loja, vai?" Lili levantou o rosto do saco, e questionou Karan com uma expressão sombria.

"Jamais. Por que você acha isso?"

"Mamãe disse que você poderia fechar sua loja. Mas estou feliz que não vai." Um sorriso de alívio se espalhou pelo rosto redondo. Karan agachou-se e colocou os braços ao redor da pequena cintura da menina.

"Obrigada por se preocupar comigo, Lili."

Seu corpo macio, sua presença quente ― ela era tão pequena, mas já dava a Karan o incentivo definitivo.

"Mamãe e papai estavam preocupados", disse Lili. "Eles estavam dizendo, 'o que acontecerá se não pudermos comer os pães ou os bolos da padaria de novo?'. Porque sabe, a loja de bolo de frente da estação é ruim, e cara, e desprezível", disse ela irritada.

"É?"

"Sim. Porque no outro dia, tinha um imenso bolo branco em exposição, e era como um castelo de brinquedo. E eu e Ei... Ah, você sabe quem é Ei?"

"Não, eu não."

"Ele é meu amigo. E é realmente bom em soprar bolhas. Então Ei e eu ficamos olhando juntos, porque era muito bonito."

"Então vocês dois estavam olhando para a vitrine?"

"Sim. E o velho da loja começou a gritar para nós. Ele disse, não toquem no vidro com as mãos sujas. Nós estávamos só olhando. Nós nem mesmo estávamos tocando no vidro", Lili disse indignada.

"Isso é terrível."

"Então Ei gritou de volta, e disse: 'seu velho mesquinho estúpido!" e então eu gritei para ele também, e disse: 'seu velho careca estúpido!'. E então nós dois fugimos."

Karan se viu caindo na gargalhada. Havia um tempo desde que ela tinha gargalhado. Ela beijou Lili na bochecha.

"Eu não posso fazer nada tão grande quanto um castelo, mas para o seu aniversário, Lili, eu vou assar um ótimo bolo todo branco para você."

"Sério?"

"Sério. Certifique-se de compartilhar com Ei, também."

"Obrigada, senhora", disse Lili feliz. "Eu gosto de bolo de cereja".

Bolo de Cereja – Shion também gostava.

Lili acenou com a mão, e saiu da loja. Karan a viu recuar para trás até que derreteu no crepúsculo, depois baixou as cortinas. Ela afundou-se numa cadeira.

Depois de Shion tê-la deixado, ela achava difícil suportar quando a noite se fixava em cada dia. A noite a prendia na profunda decepção de que um dia havia passado sem Shion voltar para casa. O sentimento transformado em exaustão pesada fazia parecer problemático erguer um único dedo.

"Shion..."

Às vezes um murmúrio, às vezes mudo, às vezes como se em uma conversa, às vezes chegando perto de gritar, ela se perguntou quantas vezes chamara o nome de seu filho a cada dia.

Quando soube que a Secretaria de Segurança tinha tomado Shion em custódia sob a acusação de perturbação da ordem pública e assassinato, ela pensou que iria enlouquecer.

"Por favor, esteja ciente de que você nunca se encontrará com o suspeito novamente."

A noite em que ela havia recebido a notícia por um funcionário da Secretaria de Segurança, Karan teve uma premonição de que seu filho iria morrer. Certamente ela sabia mais do que ninguém que Shion nunca iria participar de um assassinato. Mas os sentimentos de desespero de uma mãe nunca iriam passar para a Secretaria – ela sabia disso muito bem. Na Nº 6, onde a taxa de criminalidade era quase zero por cento, não havia nenhum sistema judicial. Simplesmente sendo preso e levado sob custódia pela Secretaria de Segurança confirmava o estatuto culpado do suspeito. Declarar-se culpado ou não culpado não era permitido, nem levantar uma objeção formal.

Ele já foi preso na Instituição Correcional. Logo, como um VC de primeira classe, ele iria ser condenado por toda a vida, ou, em lei especial, ser condenado à pena de morte. As palavras oficiais da Secretaria de Segurança não eram nem exageradas nem retorcidas de alguma maneira – elas eram a pura verdade. Sempre foram. A próxima vez em que esse uniforme iria aparecer em sua porta seria quando a sentença fosse proferida a seu filho. Neste momento, Karan experimentou por si mesma como o desespero parecia. Todos os sons desapareceram em torno dela, e todas as cores desbotaram. Ela não podia sentir o cheiro nem nada. A escuridão era a única coisa que ela podia ver à sua frente. Era uma escuridão negra que nunca veria a luz do amanhecer. Era isto o que as pessoas chamavam de desespero?

Eu perdi tudo.

De repente, o rosto de um homem cruzou sua mente. Se eu pedir-lhe ajuda, algo poderia ser feito? Mas a fresta de luz que havia brilhado em seu coração logo piscou e desapareceu. Não... não há tempo. Ela nem sabia onde o homem estava agora. Ela não tinha tempo para procurá-lo e implorar pela vida de seu filho.

De repente, tomada de náuseas, Karan vomitou todo o conteúdo de seu estômago. Ela se rompeu em um suor e meio que se arrastou até o armazém, e caiu na cama de Shion. A maioria dos pertences de Shion havia sido confiscada como prova pela Secretaria de Segurança. Só posso morrer também, em um canto do armazém. Eu vou fechar meus olhos, e ir de encontro a ele.

Ao invés de viver esta vida brutal, eu posso escolher a paz da morte que virá após um curto sofrimento. Eu não sou forte o suficiente para continuar a viver sozinha na escuridão.

"Cheep-cheep!"

Ela pensou ter ouvido algo chiar em seu ouvido. Provavelmente era apenas sua imaginação. Pode não ser a minha imaginação. Mas não importa, eu já estou...

Algo mordeu o lóbulo de sua orelha. Uma dor surda correu por ela. Ela levantou o torso. Um pequeno rato correu para um canto da sala de armazenamento.

O que um rato está fazendo aqui?

Ela engoliu em seco. Tocou o lóbulo da orelha, um pouco de sangue saiu em seu dedo. A Cidade Perdida poderia ser na parte mais antiga da cidade, mas ainda assim eram raros os animais, com exceção dos animais de estimação, estarem correndo por ali. Ainda mais os ratos...

"Nezumi." Seu coração bateu forte.

Nezumi. Shion não murmurou aquela palavra mais de uma vez? Enquanto estava bebendo chocolate-quente, enquanto olhava para as árvores balançando com o vento, enquanto observava o céu à noite, ele havia murmurado essa palavra. Desde aquele dia, quando haviam sido expulsos de Chronos e se mudado para a Cidade Perdida por causa daquele incidente, era o dia em que Shion foi submetido a uma investigação e recebeu um aviso severo por ajudar um VC, considerado um criminoso violento na Nº 6. Ocultar e auxiliar na fuga de um VC normalmente é classificado como um crime grave, mas com relação à sua tenra idade de 12 e seu estado emocional, ele havia sido expulso com apenas a remoção de seus privilégios especiais.

Karan, por algum motivo, não tinha um grande apego a Chronos, nem achava a sua vida na Cidade Perdida dura. Embora os outros possam ter repreendido as ações de Shion como falta de senso comum, ela foi capaz de acreditar que havia algo nos sentimentos de Shion e crenças que o levaram a fazer o que fez. Apesar de a cidade ter dado-lhe tratamento preferencial como uma criança superdotada por causa de seu nível de inteligência, talvez tivesse começado a perceber que algum lugar dentro de seu filho escolheria a emoção acima do conhecimento, e escolheria um futuro que ele pudesse criar com sua própria vontade acima de um futuro que já estava prometido a ele. Foi por isso que ela escolheu não questioná-lo muito sobre esse incidente. Mas ela lhe perguntou uma vez sobre Nezumi.

"Então o que é esse Nezumi? Quem é ele?"

"Hum?"

"É o nome de alguém, não é?" Pensou isso por causa do jeito carinhoso que seu filho dizia aquela palavra. Nostalgicamente, amorosamente, às vezes tenso... até mesmo carregado de um tom de saudade. Ele definitivamente não usaria esse tom de voz para chamar um rato normal.

"Você teve seu coração quebrado por essa pessoa?"

"Nunca. O que você está dizendo, mamãe?"

"Bem, parecia isso."

"Não, não é assim. Você entendeu tudo errado."

Foi então que Shion se tornou extraordinariamente agitado, tingiu-se de vermelho, e fazia coisas como deixar cair a colher. Sim, lembrou-se agora. Nezumi...

Ela se levantou. Seu batimento cardíaco voltou ao normal, e seu corpo sentia mais leve. A esperança, embora ela não sabia por quê, cintilou dentro dela. Ela conseguia respirar, e a força de vontade para seguir em frente reavivou dentro dela novamente.

Um pequeno rato estava enrolado ao lado de uma caixa de farinha. Fez contato visual com Karan, e virou seu rosto em torno de um amplo círculo. Ele cuspiu uma cápsula fora de sua boca. Em seguida, desapareceu no fundo da sala de armazenamento. Havia uma nota dentro da cápsula.

Shion está seguro, não se preocupe. Escapou para o Bloco Oeste. Cuidado com a vigilância da Secretaria. Respostas por este rato. Marrom traz noticias de segurança, preto traz noticias de mudanças ou ocorrências anormais. –Nezumi

A luz que cintilara nela tornou-se uma chama acesa. Ela apertou a mão firmemente sobre a boca. Sentiu que iria chorar de alegria, se já não tivesse.

Ele está vivo. Meu filho está vivo. Eu poderei vê-lo novamente.

Karan respirou, e furtivamente olhou em volta.

Se a nota era verdadeira, e Shion havia escapado vivo para o Bloco Ocidental, então esta casa, provavelmente, estava sob vigilância pesada da Secretaria. Câmeras em orifícios. Escutas de áudio. Escutas com sinal sem fio. Ela não poderia agir de forma imprudente.

Ela se moveu mais para dentro no armazém. Ao lado de uma lata de geleia, ela rabiscou em um pedaço de papel enrolado. A palavra 'Bloco Ocidental' lhe trouxe à mente uma figura nebulosa. Qual era o seu nome? Ele trabalhou para o Folheto Latch... Ele era uma boa pessoa. Ela lembrou muito dele. Talvez ele pudesse... mas...

Tinha uma quantidade infinita de coisas que ela queria dizer a Shion.

Shion, permaneça vivo. Não importa o que você fizer, permaneça vivo. Sua mãe está bem. Enquanto você estiver vivo, vou ficar bem. Então, por favor, não morra.

Mas seria de nenhuma utilidade derramar seu coração agora.

"Cheep cheep!"

O pequeno rato apareceu a seus pés. Ele contraiu os bigodes como se a apressá-la. Ela não podia ficar em um local como este por muito tempo, especialmente porque ela não sabia onde as câmeras de vigilância estavam localizadas. Ela escreveu às pressas, enrolou o papel, e jogou-o no chão. Em um instante, o pequeno rato pegou em sua boca e desapareceu.

Se eu segui-lo, ele vai me levar até o Shion?

Foi um pensamento fugaz. Ela afastou isso de sua mente, e deu um passo adiante.

Vou esperar aqui, até que meu filho volte para mim. Eu vou ficar aqui, e esperar. É uma coisa fácil de fazer. Ele está vivo, e ele está no Bloco Ocidental. Se ele estiver vivo, eu posso esperar. A esperança não foi tirada de mim. Eu não perdi ainda.

Eu não perdi? Com quem eu estou lutando, afinal?

Karan sorriu levemente para si mesma, levantou o rosto, e saiu do armazém.

Fazia quase um mês desde então. Só uma vez, um pequeno rato apareceu. Era marrom, o que significava que Shion ainda estava seguro. Ela sentiu-se aliviada, mas ao mesmo tempo, angustiada. Da próxima vez, um rato preto poderia aparecer. Não havia nada que garantia a segurança de Shion.

Ela queria vê-lo novamente. Ultimamente, havia tido sonhos frequentes. Neles, Shion ainda era jovem, e ela ficava com medo se ele não estava segurando a mão dela. Eu não vou soltar essa mão. Mas não importa quão forte ela pensava assim, a mão do menino sempre escapava da dela quando ele começava a correr à sua frente.

"Shion, espere."

Não vá lá. É perigoso por lá, há um perigo horrível...

"Shion!"

Ela acordava com seu próprio grito. Estes tipos de manhã foram contínuas durante algum tempo. Ela gemia muitas vezes com tonturas, falta de ar e dores de cabeça. Mas ainda continuava a cozer, e continuava a abrir sua loja para pessoas como Lili.

Mesmo após a notícia da prisão de Shion ter sido transmitida, as atitudes das pessoas ao seu redor não haviam mudado.

O operário de fábrica que sempre parava por lá em seu caminho do trabalho para comprar pão de passas e um sanduíche para o almoço... O estudante universitário que vinha uma vez por semana para comprar um bolo de noz... A dona-de-casa que vinha a cada manhã para comprar um pouco de pão recém-assado... Todos se alegraram por Karan estar continuando o seu negócio.

"Sempre que eu como seus bolos, Senhora, me enche de um sentimento feliz. Eu não sei por que, mas isso só me faz sentir feliz."

"Não ser capaz de comer o seu pão irá tirar toda a diversão do meu dia. É uma das coisas que eu sempre espero, por isso não tire isso de mim, Karan-san."

"Você é uma padeira, não é? É o seu trabalho cozinhar, não importa o que aconteça. Estamos todos esperando, você sabe. Todas as manhãs, todos nós esperamos o aroma do pão no forno flutuar nas ruas."

Estas e tantas outras palavras incontáveis ​​apoiaram-na. Embora elas ainda estivessem longe de serem fortes, as palavras dos outros faziam sua alma se acalmar quando ameaçava entrar em colapso por causa da angústia de não ser capaz de confirmar o bem-estar de seu filho.

Ela havia tomado emprestado seus ombros para ficar de pé, apertar os dentes, e continuar a fazer pães e bolos.

Mas as noites ainda eram insuportáveis. Se as pessoas que passavam em sua loja a caminho de casa eram jovens, era muito mais insuportável. Fazia querer derramar seu coração.

Ela afundou-se numa cadeira e cobriu o rosto com as mãos.

"Cheep-cheep!"

Ela ergueu o rosto. Sob a vitrine de vidro, um pequeno rato estava mexendo a ponta do seu nariz. Era marrom.

"Você veio."

O rato olhou em volta, em seguida, cuspiu uma cápsula de sua boca. Ela sabia instintivamente o que estaria dentro da cápsula transparente.

Mãe me desculpe. Bem e vivo.

A escrita era ligeiramente inclinada e distintiva em grande estilo. Não era nada menos do que a mão de Shion.

Mãe. As palavras tornaram-se sua voz ecoando em seus ouvidos. Agora mesmo, neste momento, seu filho vivia. Ele estava vivo quando escreveu estas palavras à sua mãe. Ele havia escrito sobre este pequeno pedaço de papel, uma mensagem com apenas algumas palavras. Mas foi o suficiente para fazer Karan chorar, não conseguia parar as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. Ela traçou as palavras repetidas vezes com os dedos.

Shion estava, provavelmente, em uma situação terrível. Ele poderia muito bem estar sofrendo na incerteza. Mas não estava em desânimo total. Sua apertada, mas energética escrita expressou isso.

Mãe, eu estou bem. Eu não estou infeliz. Eu realmente não me desesperei.

Karan enxugou as lágrimas no avental. Ela prometeu ser sua última. A próxima vez que ela iria chorar seria quando ela estivesse segurando Shion novamente em seus braços. Até aquele dia, ela não choraria mais. Desespero não mais. Eu vou fazer pão todos os dias, vendê-los, gerir o meu dinheiro, limpar minha loja, colocar fora algumas flores, e continuar vivendo. Vou fazer o meu trabalho.

"A partir de amanhã, farei mais alguns tipos de bolinhos. Eu sei, eu vou fazer disso um dia especial para crianças."

Karan acenou para suas próprias palavras, e aproximou-se do pote de vidro para tirar um rolo salgado redondo. O pão, que foi polvilhado com queijo em pó, ainda estava perfumado e saboroso, mesmo depois de ter ficado frio. Com o seu preço acessível para vender, era uma escolha popular em sua padaria. Este foi o último que ela já havia feito hoje.

"Obrigada. Muito obrigada, Sr. Nezumi." Ela tirou um pedaço e jogou-o na frente do ratinho. O rato marrom escuro olhou cautelosamente para o pão um pouco, cheirou-o, e começou a mordiscá-lo com cautela.

"O seu dono é o Nezumi? Você vai dizer-lhe que estou muito, muito grata? E, por favor, diga-lhe para vir um dia para comer um pouco. Eu vou oferecer-lhe tanto pão quanto ele puder comer. E bastante pão para você também, é claro."

Escutou batidas na porta. Não era um som ruim, ao contrário, era tranquilo, quase hesitante. Mas o coração de Karan encolheu com medo.

Ah, não. Havia a possibilidade de que esta casa agora fosse parte da rede de vigilância da Secretaria. Ela estava tão preocupada com a nota de Shion que havia se esquecido completamente disso.

É a Secretaria de Segurança? Será que eles vieram para recolher essa carta...?

Não havia sistema de segurança completo aqui como em Chronos. Não havia alarme de segurança ou câmera, nem uma tranca automática com um sensor de reconhecimento embutido. Havia apenas uma porta com um vidro fino, cortinas que a cobriam, e uma tranca manual desatualizada. Um homem forte seria capaz de forçar o caminho facilmente.

Karan amassou a nota em uma bola na mão. Se o pior veio a piorar, ela estava preparada para aguentar. A batida continuou. Ela levantou-se lentamente e apertou sua mão em um punho fechado.

"Desculpe-me." Era a voz de uma mulher jovem. "Desculpe-me... tem alguém em casa?"

A voz sumiu debilmente. Por um instante, o rosto da estudante universitária que gostava de bolo de noz subiu-lhe à mente. Mas não era ela. Karan apertou o botão para abrir as cortinas.

Além dos vidros da porta estava uma menina magra. Ela usava um casaco cinza no comprimento da coxa que parecia derreter no crepúsculo. Karan lembrou-se do rosto que olhou para cima e sorriu para ela.

"Ora, é Safu." Karan apressadamente abriu a porta. A menina entrou na loja junto com a brisa da noite, e comentou sobre o aroma saboroso. Em seguida, ela abaixou a cabeça.

"Madame, tem sido um longo tempo."

"Tem. Quantos anos faz agora? Você cresceu tão bonita. Fiquei muito surpresa."

"Eu costumava ser muito confundida com um garoto", Safu sorriu, mostrando covinhas em ambas as faces. Seu sorriso era o mesmo de antes. Como Shion, ela foi colocada no topo do ranking por sua inteligência nos exames de crianças da cidade. Ela estava estudando com ele, como uma colega de classe na turma privilegiada até a idade de 12 anos. Karan se lembrou de ter ouvido que Safu havia perdido seus pais em uma idade jovem, e estava morando com a avó.

Depois que Karan e Shion haviam sido banidos de Chronos, Safu foi a colega que continuou a tratar Shion como ela tratava antes. Ela também havia vindo a esta loja uma vez. Dessa vez, seu rosto ainda abrigava um pouco de sua inocência juvenil.

Mas Safu agora, que havia desenrolado seu lenço rosa claro, tinha a pele sedosa e uma boca suave. Mostrava os indícios da mulher bonita que ela acabou por se tornar.

"Mas você não tinha feito intercâmbio para outra cidade? Eu me lembro de ter ouvido algo assim de Shion", disse Karan.

"Eu voltei. Minha avó faleceu. Recebi a notícia não muito tempo depois que eu cheguei lá, então eu peguei as malas e voltei logo."

"Sua avó? Ah, querida..."

Esta menina perdeu o último de seus parentes de sangue.

"Safu... Eu não sei o que dizer. Eu sinto muito."

Esta menina também havia experimentado o mesmo desespero. Havia experimentado a solidão de estar sozinha em uma interminável escuridão. E ela era tão jovem.

"Existe alguma coisa que eu posso fazer? Safu, há alguma maneira em que eu possa ajudar?"

"Sim." Safu ficou na frente de Karan, e a olhou diretamente nos olhos, não o fez com pesar. Ela não estava angustiada, ou gasta em exaustão. Tinha um olhar flexível e desafiador, o tipo de olhos que só se podia ter em sua infância.

"Eu vim aqui porque eu tenho um favor a pedir-lhe, Senhora".

"O que é?"

"Por favor, me diga onde Shion está."

Karan respirou e olhou de volta para os olhos de Safu.

"Por favor, me diga," Safu persistiu. "Ele está vivo, não está? Não está preso na Instituição Correcional. Ele está vivo, onde ele está?"

Seu tom de voz estava ansiosa por uma resposta. Karan cerrou o punho mais forte em torno do pequeno pedaço de papel amassado.

"Safu, você sabe sobre Shion, então?"

"Eu só sei o que foi transmitido pela Secretaria. O que significa que eu não sei de nada. É tudo mentira, não é?"

"Safu."

"O que eles disseram sobre Shion planejar um assassinato indiscriminado cegado pelo ódio, é uma enorme mentira. Shion não estava cego, e ele não abrigava nenhum rancor em relação a ninguém."

Karan puxou a menina pela mão e levou-a para a sala de armazenamento.

"Parece que esta sala não tem câmeras de vigilância ou dispositivos de gravação. Embora eu não tenha certeza de quão seguro é..."

Os olhos de Safu brilharam.

"Se você está sendo espionada, isso significa que Shion não foi capturado, certo? Ele escapou para algum lugar, não foi? Ele conseguiu escapar com segurança, e ele ainda está lá fora vivo... Senhora, você está certa disso, não é?"

"Por que você diz isso?"

"Porque você está tão calma em relação a isso... Apenas uma olhada em você, e eu poderia dizer. Você parecia magra e cansada, mas você não tinha desistido completamente. Não era o rosto de uma mãe que perdeu seu filho."

"Estou encantada, Safu. Você seria uma excelente detetive."

"Senhora, Shion está vivo, não está? Ele está bem, certo?"

Karan continuou a prender o olhar de Safu com os lábios firmemente fechados.

Havia uma possibilidade de que Safu fora solicitada pela Secretaria de vir aqui para descobrir o paradeiro de Shion? Karan pensou por um momento. A resposta foi não. Se a Secretaria realmente tivesse essa intenção, não havia necessidade de utilizar Safu. Seria fácil o bastante extrair informações de Karan utilizando um soro da verdade.

A Secretaria realmente perseguia seu filho a sério?

O pensamento de repente passou por sua mente. Todo esse tempo ela havia sido muito influenciada pela exaustão emocional e pela confusão que sequer pensou nisso, mas se a Secretaria realmente o perseguia com todo o empenho, um jovem rapaz como ele não seria difícil de colocar na prisão. Mesmo se Shion tivesse jogado seu cartão de identificação fora, os satélites de rastreamento seriam capazes de confirmar a sua localização. Enquanto ele não permanecesse eternamente no subsolo, era quase impossível escapar dos satélites altamente refinados de rastreamento.

"Senhora".

As mãos de Safu agarraram o braço de Karan.

"Shion está fora da Nº 6, não é?"

"Sim".

"Eu sabia... mas é a única possibilidade, não é? Dentro da cidade, a vigilância seria pesada por toda parte. Seria impossível se esconder..."

"Safu, qual é a resolução da imagem de satélites de rastreamento hoje em dia?"

"Os mais novos seriam de menos de cinquenta centímetros. Eu ouvi que é possível utilizar o zoom agora enviando comandos a partir do solo. O que significa que é possível obter uma imagem de uma pessoa no nível do solo com clareza."

A menina perspicaz tinha adivinhado o pensamento de Karan. Safu suspirou, e continuou falando.

"Se eles colocassem os dados de Shion no sistema, os satélites começariam a rastreá-lo automaticamente. Se ele está acima do solo, seria impossível para ele não ser encontrado."

"Então eu me pergunto se ele está no subsolo. Ou..."

Ou será que a sua aparência mudou muito em consideração aos dados gravados – seria mesmo possível?

"Senhora... Eu acho que enquanto Shion estiver fora da cidade, ele estará seguro."

"Seguro?" Karan repetiu as palavras de Safu em questão. Ela não entendia o que Safu queria dizer.

"Eu não posso dizer ao certo. É só um palpite que eu tenho... nunca nos ensinaram a colocar as coisas como sentimentos e palpites em palavras. Mas após passar um tempo fora da cidade, eu cheguei a sentir alguma coisa..."

As palavras de Safu tornaram-se estranhas e tropeças. Ela estava desesperadamente à procura de palavras que não descreviam uma teoria, mas algo que residia dentro de si.

"Ah... Eu sinto que esta cidade é bem fechada... Como se retraísse completamente em si, dissolvesse tudo em si... e que não lhe interessa nada fora dela."

"E você está falando sobre esta cidade, aqui."

"Sim. É o que eu sinto. Então, se Shion está fora da cidade, eu acho que a Secretaria o deixará sozinho, não importa se ele é o suspeito de um crime grave. Porém, se ele voltar para a cidade provavelmente iriam prendê-lo imediatamente."

"Isso significaria que Shion nunca poderia voltar, certo?"

"Enquanto a cidade em si não sofre algum tipo de mudança, eu sinto que é assim que continuará a ser."

"Isso é uma coisa cruel de dizer, Safu."

Safu balançou a cabeça, e agarrou o braço de Karan novamente.

"Senhora, onde está Shion?"

"No Bloco Ocidental. Isso é tudo que eu sei."

"Bloco Ocidental... Então é isso?" Um suspiro escapou dos lábios de Safu. Por um instante, seu olhar vagou no ar, em seguida ela baixou a cabeça profundamente em direção a Karan.

"Obrigada. Fico feliz que eu pude ver você, Senhora".

Desta vez, Karan foi quem agarrou o braço do Safu.

"Espere", disse ela. "O que vai fazer agora que você já sabe do paradeiro Shion?"

"Eu vou vê-lo."

Karan estava em perda de palavras. Ela não podia deixar ir o braço que estava segurando. A menina magra de 16 anos de idade ficou em silêncio diante dela.

"Safu... o que você está dizendo? Sabe que tipo de lugar é o Bloco Ocidental?"

"Não. Eu só ouvi dizer que é um lugar terrível. Mas eu ainda vou."

"Mas... mas... você diz isso agora. Pode ser que seja possível sair da cidade, mas para voltar..."

"Não importa para mim", disse Safu determinada. "Mesmo se eu nunca puder voltar aqui novamente, eu não vou me arrepender. Se Shion está no Bloco Ocidental, é para onde eu vou."

"Safu."

"Eu quero vê-lo. Eu quero ver Shion." Os olhos de Safu encheram de lágrimas. Ela mordeu o lábio.

Ela é uma garota forte, pensou Karan. Nessa idade, ela já aprendeu a conter as lágrimas.

Karan estendeu a mão e abraçou a menina.

"Obrigada, Safu."

"Senhora..."

"Sabe, eu sempre pensei que estava sozinha. Eu pensei que tinha que carregar esse fardo sozinha... mas você está comigo. Você também tem um lugar em seu coração para Shion... Muito obrigada."

"Eu... eu o amo", Safu disse, sua voz tremendo. "Do fundo do meu coração, eu sempre, sempre, amei somente ele."

"Uhum", Karan murmurou em aprovação.

"Eu não quero perdê-lo. Eu quero estar ao lado dele."

"Eu sei". Ela acariciou as costas de Safu.

No passado distante, eu disse a mesma coisa uma vez. Eu conheci um homem que me preocupava mais do que ninguém, e eu nunca quis perdê-lo. Eu gostaria de poder estar ao lado dele para sempre.

Mas eles haviam se separado. A única coisa que ele deixou em suas mãos era seu bebê recém-nascido. "Shion" era um nome que o homem tinha dado a seu filho. Era seu último e único presente a ela.

"As mulheres podem continuar a viver sem um homem, sabe."

Isso saiu como um sussurro. Talvez Safu não a ouviu falar, pois levantou o rosto e piscou para ela como se estivesse em dúvida. Quando ela piscou, uma única lágrima transbordou e rolou pelo seu rosto suave.

"Safu, posso lhe pedir para acreditar nele?"

"Hum?"

"Acredite nele. Ele virá para casa um dia. De alguma forma, eu só sei que ele virá. Ele não é tão fraco quanto parece."

"Eu sei disso, muito bem."

"Então, por favor, espere por ele", Karan implorou. "Tenha paciência e veja como a situação se desenrola. Eu não acho que seria bom para nós agir precipitadamente."

Os ombros de Safu levantaram e caíram enquanto ela respirava fundo.

"Senhora, posso te perguntar mais uma coisa?"

"Claro."

"Quem está com ele agora?"

Era uma pergunta inesperada. Alguém estava com Shion – invisível, mas estava ao seu lado, no entanto. Quem era?

"É Nezumi, pergunto-me?"

"Nezumi?"

"Sim, Nezumi. Essa é a única pessoa que eu posso imaginar."

"Eu me pergunto se ele é uma pessoa muito importante para Shion"

"Eu acho que sim. Talvez até mesmo o quanto você e eu somos para ele."

Safu sorriu, e anunciou que ela estava indo para casa.

"Espere, Safu", disse Karan urgentemente. "Prometa-me que não vai fazer nada precipitado. Você vai esperar até que ele chegue em casa, né? Certo?"

O sorriso da menina não desapareceu. Mas a luz em seus olhos era desafiador, e abrigou uma intenção clara.

"Eu não gosto de esperar."

"Safu..."

"Eu sempre fui assim. Eu não posso simplesmente ficar quieta e fazer nada enquanto espero. Esta manhã, fui fazer toda a papelada para conseguir cancelar o meu intercambio. Eu estou livre agora. Então eu estou indo. Vou para onde Shion estiver, não importa o que aconteça."

Karan balançou a cabeça. Sentia-se como se não importasse o que ela dissesse, seria de nenhuma utilidade agora. Mas ela tinha que parar Safu. Ela não podia deixá-la fazer uma escolha tola e andar direto para a teia de aranha.

"Safu, eu posso ser a mãe de Shion, porém eu não sei tudo sobre ele. Mas... mas sabe, eu sei que certamente ele não iria querer que você se colocasse em perigo apenas para vê-lo. Se alguma coisa acontecer com você por causa disso ele iria sofrer por toda sua vida. Este tanto, eu tenho certeza. Então, por favor..."

Safu ergueu o queixo. Ela apertou os lábios com firmeza.

"Isso não tem nada a ver com o que Shion sente."

"Hum?"

"Estou fazendo isso porque quero. Eu estou sendo egoísta, eu sei. Mas eu não posso simplesmente sentar e esperar por Shion neste estado. Eu quero tanto vê-lo. É por isso que eu estou indo... Eu não sou mãe, Senhora, não posso ser forte como você. Eu não posso continuar esperando. Não quero lamentar nada. Se... se por alguma chance, acontecer de ele nunca mais voltar... Eu vou ser a única a sofrer por toda a minha vida. Eu não quero isso. Eu não quero perdê-lo. "

"Mas Safu..." Karan disse as mesmas palavras em voz baixa, em seu coração.

Mas Safu, você sabe, as mulheres podem continuar a viver sem um homem. Vai ser doloroso, e sentirá como se o seu membro foi arrancado, mas você ainda será capaz de viver carregando essa ferida. Mesmo com esse fardo, um dia você será capaz de rir de novo. É por isso que, por favor, não coloque sua vida em risco por qualquer homem. Por favor, viva para seu próprio bem.

Como ela poderia responder aos sentimentos devotados, difíceis e ferozes desta garota? Como ela poderia convencê-la? Karan desajeitadamente, mas desesperadamente lutava para encontrar as palavras certas. Mas, Safu já estava virando o corpo para longe dela.

"Senhora, eu estou feliz por poder de vê-la. Adeus".

Não, Safu... Nunca diga palavras de despedida assim.

"Da próxima vez, venha antes do meio dia", Karan chamou. Ela falou as palavras para que chegassem à figura vestida de cinza que lhe dava as costas.

"Antes do meio dia?"

"Sim. Eu farei o pão de manhã cedo logo antes do meio dia. No início da manhã, eu asso principalmente pães, mas mais próximo ao meio-dia eu assarei pães doces e bolos. Vou assar três tipos de bolinhos. Venha e prove. Tenho um delicioso chá preto para acompanhar também."

Houve um momento de silêncio entre as duas.

"Eu sei", continuou Karan, "Safu, se você estiver disposta, você poderia me ajudar com esta loja? Eu vou te ensinar a fazer pão. Eu fiquei muito sozinha todo esse tempo. Se você viesse trabalhar aqui, eu ficaria tão feliz."

Ela sabia que estava sendo tola. Mas o que mais eu poderia ter dito? De que outra forma eu poderia distrair seu coração de Shion? Como posso protegê-la do perigo?

"Obrigada, Senhora. Eu amo bolinhos. Eu vou esperar pelo dia em que eu poderei prová-los."

A menina mais uma vez disse suas palavras de despedida, e saiu para as ruas noturnas. Karan silenciosamente a assistiu desaparecer. Seus braços e pernas estavam pesados. Um suspiro após o outro escapou de seus lábios.

Por que o amor de adolescentes é tão forte, impaciente e cegamente devoto? Meninas nesta idade não podem nem mesmo esperar pacientemente com fé. Seus sentimentos eram tão turbulentos, tão apaixonados com saudade, e tão dolorosos.

Eu havia me esquecido completamente como era se sentir assim.

Karan suspirou novamente.

Foi depois de ter trancado e estava prestes a desligar as luzes quando Karan notou o lenço rosa. O cachecol esquecido. Ela quase podia sentir a agitação de Safu.

Sim, Safu ainda estava hesitante em sua decisão. Se ela tivesse só um pouco de incerteza, ela poderia ser capaz de impedi-la de ir. Talvez ainda não fosse tão tarde.

Karan segurou o cachecol com ambas as mãos, e abriu a porta de sua loja.

Ela estava prestes a sair do beco para a rua principal, quando percebeu que tinha esquecido o cachecol. Era uma peça de malha costurada à mão por sua avó.

Agora, cachecóis e suéteres feitos à mão tinham voltado à moda, porque muitas pessoas acharam agradável a textura de lã sobre a pele. Mas na época em que Safu era pequena, ninguém usava cachecóis na Nº 6. A maioria das pessoas vestia roupa interior feita de fibras especiais, e todas as partes que tocavam a pele mantinham o nível da temperatura. As pessoas não precisavam vestir cachecóis, nem mesmo um suéter fino ou luvas.

A avó de Safu costurava como um hobby, e ela sempre fazia suéteres e cachecóis para a neta. Os colegas de classe de Safu sempre riam dela por causa disso. Mesmo todos estando na mesma classe de elite, as crianças sempre procuravam alguma diferença para rir dos outros e minimizá-los por isso. Os cachecóis e suéteres feitos à mão tornaram-se alvo de ridicularização.

"Uau, isso é do século passado?"

"Eu só havia visto isso em museus."

Ninguém sabia o que era ter consideração pelos outros, ou qualquer coisa sobre a alma ou a dignidade de uma pessoa. Isso porque nunca aprenderam nada sobre isso. Todos acreditavam que eram os escolhidos. Os escolhidos que eram autorizados a fazer qualquer coisa. As pessoas pertenciam a duas classes: os que eram eleitos e os que não eram. Além de todo o conhecimento teórico aprendido em salas de aula equipadas com as últimas tecnologias, foi tudo o que eles aprenderam.

Mas Shion era diferente. Ele sabia como tratar os outros com o mesmo respeito com o que ele era tratado, não se colocava nem acima nem abaixo dos outros. Ele era uma aberração. Isso era o que pensava Safu sobre ele.

Esta pessoa é diferente dos outros.

Ela não se lembrava quando, mas uma vez foi elogiada vestindo um suéter preto. O suéter tinha uma faixa rosa ao redor do peito e nas mangas.

"Ficou muito bem em você."

Safu estava olhando a programação na tela do seu desktop. Hesitou por alguém ter falado com ela de repente.

"Parece ser um suéter muito bom. Posso falar somente olhando que ele realmente aquece."

"O-obrigada".

"De nada. Além disso, eu aprendi algo novo."

"Hã?"

"Preto e rosa ficam muito bem juntos. Eu não fazia ideia disso."

Não era nem de longe uma conversa normal, era abrupta e unilateral. Mas, naquele momento, o semblante alegre do menino havia deixado uma marca na alma de Safu.

Que pessoa estranha...

Era uma pessoa estranha. Ele era diferente do resto. Por isso um dia, certamente iria por um caminho completamente diferente do nosso. Provavelmente, deixando o segundo pensamento de que tudo aquilo a que nos agarramos, tudo o que aprendemos é a coisa mais valiosa.

Ela havia tido esse sentimento antes.

Então, quando Shion passou nos exames de seleção para o Instituto Superior para superdotados, perdeu seu privilégio pouco tempo depois de ir para a Cidade Perdida. Safu não estava surpresa, sua premonição havia acabado de se tornar realidade. Não havia nada para ficar surpresa. Mas ela queria saber o porquê. Ela queria saber o significado por trás dos olhos que Shion punha com tanta frequência.

O que você está olhando? Quem você está procurando?

Não deixe seus olhos vagando tão longe. Olhe para mim. Eu estou bem na sua frente.

Eram palavras tão simples, mas ela nunca teve coragem de dizê-las. Eram sentimentos tão fortes, mas nunca mostraram sinal de que queriam sair. Dispositivos de comunicação foram progredindo em qualidade dia após dia, e o cartão para telefones celulares, os computadores portáteis e o papel eletrônico todos existiam e eram usados no mundo real, mas todos eles eram inúteis para ela. Eles não tinham a função de comunicar a sua alma com quem estava ao seu lado. Isso a enchia com ansiedade.

Ela estava frustrada consigo mesma por não saber todas as palavras de confissão e Shion nem mesmo tentava sentir os seus sentimentos. Mas, mesmo assim, ela manifestou sua alma pouco antes de partir em intercâmbio. Ela estava envergonhada de si mesma por ser tão direta, mas foi a única maneira que ela pôde dizer.

Eu te quero. Eu sempre te quis.

Palavras simples e diretas. Foi a melhor confissão que ela poderia formar. Mas foi rejeitada muito facilmente.

Eu sempre pensei em você como uma amiga.

Que resposta merecedora do prêmio Oscar. Foi tão ridícula que ela queria se dissolver em gargalhadas. Tão engraçada, que era quase dolorosa.

Você, cabeça de vento idiota, cresceu um pouco, não foi?

Ela o criticou em sua mente. Mas ainda foi capaz de lhe dizer o que ela queria dizer. Isso era bom o suficiente. Sua carga ficou uma pedra de moinho mais leve. Em dois anos, quando eu voltar do meu intercâmbio, eu vou começar de novo. Eu vou olhar para ele cara-a-cara novamente, quando eu estiver dois anos mais madura. Sua alma permanece inalterada. Ela ainda sofria de ânsia por ele.

Mas a maior parte de Shion ainda não tinha sido fixada por Safu. Sua alma tinha sido capturada por outra coisa, e ele havia se esquecido dela. Pela primeira vez, ela viu este rapaz calmo e sereno de poucas palavras ficando agitado bem diante de seus olhos.

As emoções de Shion haviam perdido seu equilíbrio e ele havia ficado agitado.

Ela havia tentado seguir o olhar de Shion, através da estação, no meio da multidão de pessoas, mas ela não foi capaz de ver nada. Quem quer que fosse a pessoa que ela não podia ver provavelmente era quem Shion estava procurando. E agora, essa pessoa provavelmente estava ao seu lado. Embora ela não tivesse provas, estava certa de que fosse verdade. Não adiantava pensar quem essa pessoa poderia ser. Ele era um personagem desconhecido.

É o Nezumi, eu imagino? Isso foi o que disse Karan.

Um rato?

Existiu. Existiu um Rato. Antes de eles se separarem na estação, um pequeno rato tinha subido no ombro de Shion.

"Nezumi". Ela tentou dizer isso em voz alta. Apenas a imagem de um rato de laboratório veio à mente. O vento soprava. Ela sentiu frio em torno do pescoço. Devo voltar para pegar meu cachecol? Logo quando ela estava prestes a mudar de direção, uma sombra escura apareceu diante dela.

"Você é a Safu-san?" Ela foi chamada pelo seu nome. Um arrepio correu fraco por sua espinha. Estes uniformes, eles eram policiais da Secretaria de Segurança.

Por que funcionários da Secretaria...?

"Safu-san, estou certo?" Um dos homens repetiu a pergunta. Era uma pergunta que ele já sabia a resposta.

"Sim".

"Posso ver sua carteira de identidade?" Depois de confirmar a carteira que Safu mostrou-lhes, os funcionários olharam um para o outro e assentiram. Seus tons de voz eram corteses, mas não eram amigáveis de qualquer forma. Era mecânico, sem calor humano. O frio piorou.

"Se você não se importa, nós gostaríamos que você viesse para a Secretaria de Segurança com a gente."

"O que?"

No momento em que havia preparado um pequeno grito, ela já havia sido ladeada por funcionários de ambos os lados e levada pelos braços.

"Por favor, entre no carro."

"Não, deixe-me ir!" Ela lutou. Eles não afrouxaram.

"Parem com isso! Para que vocês estão me levando? Digam-me o porquê", Safu exigiu.

"Chegará no inferno lá e você descobrirá em breve." Suas palavras se tornaram duras. Parecia que tinham a intenção de levá-la à força. Safu deixou seu corpo relaxar.

"Tudo bem. Por favor, só não usem a violência contra mim." Ela deu um passo à frente.

"Ah!"

Ela fingiu tropeçar, e deixou seu corpo cair para frente. As mãos dos homens afrouxaram. Ela se jogou e bateu no homem à sua direita. Ele cambaleou alguns passos. Safu girou em torno de sua bolsa, e a chicoteou no outro homem. Ela correu através do espaço entre eles.

Ela tinha que ir embora. Se ela fosse capturada, nunca seria capaz de ver Shion novamente.

O que significava ser escoltada à força pela Secretaria de Segurança... Ela sabia por instinto, não por lógica. Eu nunca vou ser capaz de vê-lo novamente.

Ela vira uma sombra no final do beco. Estava muito longe para dizer claramente, mas ela podia ver que ela estava segurando alguma coisa de cor clara em suas mãos.

Seu cachecol rosa bebê.

"Senhora".

Os pés dela pararam.

Senhora, não. Não venha nesta direção.

Ela tentou contornar, mas foi agarrada pelo ombro. Seu pulso foi torcido atrás das costas. Uma dor aguda. Sua boca foi coberta quando ela abriu para gritar.

Pare.

Os homens não falaram uma única palavra a mais. Em silêncio, eles procederam para capturar Safu. Um sentimento de terror correu por todo o seu corpo.

Eu estou com medo. Não. Socorro. Ela lutou para se libertar. Ouviu o som de seu casaco rasgando. Um botão se arrancou e rolou pela rua.

Socorro. Não... ajuda...

Ela sentiu um choque em seu pescoço. Seu corpo ficou dormente, e ela não podia se mover como ela queria.

"Não... ajude-me..." Ela estava perdendo a consciência. A cena da noite à sua diante ficou turva.

Shion.

Antes que ela pudesse murmurar o nome, Safu foi arrastada para a escuridão.

Karan viu as figuras sombrias enredadas em uma luta. Ela ouviu um pequeno grito que imediatamente reconheceu como a voz de Safu. Ela hesitou por um momento, e então começou a correr, mas suas pernas não se moveram quando ela quis e então tropeçou e caiu, e bateu o joelho fortemente no chão.

No momento em que Karan se levantou de novo, os homens estavam arrastando o corpo flácido de Safu para dentro de um carro. Era como um jogo de sombras silenciosas realizado em uma rua vazia. Mas o que se desenrolava à sua frente sob as lâmpadas uniformemente espaçadas da rua não era outra coisa senão a realidade. Os homens não estavam agindo em uma ficção... eles estavam realizando a sua missão atribuída sem uma única palavra.

A Secretaria de Segurança.

Sua respiração ficou presa na garganta. Encolhida na calçada, ela era incapaz de se mover. Não era a dor, mas o medo, que impedia os pés de dar um passo à frente.

Um dos homens olhou em sua direção. Ou pelo menos ela pensou que ele olhou. Seu corpo se contraiu no horror. Karan estava encolhida longe do local onde a luz brilhava, portanto, nesta escuridão seria difícil vê-la. Mas com óculos de visão noturna, a hora da noite não era de preocupação. Eles podiam ver na escuridão, como se fosse meio-dia. Eles provavelmente poderiam ver Karan claramente como cristal.

Ela estava apavorada.

Mas os homens rapidamente entraram no carro. A caminhonete preta silenciosamente deslizou para frente e desapareceu de vista de Karan em segundos. Karan levantou-se e apertou o cachecol nas mãos.

"Safu".

Ela disse seu nome em voz alta, e o terror real finalmente se definiu. Suas mãos tremiam. Ela cambaleou para casa e trancou a porta. O leve cheiro de pão a acalmou um pouco.

Safu havia sido levada pela Secretaria de Segurança. Havia sido quase como um sequestro.

Por quê? Por que ela tem de ser capturada? É por causa de Shion? Se for, então por que é Safu, e não eu? Por que na terra...

Ela não sabia. Ela não sabia de nada.

Cheep.

Um pequeno rato tirou a cabeça de debaixo da caixa de vidro. Ele estava segurando um pedaço de pão de queijo em suas patas.

"Nezumi".

Nezumi seria capaz de ajudá-la? Será que ele lhe traria a salvação? Será que ele tomaria a mão que ela estendia a ele?

Perto do pequeno animal com olhos cor de uva, Karan estendeu a palma da mão.

Leia o capítulo 5.

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  1. Chekhov "O Jardim das Cerejeiras" Ato 3. Traduzido do inglês. [Voltar]

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terça-feira, 3 de julho de 2012

Tight Rope OVA

Título: Tight Rope 
Título original: 
Título alternativo: 
Categoria: OVA
Gênero (oc.): romance
Gênero (or.): yaoi
Classificação indicativa: T
Lançamento: 2012
Diretor (a): 
Autor (a): 
Site Oficial:
Fansub:
Himitsu-Shudan

Sinopse:

Tight-Rope conta a história de Ryunosuke, um relutante herdeiro de uma família Yakuza e do seu amigo de infância, Noaki. A história também se concentra na relação amorosa entre os dois, que começou a florir nos seus tempos de escola e continua a se desenvolver lentamente.

Download:
SakuraAnimes
Yaoi Home

Assistir online:
Anitube - OVA 1
Anitube - OVA 2

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sexta-feira, 1 de junho de 2012

[Novel] No. 6 Volume 2 Capítulo 3

 
Passe o mouse sobre as palavras e textos sublinhados para ver informação
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Capítulo 3: O Profano e o Sagrado

Os seres humanos são metamorfos, não há nada que não seja deste mundo.
         - Ihara Saikaku, "Contos de Saikaku de várias províncias" 

A inclinação em que Shion havia derrapado revelou ser um pilar enorme tombado de lado. Após uma inspeção mais próxima, podia-se ver que a base foi esculpida com figuras de várias mulheres vestidas em pano fino e translúcido. Fundações em metal enferrujado eram tudo o que restava do que provavelmente costumava ser um teto arqueado, e várias videiras secas debilmente agarravam-se a eles. O muro havia desabado totalmente, e pedaços de pedra em todos os tamanhos estavam espalhados aqui e ali.

Se ele acidentalmente tivesse batido a cabeça em um desses – Shion estremeceu com o pensamento.

A cena diante de seus olhos era algo que Shion estava vendo pela primeira vez. Naturalmente, não havia tais edifícios em ruínas para serem encontrados na Nº 6. Todos os edifícios eram construídos de acordo com a sua finalidade, com prioridade à eficiência e funcionalidade. Ruínas como essas, que tinham se acumulado ao longo do tempo, expostos ao vento e à chuva, eram sinônimos de ilusão e não produtos da realidade.

Ele respirou, e deixou seu olhar vagar naquilo novamente. O vento soprava numa dança feroz, como se prosseguisse a sua viagem em direção a um lugar ainda mais ruinoso. Uma porção da parede fez um estalo seco quando ruiu diante dos olhos de Shion.

"Nezumi", ele chamou. Não foi um pedido de ajuda. Ele só queria chamar seu nome. "Você está aí, não está? Apareça."

"Você está ficando mais perceptivo", disse uma voz em algum lugar lá de cima. Shion olhou para cima para ver Nezumi sentado no peitoril de uma janela, vários metros acima. Nada restou da janela em si, exceto o quadro. O vazio retangular, que fora limitado no preto, como se fosse uma boca aberta na face do muro em ruínas, abria-se para soltar um grito.

Nezumi pulou de seu lugar que estava vários metros acima. Ele pousou diretamente na terra macia.

"Você tem pés velozes", comentou Shion.

"Estou muito modesto pelos seus elogios graciosos, sua Alteza".

"Grande coisa" brincou Shion. "Sem mencionar ainda como incrivelmente rápido você parece desaparecer em uma situação apertada."

Nezumi encolheu os ombros levemente e deu uma risada suave.

"Você aprendeu mesmo como ser sarcástico. Já é alguma coisa. Cresceu um pouco, não foi?"

"Eu devo ter ganhado uns dez anos de experiência por caminhar neste lugar."

A mão do Nezumi acenou languidamente em frente ao rosto de Shion.

"Então, você quase conseguiu ser baleado por uma arma, foi seduzido por uma mulher, tropeçou em um corpo morto, e apanhou de um velho. Bem, acho que para um menino mimado como você, isso conta por cerca de dez anos. Mas..."

"Hum?"

"Você realmente ficou melhor para fugir", disse Nezumi com aprovação. "Muito melhor que a sua última tentativa com o cara gordo".

"Com os Faxineiros, você quer dizer?"

"Sim. Parecia que aquele velhote iria te pegar seriamente. Para ser honesto, eu pensei que você iria se sair muito bem se fosse obrigado a entrar lá."

"Você desapareceu muito rápido nessa hora."

"Eu não me envolvo em mais problemas do que eu preciso", Nezumi riu silenciosamente. "Mas você fez um bom trabalho fazendo uma fuga. Deixe-me dizer-lhe, porém, esses caras não se dão por vencido facilmente. Eu teria cuidado se eu fosse você".

"É com profunda gratidão que aceito suas palavras de conselho, sua Majestade."

"Ah querido, e suas respostas começaram a ficar melhor também", Nezumi riu alto desta vez, mas suavemente. O cão magro estava esparramado no chão, abanando o rabo de um lado para o outro. A miséria do mercado parecia um sonho. A quietude silenciosa invadiu o lugar, como se as montanhas de escombros estivessem absorvendo todo o som ao seu redor.

"Nezumi, onde estamos?"

"Faça um palpite."

"Eu não tenho a menor ideia... Parece que isso foi um edifício muito grande... "

"É um hotel. Havia um hospital aqui em frente. Ao lado tinha um teatro, eu acho. Não sei muito sobre esse lugar, embora."

Um hotel, um hospital, um teatro...

"Então, isso realmente parecia ser uma cidade decente."

"Eu acho que sim. Quero dizer, realmente não sei como é a aparência de uma cidade decente, mas provavelmente não havia corpos por toda parte, para dizer o mínimo. Pelo menos naquela época."

"Naquela época?"

"Antes da Nº 6 ter sido estabelecida."

Shion não se surpreendeu. Ele já esperava isso. Fechou os dedos levemente sobre a palma da mão.

"Eu aprendi a história da Nº 6, e como ela surgiu. Foi uma das primeiras aulas de que tivemos."

"Mm-hmm," Nezumi respondeu despreocupado.

"Uma série de guerras em larga escala estourou em todo o mundo enquanto o século passado ia chegando ao fim. Foi antes de nós nascermos. Como resultado da enorme quantidade de bombas e armas biológicas que foram usados, a terra foi totalmente destruída e o clima se deteriorou gravemente. A maioria de todos os continentes, com apenas algumas pequenas exceções, perdeu toda a capacidade de sustentar a vida humana. Havia uma enorme quantidade de vítimas. O povo que permaneceu prometeu nunca fazer guerra outra vez, e nas regiões que foram poupadas da destruição foram fundadas as seis cidades utópicas. E a Nº 6 foi uma delas."

"Isso foi o que você aprendeu."

"Sim".

"E você sempre acreditou que isso fosse verdade?"

"Essa é a verdade que fomos ensinados a acreditar."

"Você se lembra do que me disse no dia em que nos conhecemos?" falou Nezumi. "Você disse que não achava que a Nº 6 era perfeita."

"Eu disse".

"Isso foi uma mentira?"

"Não", respondeu Shion. "Sinceramente, pensei assim. Mas antes de te conhecer, eu não sabia como era que eu realmente me sentia. Quando te conheci, foi quando eu finalmente soube."

Havia conhecido Nezumi e compreendido. Ele finalmente ouviu o som de sua própria consciência ranger tensamente contra seus grilhões, sempre se sentira sufocado. Na Nº 6, ele tinha tudo. Tinha muita comida, uma cama quente e acesso a cuidados médicos. E não parou por aí, com a idade de dois anos, quando ele foi reconhecido como um indivíduo de alto escalão em seus exames, ele havia adquirido o privilégio de viver no bairro de luxo, Chronos. Todos os seus moradores eram proporcionados um ambiente de primeira classe em muitos aspectos.

Antes de ele ter conhecido Nezumi naquela noite tempestuosa de seu aniversário de doze anos, era cercado por tudo o que ele poderia desejar, todos de primeira classe e de qualidade. Mas naquele dia, olhando para o vento e para a chuva que retumbava pela janela, o que Shion havia sentido foi um impulso destrutivo que vinha do núcleo.

Ele se sentia insuportavelmente suprimido. Como um animal encurralado que instintivamente jogava-se contra a cerca, Shion queria ser liberado da gaiola invisível que prendia ele. Bem no fundo da parte mais profunda do subconsciente de Shion, uma voz ressoou.

Isto é uma fachada.
Aqui, tudo é dado a você.
Mas não há nada aqui.
Você não pode viver mais aqui.
Então escape.

Quebre.
Destrua.
Destrua o quê?
Tudo.
Tudo?

Quando a voz dentro dele sobrepôs as palavras do Nezumi, Shion tinha finalmente entendido. Eu não sei a verdade. Eu não sei nada.

O olhar de Nezumi deslizou para longe de Shion enquanto virava as costas para ele. Shion agarrou seu braço.

"Nezumi, me diga."

Me diga a verdade. Não uma mentira ou uma desculpa casual. Me diga a verdadeira forma – da Cidade Santa, da Nº 6.

Seus dedos foram sacudidos rudemente.

"Eu não sou sua babá. Se você quer saber, então descubra por si mesmo."

Ele foi sacudido novamente. Não importa quantas vezes tentava agarrar a Nezumi, ele sempre era empurrado, rejeitado impiedosamente. Mas ainda assim, Shion manteve a mão estendida.

O cão estava pressionando seu corpo contra Shion. Suas costelas eram tão finas que se projetavam para fora, mas ainda estava quente. Muito quente. Tinha o calor de algo que estava vivo.

"Você está sentindo pena de mim, por acaso?"

O cão contraiu seu ouvido castanho-claro. Por um momento, pareceu que havia sorrido para ele. Então se arrastou pesadamente para o lado do Nezumi. A mão de Nezumi, lenta e suavemente, acariciou a cabeça do cão.

"Então você é agradável com os cães, hein."

"Os cães não agem como bebês."

"Mas os cães não podem costurar."

"O quê?"

"Os cães não podem suturar uma ferida. Notei que o kit de sutura ainda estava intacto para o caso de emergência. Se você se machucar de novo, eu vou costurar a sua ferida."

"Ora, obrigado", Nezumi disse sarcasticamente. "Sua oferta é tão grande que está dando arrepios em minhas costelas. Aquele seu rosto ficou em meus sonhos por um bom tempo depois daquele dia, sabe."

"Eu estava legal?"

"Você estava sorrindo. Você tinha aquele olhar como se estivesse tendo o momento de sua vida. Toda vez que eu sonhava com isso, eu tinha pesadelos."

"Bem, foi a primeira vez na minha vida que fiz uma sutura. Lembro-me de estar muito animado. Me diga", disse Shion com entusiasmo. "Então você tirou os pontos de si mesmo?"

"É claro. Foi mais fácil do que fazer sopa."

"E deixou uma cicatriz?"

"Sim. Mas eu não vou te mostrar."

Shion fez um bico.

"Não seja mesquinho."

"Preste atenção a seus pés" Nezumi interrompeu em voz alta. "As escadas começam aqui. Nós vamos subir."

O sol estava se pondo e a escuridão estava ficando maior. Uma grande parte das escadas havia desmoronado assim como a parede, e o que restava dela ia para cima em uma curva ampla no sentido horário. Aqui, o teto ainda estava intacto. Parecia que fora originalmente pintado de branco e, embora a maior parte tivesse sido descascada, havia manchas de tinta branca que ainda sobravam aqui e ali. Um lustre estava pendurado sobre a escada, e para surpresa de Shion, estava pouco danificado.

"Então este lugar realmente era um hotel."

"Ainda é."

"Hum?"

"Este lugar ainda é usado como um hotel."

"Sem chance."

Eles surgiram no topo das escadas e foram recebidos por uma câmara grande e vazia. Ali provavelmente havia sido a portaria. As paredes eram fixadas com vidro do chão ao teto. Os painéis na metade superior haviam sido destruídos e espalhados pelo chão, mas os painéis de fundo ainda permaneciam intactos. Cortinas rasgadas e desbotadas pendiam sem vida sobre eles. Videiras que provavelmente penetraram através das janelas quebradas agarravam-se densamente nas paredes e cruzavam-se como uma rede de capilares. Folhas caíam delas somando-se com a espessa camada que já havia carpetado o chão.

Foi graças a uma luz fraca naquele lugar que Shion fora capaz de decifrar isto, apesar da escuridão. Ela vinha de uma vela que queimava em cima de uma mesa de pedra.

"Nezumi, você sente o cheiro de alguma coisa?"

"Da vela queimando, talvez?"

"Não, não é de cera. Cheira quase... como um animal..."

Nezumi deu uma risada.

"Você realmente percorreu um longo caminho. Seu nariz ficou mais apurado. Agora vamos tentar trabalhar a sua visão. Olhe."

"Ah..."

A sombra se moveu na escuridão onde a luz não pôde alcançar. Não era um ser humano. Tinha quatro pernas, duas orelhas pontudas, e estava rosnando ameaçadoramente.

"Um cachorro", ele sussurrou.

Era um cão grande, coberto de pêlo castanho-escuro curto, com um brilho feroz em seus olhos. Sua garganta emitia um rosnado baixo. Shion deu um passo para trás.

"Ele não é o único", Nezumi acrescentou.

Havia uma nota de diversão em sua voz ­― ele estava gostando da reação de Shion. Shion resistiu ao impulso de virar e lhe dar um olhar fixo. Ele não tinha atenção de sobra para isso.

Liderados por esse cão, vários outros cães de todas as formas, tamanhos e cores foram surgindo da escuridão. Eles estavam longe de serem chamados de animais de estimação. Estavam sujos, seus olhos brilhavam cruelmente, e os seus dentes estavam descobertos.

"Isto é um ninho para cães selvagens?"

"Pode ser. O que você quer fazer? Fugir? Se não se decidir logo, vai ter sua garganta arrancada".

O cão castanho-escuro se aproximou dele com cautela. Não estava mais rosnando. Silenciosamente, mas de forma constante, dirigiu-se a ele sem abaixar seu olhar.

Shion olhou de volta para o conjunto de olhos caramelo que eram da mesma cor de seu pêlo. Atrás da luz selvagem em seus olhos, residia algo surpreendentemente suave. Shion podia sentir a sua presença lá.

Intelecto?

Shion ajoelhou-se, o vidro quebrado se esmagou abaixo do joelho de seus jeans. Nezumi estava inquieto. Shion não se moveu. Agachado no chão, ele olhou diretamente para o cão.

O cão parou e assim permaneceu na frente dele. Abriu a boca pendendo sua língua rosa e lambeu a ponta do nariz de Shion, depois se deitou no local e deu um bocejo. Todos os outros cães começaram a se mover por conta própria. Alguns começaram a lamber uns aos outros, outros se esparramaram no chão, enquanto outros farejavam seus arredores, e nenhum deles parecia estar preocupado com a presença do Shion.

"Passei na entrevista," Shion sorriu quando ele olhou para Nezumi. Nezumi estalou a língua e se virou.

"Os cães selvagens não te assustaram?" ele disse acidamente.

"Sim, me assustaram. Mas cães selvagens não acendem velas".

Nezumi fungou desdenhosamente. "Você nunca viu uma vela antes."

"Eu acabei de ver pela primeira vez. É mais brilhante do que eu imaginei que fosse. Ei, Nezumi, alguém vive aqui?"

Risos trovejaram. Ecoaram nas ruínas e desapareceram na escuridão.

"Prazer em ter você, cliente."

Era uma voz humana, mas ele não podia ver a quem pertencia. A voz ecoou em tantas direções que ele não poderia dizer de onde veio. Ela ricocheteou e se sobrepôs em camadas incontáveis. Apenas ao ouvir isso o fez sentir tonto.

"Pare de se acovardar." Nezumi se abaixou. Ele pegou um pedaço de escombro, e arremessou-o direto para a escuridão de onde os cães tinham vindo. O escombro foi sugado pela bruma, mas ele pôde ouvir um som definido na distância no momento em que aquilo bateu no chão.

"Cuidado." O foco de onde vinha a voz se definiu em um ponto na escuridão. Era uma voz jovem. Uma luz piscou na piscina de tinta preta.

"Isso é uma forma violenta de cumprimentar alguém, Nezumi. Você não tem boas maneiras."

"Você mesmo poderia ter algumas maneiras se é isso o que você chama a maneira correta de receber um convidado."

A figura estava tecendo entre os cães em direção a eles com um castiçal. Mesmo com a chama da vela, a pessoa parecia que ainda estava na escuridão.

Seu cabelo ia até a cintura. Seus olhos, seu suéter folgado e suas calças que estavam rasgadas nos joelhos, eram todos pretos, e tinha a pele bronzeada.

Era um menino? Uma menina?

Shion não poderia fazer a distinção. Os olhos redondos e o queixo apontado do estranho lembravam um pequeno roedor. Ele era muito pequeno e magro, e apenas chegava cerca à altura dos ombros de Shion.

"Ele vive aqui", disse Nezumi. "Eu não sei o seu nome real. Apenas o chamamos de Inukashi".

"Como... aluga cão?"

"É isso", respondeu o estranho. "Empréstimo de cães é o meu negócio. Prazer em conhecê-lo, Shion." Inukashi sorriu. Shion foi pego de surpresa.

"Você sabe o meu nome."

"Eu sou rápido para apanhar informações por aqui. Contanto que eu tenha meus cães, obter todas as informações sobre tudo é moleza. Eu sei o seu nome, e sei que você chutou o Faxineiro nas bolas antes de vir correndo para cá. Esse cara me contou tudo."

O cão magro abanou a cauda ao lado de Inukashi.

"Você pode falar com os cães?"

"Posso manter conversas com qualquer pessoa, desde que não sejam humanos. Sempre que você quiser alguma informação, sinta-se livre para me procurar." Inukashi estendeu a mão com um sorriso. Ele estava usando um anel grosso, de prata, que combinava bem com sua pele bronzeada.

"Prazer em conhecê-lo também." Shion também estendeu sua mão.

Fazia um tempo desde que ele tinha apertado as mãos de alguém. Até agora, suas experiências só tinham se consistido em fugir, gritar, ou rolar por aí. O rosto de Inukashi era aberto e afetuoso, e lembrava-lhe um filhote de cachorro.

Uma dor aguda percorreu em sua mão.

"Ai!"

Shion retirou a mão rapidamente. Na base do dedo indicador havia uma pequena ferida do tamanho de uma alfinetada. O sangue já estava começando a brotar a partir dela percorrendo a palma de sua mão em um único fluxo vermelho. Ele acreditou sentir as pontas dos dedos ficarem dormentes.

Inukashi jogou a cabeça para trás e gargalhou.

"O que foi isso?" Shion disse em descrença.

"'O que foi isso', ele disse!" Inukashi cantou. "Haha, que surpresa! Você cai direitinho nesse aperto de mão, se vira para mim e pergunta 'o que foi isso?' clássico".

Inukashi mostrou a palma da mão a Shion, e dobrou os dedos ligeiramente. Uma pequena ponta da agulha saiu pelo anel. Quando ele esticou seus dedos de novo, voltou a se esconder.

"Tem sido usado como uma arma de assassinato por séculos. Bem, a maneira correta de usá-lo seria cobrir a ponta da agulha com veneno. Mas eu não fiz nada a este, só para que você possa relaxar."

Shion pressionou bastante a base do dedo. Ele lambeu seus lábios secos, e abriu a boca para perguntar.

"Por que você faria isso?"

"Oh querido", disse Inukashi exageradamente. "Agora ele está me perguntando, por que você faria isso?"

O olhar de Inukashi se virou para Nezumi, que estava em silêncio.

"Você não ensinou a esse cara nada sobre como viver aqui?"

"Esta não é minha responsabilidade."

"Você o pegou e o levou para casa, não foi? Se você vai pegar um gato de rua, você tem que tomar conta dele corretamente. Ele vai se tornar útil um dia."

"Eu não tenho tanta certeza disso."

Inukashi riu de novo.

"Se não, apenas coma ele. Ou ele é..." o olhar de Inukashi viajou para o cabelo do Shion. "Tem um cabelo interessante. Ele tem problemas, ou o quê?"

Nezumi mexeu o canto da boca e respondeu logo.

"Como os muitos problemas dos cães que você tem. Demais para contar."

"Uhum. Assim, os rumores eram verdadeiros. Você realmente está mantendo um menino como um animal de estimação." O rosto de Inukashi ficou sério enquanto olhava para Shion da cabeça aos pés. Foi um olhar ousado e insolente. O cão, de repente levantou-se do chão, e latiu uma vez. Duas bolas marrom e peludas vieram saindo da escuridão. Eles eram filhotes, provavelmente um ou dois meses de idade, seus narizes e caudas eram brancos. O cão magro deitou-se de novo, mostrando a sua barriga e seus bicos caíram lamentavelmente. Os filhotes ansiosamente se jogaram para eles. Seus traseiros redondos balançavam de um lado para o outro.

"Uau, filhotinhos!" Shion exclamou. Ele gentilmente acariciou suas costas de modo a não interferir em sua alimentação. "Uau, Nezumi, olha. Eles são tão suaves. Por que você não tenta acariciá-los também?"

"Não, obrigado".

"Mas veja, eles são filhotes. Então você é uma mãe, hein. Deve ser duro para você, criar todas essas crianças."

Inukashi franziu o cenho e recuou meio passo longe de Shion.

"O que há com esse cara? O que ele está fazendo tendo uma conversa séria com um cão? Ele é desequilibrado ou algo assim?"

"Ele é um pouco vago. Isso é natural para ele."

"Natural, hein? Por que você está cuidando desse maluco?"

"Como eu disse, ele tem problemas. E pode não parecer, mas ele é muito bom com as mãos. Ele pode até mesmo fazer uma cirurgia simples."

"Eu não me importo com o que ele pode fazer, eu não teria nada disso. Ele sempre vai ser um peso morto."

"Eu não poderia ter dito melhor", respondeu Nezumi. "Então você já procurou pelo o que eu pedi para você?"

"É claro. Trabalho é trabalho. Vamos lá para cima." Inukashi pegou o suporte de vela na outra mão e desapareceu na escuridão. Havia mais escadas, como as de antes, elas se dirigiam para cima em uma curva suave. Estas não estavam tão em ruínas, o entulho foi limpo de modo que ficava um espaço grande o suficiente apenas para que uma pessoa pudesse percorrer.

"Oh" Shion murmurou surpreso quando eles surgiram no topo das escadas.

Um corredor estreito corria diante deles. Havia uma pessoa enrolada na ponta do corredor. Ao lado dele estava um par de cães. Eles tinham o pêlo longo e branco e estavam situados perto da pessoa como se para protegê-la. Shion apertou os olhos, e pôde ver mais alguns desses grupos de pessoas e cães enrolados juntos.

"O que estas pessoas estão fazendo?"

Inukashi respondeu por cima do ombro.

"Eles são os meus clientes."

"Clientes?"

"Este lugar costumava ser um hotel, e ainda é. Boatos dizem que este lugar era muito grande, mas agora é só um lugar onde as pessoas podem dar um pouco de dinheiro se não tiverem onde ficar durante a noite. Temos camas, também. Se você puder desembolsar a grana, estarão prontas."

"E quanto àqueles cães?"

"Eu os alugo para aquecer. Pode ficar bastante frio à noite, mas não é tão ruim se você enrolar com um cão ou dois. Você não vai congelar até a morte, pelo menos."

"Então é daí que 'aluga cão' vem".

"Os cães são úteis para outras coisas também. Eles coletam informações, guardam a sua propriedade ou levam o seu material. Eles vão fazer tudo. E são provavelmente muito mais úteis do que um cabeça de vento natural como você."

Nezumi estalou a língua.

"Essa fala é minha."

No final do corredor havia uma porta de madeira. Além de que era uma sala pequena, com um teto baixo e sem janelas. Uma mesa redonda ficava no centro dela. Inukashi abaixou o suporte de vela, e espalhou um velho mapa sobre a superfície da mesa.

"Este é o mapa que Nezumi pôs as mãos por volta de 20 anos atrás. Este é o meu hotel, e LK-3000 deve estar em algum lugar por aqui."

"O Edifício Latch não está marcado neste mapa", acrescentou Nezumi. "Eu pedi para o Inukashi procurá-lo."

Ele passou um dedo levemente sobre o mapa. Foi um gesto casual, mas um dos elegantes. Foi um movimento calculado e afinado à perfeição.

"O quê?" Nezumi inclinou a cabeça diante ao olhar de Shion.

"Não, eu apenas pensei que às vezes você realmente se move com elegância."

"Hum?"

"Às vezes, seus gestos são realmente cativantes. Eu não conseguiria parar de olhar."

Inukashi olhou para eles, o seu olhar alternando entre o rosto de Nezumi e o de Shion.

"Como você pode dizer algo assim na frente dele?" ele perguntou incrédulo. "Nezumi, esse cara é realmente estranho por natureza. Como você convive com ele?"

"Eu consigo de alguma forma."

"Shion, você não sabe qual é o emprego desse cara?"

"Não."

Inukashi estendeu a mão aberta em direção a Shion.

"Se você pagar, posso lhe dizer. Vender informação é mais um dos meus negócios."

"Eu não tenho dinheiro."

"O quê? Você não tem? Nezumi, você está cuidando de um vagabundo sem dinheiro?" os olhos do Inukashi se estreitaram. "Então ele tem o cabelo esquisito, é um cabeça de vento, aperta a mão das pessoas sem pensar duas vezes, e não tem dinheiro. Nezumi, de onde você o trouxe?"

"De onde você acha?"

"Eu que estou perguntando aqui."

"Se você me pagar, posso lhe dizer."

"Não bagunce tudo", Inukashi estourou. "Você é o único que deveria estar pagando."

Nezumi pegou uma pequena bolsa de couro do bolso.

"Lá vai."

O conteúdo da bolsa caiu em cima do mapa. Era um rato cinza e pequeno.

"É um micro robô. Ele reconhece áudio e vídeo, tem sensores de gravação e é montado com uma micro bateria movida a energia solar. Uma carga fará com que ele dure 36 horas. Ele pode se deslocar livremente para coletar informações. Vai ser muito útil nos lugares onde seus cães não podem entrar. Você estava me dizendo que queria um, certo? "

Inukashi acenou com a cabeça sem dizer nada. Ele moveu a cabeça para cima e para baixo de forma exagerada, muito parecido como uma criança pequena acenaria.

"Você realmente vai dar isso para mim?" perguntou ele.

"Sim. Se suas informações valerem a pena."

Nezumi colocou o rato de volta na bolsa e o apertou levemente. O tom da voz de Inukashi acelerou.

"Tudo bem. Vou saltar direto para a conclusão. O Edifício Latch não existe."

"Isso é tudo o que você tem?"

"Claro que não. Ele não existe, mas há algo que tem esse nome."

"Edifício Latch?"

"Folheto Latch, e é o nome de um jornal. Há muito tempo atrás, havia um jornal com esse nome, logo atrás desse hotel. Ele faliu e foi demolido para ser transformado em um estacionamento para este lugar. Foi o que aconteceu antes deste mapa ser feito, é por isso que não existe."

"Assim, Folheto Latch 3A significa…"

"Ou significa que é o 3º andar dessa empresa jornalística, ou então..."

"Ou então?"

"Eu não tenho ideia", Inukashi disse abruptamente. "Não há como eu saber o que havia no 3º andar de um jornal que saiu do mercado há vinte e poucos anos atrás. Você deve encontrar-se diretamente com o cara que tem uma ligação com aquele lugar."

"Há alguém com ligação nisso?"

"Sim. Eu achei a localização de um cara que tinha ligações com o Folheto Latch. E digo: esse cara também tem ligações interessantes com a Nº 6. Ouça com atenção"

Nezumi se inclinou para frente. Shion engoliu em seco.

* * *

A Nº 6 estava envolta em um brilho vermelho do pôr do sol. Nada era mais requintado do que o pôr do sol de outono. O homem soltou um suspiro satisfeito.

Que beleza era aquilo, uma cena tranquila. O Parque Florestal há poucos dias havia um contraste vivo entre as folhas que se transformavam e aquelas que ainda estavam verdes, mas agora a maioria das árvores havia perdido suas folhas. Era um tipo de beleza pacífica da natureza que ia calmamente se preparando para o inverno que se aproximava.

Aqui ele obteve os pináculos da ciência moderna; tinha a natureza sob a sua gerencia e a última cidade utópica estava se aproximando de seu término. As pessoas tiveram a sorte de serem capazes de nascer, crescer, e viver até uma idade avançada aqui. Eles foram os escolhidos.

Não havia tal coisa como a desgraça aqui. Mesmo os furacões que apareciam ocasionalmente eram abundantes fontes de irrigação natural que molhavam as pastagens agrícolas e pecuárias que se espalhavam do bloco leste para o bloco sul.

Tudo o que se precisava era de um pouco mais. Um pouco mais, e a terra dos deuses finalmente estaria completa. Uma utopia, onde somente os escolhidos residiriam. Ele só precisava de um pouco mais.

"Você realmente deve amar a vista daqui." Uma voz disse atrás dele, com um tom de riso.

"Você não concorda que é excelente?"

O homem que riu silenciosamente balançou a cabeça em uma expressão de recusa. Ele estava vestindo um jaleco branco.

"Eu prefiro o micro universo. O mundo das bactérias, micróbios, neurônios, macrófagos, vírus. Os vírus estão em escala nanométrica, você só poderá vê-los através de um microscópio eletrônico. Eles são muito bonitos, sabe. As coisas realmente bonitas são coisas que você não pode ver a olho nu."

"Esse sempre foi o seu mantra, não foi. Você já disse isso tantas vezes quanto posso me lembrar."

"É o meu mantra imutável."

"E você também ainda bebe café forte antes e depois do jantar."

"Esse é outro hábito imutável meu".

Os homens entreolharam-se e riram baixinho. Eles se conheciam há décadas. Sabiam bem qual parte do outro havia mudado, e o que permanecia o mesmo.

"Então, e agora? Eu acho que agora é questão de tempo." O homem ergueu sua xícara de café feita por encomenda. O café manteve-se em vapor e perfumado como se tivesse acabado de ser colocado graças ao mecanismo de ajuste embutido no copo. O homem vestido de jaleco lambeu seu lábio inferior. Costume de quando ele ficava imerso em pensamentos.

"Você está pensando em coletar mais amostras", disse ele.

"Vivos."

"Sim, nós já coletamos algumas amostra de corpos mortos. Mas não podemos dizer que são o suficiente, no entanto. Queremos um pouco mais."

"Se você quiser, eu posso encontrar maneiras de procurar por eles. Quantos você precisa?"

"Eu vou relatar a você mais tarde com quantos nós precisaremos para cada condição baseado no sexo, idade e histórico de doença."

"Isso seria ótimo. Então, e os vivos? Você quer que eu prepare a coleta?"

"Não, eu preciso de mais tempo."

"Por quê?"

"Os dados das amostras coletadas ainda estão incompletos. Ainda estamos executando análises e enviando-as para o banco de dados. Eu quero um corpo primeiro."

"Está demorando muito para alguém como você. Que raro."

"Se formos capazes de fazê-lo publicamente, as coisas seriam muito mais tranquilas. Mas fazer isto em segredo vai demorar o dobro do tempo. Eu quero que você tenha isso em mente. Além disso, devemos entrar na fase de amostras vivas somente depois que o banco de dados das amostras dos mortos estiver completo. Isso foi uma ocorrência inesperada a qual teremos que investigar por que motivo isso aconteceu nesta fase. Tudo vai levar tempo..."

"Eu sei", admitiu o homem. "Eu não estou te apressando. Certifique-se de que tudo seja realizado de forma cuidadosa, completa e perfeitamente. Isso tudo está ligado às raízes do futuro da No. 6. Sim ― e esta é a última peça."

"A última peça para fazer deste lugar uma Cidade Santa, no sentido real, hmm". O homem do jaleco riu. "Um brinde para o Grande Líder". Ele levantou sua xícara de café brandamente.

"E aplausos para o Grande Cérebro por trás de tudo." O homem ergueu a xícara também. Houve um momento de silêncio. O homem de jaleco falou com uma voz ligeiramente rebaixada.

"Mas seria realmente uma coisa boa fazer isso?"

"O quê?"

"A coleta de amostras vivas. Ouvi dizer que um certo rato está com ele."

O homem abaixou a sua xícara de café, e limpou os lábios com os dedos.

"É apenas um rato. Deve ser só um obstáculo."

"Se você pudesse pegá-lo vivo também ― eu estou interessado nele."

"Você quer abri-lo?"

"Uma autópsia, hmm. Isso seria bastante agradável. Gostaria de investigar todos os cantos de seu corpo. Mas antes disso, precisamos de mais amostras."

O homem de jaleco de repente se levantou e começou a caminhar silenciosamente no tapete espesso. Ele caminhou com impaciência, dava passos grandes com as mãos atrás das costas. Era um mau hábito que ele tinha desde que era jovem. Seguindo os movimentos do homem de jaleco com o seu olhar, o outro homem reclinou profundamente em sua cadeira.

"Sim, essa é a questão principal", o do jaleco continuou. "O número total de amostras é severamente deficiente. Precisamos de mais, Fennec." Fennec era um apelido que tinha sido dado ao homem quando ele era jovem. A raposa do deserto. Ela tinha o menor corpo e as maiores orelhas de sua espécie. Suas orelhas, que poderiam atingir até 15 centímetros de comprimento, não só eram bem adequadas para liberar o calor do corpo de forma eficaz, com também possuíam a capacidade de audição afiada que poderia detectar até mesmo um salto de um gafanhoto na areia. Ele também ouviu que, ao contrário do seu aspecto bonito, tinha uma personalidade viciosa.

Não era um apelido que ele gostava muito. Não o usava, nem era chamado pelo apelido há pouco tempo. Havia quase se esquecido disso, mas ele não sentia a mesma repulsa a esse nome como em sua juventude. Sentia-se até um pouco afeiçoado a isso agora.

Fennec. A raposa do deserto. Não é ruim.

"Nós também não temos amostras vivas suficientes. Eu gostaria de pelo menos dois, não, mais de três ao alcance. Mas isso pode ser difícil..."

O homem no jaleco continuou murmurando para si mesmo e o ritmo de seus passos aumentava cada vez mais rapidamente. Ele estava completamente alheio a tudo ao seu redor. Provavelmente não tinha sequer percebido que ele havia chamado o homem de Fennec. Era assim desde que ele era jovem. Suas pesquisas e experimentos, sua especulação, sua satisfação. Era tudo o que se sabia sobre ele, nunca tinha demonstrado qualquer interesse em relação às coisas externas a ele. Ele não mostrava anexos ao poder, dinheiro ou mulheres. Ele não via a necessidade da filosofia, da fé ou da moral em sua vida. Um cérebro de inteligência rara e uma alma vazia...

― É por isso que ele é ainda mais útil.

O homem acostumou o seu olhar para o ritmo dos passos da figura vestida de jaleco, e sorriu.

― Uma alma não seria tão útil para você. Se fosse, seria apenas para declarar sua lealdade a mim.

O de jaleco parou de caminhar.

"Fennec, vamos criar outra amostra viva. Eu quero uma mulher dessa vez. Pode ser difícil. Sim, esta fase será muito difícil... mas é por isso que devemos nos preparar antes."

"Vamos fazer isso."

"Há um grande risco de fracasso, no entanto..."

"Fracasso e sacrifício são todas as coisas que devemos passar a fim de obter progresso. Não se preocupe, nós vamos ser capazes de superar e segurar a peça final em nossas mãos."

"Eu acho que você está certo", o de jaleco concordou.

"Vamos jantar então? Isso provavelmente não vai despertar muito o seu interesse, mas eu já tinha tudo preparado. O prato principal será cordeiro. Eu também tenho um vinho notável para acompanhar."

"E café após a refeição?"

"Claro. Mas eu te peço, pelo menos tire esse jaleco enquanto comemos."

O homem bateu levemente no ombro do de jaleco. Então ele olhou de esguelha a cena pela janela. Através do vidro grosso e sem mácula, as estrelas começavam a piscar.

***

"É aqui."

O pé do Nezumi parou. Eles pararam em frente a um prédio de três andares. Pelo menos, seu aspecto era muito melhor que o hotel de Inukashi, porém no sentido de que também estava caindo aos pedaços, eles não eram muito diferentes.

A entrada em arco e as paredes de tijolos vermelho poderiam ter sido parte de uma cúpula, mas agora estavam estrangulados por trepadeiras, se desintegrando no lugar e irradiando uma aura de dilapidação. Nezumi levantou seu queixo.

"Tem alguém em casa."

Havia uma luz na janela central do terceiro andar. Pelo seu brilho, era provavelmente uma lâmpada elétrica. Isso significava que havia energia elétrica neste edifício.

Eles empurraram as portas abertas de madeira e entraram. Não havia sinais de pessoas no primeiro ou segundo andares. As escadas, que também eram de madeira, rangiam ruidosamente a cada passo que davam.

Se o palpite do Inukashi foi bom, um ex-repórter do jornal Folheto Latch estaria vivendo aqui.

Eles subiram até o terceiro andar. Havia luz saindo de uma fresta da porta aberta para o corredor de madeira que estava forrado com uma camada grossa de poeira. Na piscina de luz, havia várias garrafas de vidro vazias. Era fácil dizer para que essas garrafas foram usadas. Shion não precisou pegar uma para verificar, o cheiro forte do álcool encheu o ar ao seu redor. Em um canto escuro do corredor, havia pilhas enormes de documentos empacotados, e latas vazias espalhadas sobre eles. Apenas a porta a qual a luz saía não era nem suja nem quebrada, embora fosse muito velha. Shion levantou a mão para bater, mas Nezumi o deteve.

"O que há de errado?"

"Não, apenas... o ar é estranho."

"O ar? O que você..."

Antes que Shion pudesse terminar a frase, ouviu um grito de dentro do quarto. Ele pertencia a um homem. Houve o som de móveis sendo derrubados. Uma voz estridente gritando com raiva. Ele pôde ouvir o som de vidro sendo quebrado.

"Parece sério. E agora Shion?"

"O que você quer dizer com ‘e agora’?"

"Parece que eles estão ocupados no momento. Devemos voltar outro dia?"

"Como se eu fosse fazer isso".

"Foi o que eu pensei."

Houve um barulho de novo. A voz profunda de um homem gritou por socorro. Shion tentou irromper na sala, mas Nezumi o deteve e abriu a porta.

A sala estava bem iluminada por uma lâmpada de grande porte. Foi a luz mais brilhante que Shion havia visto desde que chegou ao Bloco Ocidental. A luz iluminava claramente todos os cantos do quarto. Perto da janela havia uma mesa grande, e contra a parede tinha um sofá com têxteis bastante inexpressivos. O chão estava coberto, novamente, com feixes de papel e livros que estavam empilhados ou espalhados a esmo. No entanto, ele havia notado todas essas coisas quando tomou uma boa olhada em volta da sala muito mais tarde. O que Shion vira imediatamente por cima do ombro do Nezumi eram duas pessoas emaranhadas uma com a outra. Um homem e uma mulher. O homem estava de calças, mas a sua parte superior do corpo estava nua. A mulher estava vestida toda de preto. Seu cabelo tinha um corte em linha reta na altura dos ombros, e também era preto. Ela estava cavalgando o homem. A bainha de sua saia rasgada havia virado para cima de modo a revelar sua coxa. Ela tinha o corpo bem dotado e curvado. Tinha um rosto redondo, nariz redondo e olhos redondos. Seu rosto estava tenso.

A mulher moveu a mão direita para cima.

"Socorro!" O homem gritou. Shion percebeu que havia uma faca na mão da mulher. Nezumi estalou sua língua rapidamente.

"Você não serve para nada!" A mulher gritou. Nezumi se moveu ao mesmo tempo. Silenciosamente e em um flash, ele estava segurando o pulso da mulher em pleno movimento. Sem uma palavra, ele torceu-o.

A faca caiu no chão. Shion às pressas pegou-a. Ele viu uma bainha vermelha para a faca no canto de sua visão. Ele a agarrou reflexivamente e guardou a lâmina. Sentiu-se aliviado.

"Que diabos você está fazendo?" A mulher gritou estridentemente. Ela tinha caído de bunda por ter sido empurrada por Nezumi.

"Eu não acho que você deve ficar balançando um brinquedo como esse, moça. É perigoso", Nezumi disse suavemente.

"Me deixa. O que isto tem a ver com você? Esse não-serve-para-nada, merda de um mulherengo merece morrer."

A mulher se dissolveu em lágrimas no chão. Ainda segurando a faca, Shion olhou para ela corcunda. Não sabia o que fazer. Não havia nada no manual de Shion, que lhe dissesse como lidar com este tipo de situação. Nezumi ajoelhou-se e gentilmente acariciou suas costas, enquanto ela balançava em soluços. Ele abaixou a voz para um murmúrio silencioso.

"Não chore. Não... você deve chorar. Chore o conteúdo de seu coração. Você vai se sentir melhor assim. Vá em frente, chore"

Era como uma canção de ninar. Seu sussurro era tão profundo e calmo que embebedava na alma de Shion como o som da chuva que penetrava no quarto do porão. Ele podia ver a agitação da mulher desaparecer enquanto sua gentileza e tranquilidade a inundavam. Mas não havia mansidão ou tranquilidade no olhar do Nezumi. Depois de tomar uma rápida olhada ao redor da sala, seu olhar parou no homem de meia-idade que estava ofegante, seminu no chão. Então seus olhos se detiveram em Shion, que estava imóvel, preso ao chão. Shion deu um passo adiante.

"Um... você é Rikiga-san? Que trabalhava para o jornal Folheto Latch?"

O homem levantou-se cambaleando e colocou seus braços por meio de uma camisa que estava estendida sobre o sofá. Embora não exatamente obeso, ele era bastante carnudo em torno dos ombros e da cintura. Havia uma cicatriz branca que corria na diagonal sob seu ombro direito.

"Hum... Achamos a pessoa errada?" Shion perguntou incerto. "Nós viemos aqui hoje porque ouvimos que poderíamos conhecer a um Rikiga-san aqui"

"Você achou ele."

Foi a mulher que tinha respondido. Seu rosto estava uma bagunça em mar de lágrimas, suor e ranho, mas ela não estava chorando mais.

"Este não-serve-para-nada mentiroso vai por esse nome. Ele já foi um repórter de jornal, mas agora essa desculpa de merda para um homem se reduziu a fazer porcarias de revistas pornográficas para pagar seu hábito de bebidas."

"E quem foi a única que teve um ataque histérico quando foi abandonada pelo o que ela diz ser desculpa de homem, hein?" respondeu o homem que se chamava Rikiga.

"O que você está falando?" a mulher atirou de volta. "Você é o único que disse que queria se casar!"

"E eu estou lhe dizendo, problemas têm surgido, e não posso me casar com você."

"Que problemas?"

"Bem... ah, hum, você sabe..."

"Se você vai tentar me enganar, pelo menos prepare uma mentira adequada com mais tempo. Eu não sou uma pessoa que acredita em idiotices."

Com suas próprias palavras, provocou ira que ameaçava transbordar novamente. De repente, ela se lançou a Shion respirando rápido.

"Me dê a faca de volta!"

"Não, eu não posso fazer isso" Shion resistiu. "Pare, por favor. É perigoso."

"Eu disse para me dar essa maldita coisa de volta. Que 'problemas', hein? Vamos ouvir sua desculpa. Eu não posso acreditar que estou sendo tratada como bosta desse jeito. Eu vou te matar".

"Pare, cuidado..."

Nezumi se levantou. Com um passo, ele caminhou para o lado de Rikiga e colocou a mão em seu ombro.

"Pai, ela vai ser a nossa nova mãe a partir de agora?"

A mulher congelou. Sua boca abriu e contraiu a pálpebra.

"Pai?"

Nezumi assentiu com um sorriso carinhoso.

"Sim. Somos seus filhos."

"Você... Você teve filhos? Eu nunca ouvi falar nada sobre isso antes."

A voz da mulher voltou rouca. Rikiga piscou.

"Nosso pai e mãe se separaram há muito tempo", explicou Nezumi. "Mas mãe faleceu no mês passado, e assim voltamos para viver com o nosso pai. Nós já ouvimos antes que o pai tem alguém que ele ama. Mas ele disse que iria desistir de se casar para que pudéssemos viver juntos como uma família novamente, nós três. Certo, irmão?"

"Hum?"

"Viemos até aqui em busca do nosso pai, certo?"

"O quê? Ah, sim, viemos. Somos seus filhos. Prazer em conhecê-la."

Rikiga pigarreou algumas vezes.

"... É isso. Eles são os meus filhos. Eu tenho que cuidar deles agora... criar esses dois sozinho. Viver vai se tornar muito mais difícil. Eu não podia deixá-los por isso mesmo, querida. Eu te amo, eu te amo tanto. Mas essas crianças precisam de seu pai... Eu não podia te sobrecarregar pedindo-lhe para ser a mãe deles. Eu não tinha escolha a não ser lhe pedir para terminar comigo."

"Então foi isso o que aconteceu..."

"Bem... foi sim."

A mulher passou a mão em seu cabelo e suspirou. "Então, é isso."

"É isso."

A mulher passou a mão pelo seu cabelo novamente, e pegou o casaco e a bolsa, que estavam deitados no chão. Ela olhou para Shion, e inclinou o queixo ligeiramente para trás.

"Você tem o cabelo estranho. É uma peruca?"

"Ah, hum... coisas que aconteceram..."

"Mais problemas? Tal pai tal filho, vocês devem amar seus problemas. Ah, tudo bem. Se é isso o que está acontecendo, eu vou terminar com você. Como se eu fosse querer um homem de meia-idade com filhos, de qualquer maneira."

A mulher balançou energeticamente sua mão.

"Adeus, então. Foi divertido enquanto durou."

A porta se fechou. Shion deixou a faca em sua mão cair no chão. As palmas de suas mãos estavam suadas de nervos.

Rikiga levantou-se da cadeira e começou a recolher os pedaços de vidro quebrado. Provavelmente havia algum tipo de bebida a qual seu conteúdo tinha feito uma mancha no tapete que emitia um cheiro tão insuportável de álcool que fez Shion se sentir mal.

"Meu Deus, ela certamente se deixou ir", resmungou Rikiga. "Foi divertido enquanto durou, ein? Colocar um rosto calmo no último minuto. Puxa vida."

Rikiga olhou alternadamente Shion e Nezumi, e sorriu.

"Vocês me salvaram da forca. Primeiro, deixe-me lhes dar os meus agradecimentos."

Ele tinha ombros largos e fortes e altura considerável. A ponta de seu nariz era alta, e bem adequada ao seu bigode. Seu rosto não era nem bonito nem feio. Era um rosto que era ao mesmo tempo enérgico pelo otimismo e cansado pelas dificuldades, era um rosto de astúcia e uma resistente força de vontade de aço.

"No entanto, sua atuação poderia ter sido melhor. Especialmente para uma super estrela como você, Eve".

Nezumi pegou a faca do chão e esboçou um sorriso.

"Você sabe sobre mim?"

"Eu sou seu fã. Fui ver seu show na semana passada."

"Isso é bom de ouvir, mas eu não apareci em nenhum show na semana passada."

"Sério? Bem, de qualquer maneira, nós queríamos fazer uma matéria especial em nossa revista sobre você. Pedimos ao seu gerente para fazer uma entrevista com você, mas ele recusou."

"Ele provavelmente recusaria para uma revista como esta." Os dedos do Nezumi passaram casualmente através das páginas. Na capa tinha uma foto de uma mulher nua. No geral, ela estava um pouco embaçada. Todas as outras páginas eram um pouco parecidas. Mulheres nuas, homens seminus. Luxúria e provocação transbordavam das finas páginas da revista.

"Isto é um estímulo para os jovens", disse Rikiga. "Ensina-lhes tudo sobre controle de natalidade para pegar mulheres."

"Você deve fazer uma matéria sobre a maneira correta de terminar com uma mulher, velho."

Nezumi jogou a revista de lado. Rikiga levantou as mãos num gesto exagerado.

"Ai Eve, isso foi muito duro. Pensei que você era mais do que um marica."

"É bom ouvir isso vindo de alguém que estava preso no chão por uma mulher há apenas um minuto atrás."

"Eu estava bêbado, certo? E ela apenas saltou em mim de repente – mas eu nunca teria imaginado que ela tinha uma faca. Coisas assustadoras, essas mulheres."

Shion foi meio passo para frente.

"Eve... é esse o seu nome verdadeiro, Nezumi?"

"De jeito nenhum. É apenas para o trabalho."

"Trabalho... então você é um ator de teatro."

"Nada tão elegante assim. Pelo menos estou alguns passos acima desta revista."

"Mas... ah," murmurou Shion em realização. "Então é por isso que você fala e se move tão graciosamente."

Um foco de luz brilha sobre um palco escuro, iluminando um único ator enquanto ele flutua para fora da escuridão. Cativando os olhos, ouvidos e almas de todos que assistem. Os anéis de sua voz soam, às vezes com um ar, subindo elegante, às vezes com um tremor dolorido como um vento que assobia baixo para o chão.

Nezumi bufou.

"O que você está imaginando, Shion? Estamos falando de um teatro aqui, no Bloco Ocidental. As pessoas que tem um pouco de dinheiro sobrando saem para esquecer as suas preocupações por um tempo. Não temos qualquer queda de cortinas bordadas, roupas decentes, ou adereços. É principalmente música improvisada ou dança."

"Mas mesmo assim faz a gente esquecer as preocupações, certo?"

"Hum?"

Shion estava olhando Nezumi sem piscar. Nessas últimas horas, ele tinha experienciado quase tanto como – não – talvez até mais do que ele havia visto e ouvido em toda a sua vida. É claro, isso ainda era apenas um vislumbre. Mas ele teve um vislumbre de como dura e brutal era viver apenas um dia, uma hora, até um momento, neste mundo. Se essas pessoas, em seu breve momento de descanso, decidissem ir para este lugar onde estava Nezumi por seu próprio livre arbítrio, e aí que seria incrível. Isso não enchia a barriga, nem matava a sede. Mas as pessoas ainda ansiavam por este palco extraordinário e as histórias que eram contadas neles, e imersos nelas, se esqueceriam de sua melancolia. Eles batiam palmas, choravam, riam e se movimentavam com ruído. Não havia como dizer quando a morte poderia vir varrê-los. Mas neste momento, eles ainda poderiam viver e desfrutar a vida. Poderiam viver e desfrutar a vida ainda mais por causa disso.

"Eu acho que é incrível, Nezumi."

Nezumi suspirou, apressadamente notou seu ato e fez uma careta.

"Pare com isso. Não é tão rósea como você acha que é. Você provavelmente nunca viu nem mesmo um palco."

"Você está certo. Na Nº 6, os alunos não tinham permissão para assistir a peças."

"Foi o que eu pensei. Especialmente para top-ranks como você, Sr. Elite. Tudo o que você assistia ou lia era estritamente limitado, embora você provavelmente nunca sequer percebesse que isso estava sendo retido de você."

"Nº 6?"

Rikiga parou em meio-gesto quando trazia um cigarro aos lábios. "Ei, espere um minuto. Você está dizendo que esse menino de peruca é da Nº 6? Você deve estar brincando comigo."

"Isso não é brincadeira, velho. E ele não está usando uma peruca."

"Então é algum tipo de chapéu novo? É isso o que está na moda nos dias de hoje?"

"Não, é o meu cabelo de verdade", respondeu Shion. "Só... um monte de coisas aconteceram devido a... hum, problemas."

"Ah?" Rikiga disse. "Não há nada que eu amo mais do que problemas. Se você realmente saiu da No. 6, deve ter problemas como nenhum outro. Quero ouvir a sua história. E a razão por trás desse cabelo."

Nezumi içou-se sobre a mesa, e se deixou balançar as pernas.

"Sentiu algum cheiro, velho?"

"O quê?"

"Seu nariz se contraiu. Você farejou uma informação interessante, ou o quê?"

Rikiga apalpou o nariz. Nezumi continuou rindo baixinho.

"É o mesmo gesto que os cães selvagens fazem quando eles sentem o cheiro de comida. O nariz se contrai, então fica vermelho."

A testa de Rikiga franziu, e uma expressão de claro desagrado distribuiu por suas feições.

"Eu já mencionei isso antes, Eve. Eu acho que eu tinha ideias erradas sobre você. Pensei que era mais delicado e refinado. Eu nunca teria imaginado tal uma criança rude e impetuosa. Estou desapontado, francamente."

"Eu pensei que você era meu fã"

"Pode me excluir dessa a partir de agora. Bom Deus, eu não sei por que você gosta tanto de provocar adultos assim."

"Karan", Nezumi falou calmamente. Rikiga congelou. "Você conhece uma mulher com esse nome?"

O corpo de Rikiga, que começava a mostrar os sinais de ganho de peso em sua meia-idade, oscilava perigosamente. Sua garganta contraiu quando ele engoliu em seco.

"Vocês conhecem Karan...? Vocês são conhecidos dela?"

"Ela é minha mãe."

Rikiga pareceu não entender as palavras de Shion imediatamente. Ele absorveu uma respiração profunda.

"Mãe?"

"Sou... Ah, meu nome é Shion. Sou o filho de Karan".

"Filho... filho de Karan, hein... quem é o pai?"

"Eu não posso dizer."

"Você não... você não sabe quem ele é? Ele está morto?"

"Não, eu ouvi de minha mãe que eles se separaram logo depois que nasci. Fomos apenas nós dois toda a minha vida. Eu nunca conheci meu pai."

Nezumi continuou a rir.

"Você está dizendo que há uma possibilidade de que ele possa ser seu filho?"

"Não... não pode ser... espere um minuto, er, qual é o seu nome mesmo?"

"Shion".

"Shion... Áster, hum. Karan gostava muito de flor. Uh... Shion, você pode esperar por um minuto? Eu vou te dar uma bebida... ah, quero dizer, uma não-alcoólica, é claro... Do que você gostaria? eu tenho de tudo. Ah sim, aqui... vamos para um lugar mais confortável, onde possamos conversar."

Rikiga bateu na parede atrás do sofá e pressionou sua mão direita sobre ela. A parede silenciosamente deslizou para o lado.

"Uau", Nezumi assobiou. "Reconhecimento de impressão digital? Você tem truques extravagantes neste lugar. Acho que não é tão surrado quanto parece."

Além do muro apareceu um quarto bem extravagante. O chão era forrado com um tapete de luxo, e havia cadeiras de couro, um sofá de couro, e uma mesa. Havia um fogo que ardia na lareira assentada na parede.

"Entre, por aqui. Vou pôr um pouco de café. Está com fome? Tenho algumas tortas excelentes."

Shion havia esquecido que ele estava morrendo de fome. Seu estômago vazio doía.

"Que tipo de torta?" Nezumi disse. "Eu prefiro de carne."

"Você pode calar a boca." Rikiga acenou irritado com a mão para o Nezumi.

"Você é horrível, nos tratando de forma tão diferente assim."

Rikiga ignorou e desapareceu em uma pequena sala adjacente. O aroma do café logo soprava sobre a eles.

"Café e torta, hein. Eu não acredito nisso." Shion mal tinha experimentado qualquer alimento salgado desde que havia escapado da No. 6. Nezumi deixou seu olhar vagar sobre o quarto.

"Você está certo. Eles são itens de luxo, com certeza. E vendo como esse quarto é equipado... parece que a informação de Inukashi foi direto ao ponto, afinal."

"Se for esse o caso..." Shion disse pensativo. "Não, isso não pode ser..."

"O que não pode ser?"

"Minha mãe me disse uma vez que meu pai gostava de dinheiro e de mulheres, e estava a um passo de se tornar um alcoólatra, um sem esperança que..."

"Servia para nada?"

"Isso. Um sem esperança que servia para nada... mas ela disse que ele era realmente gentil, honesto e direto."

"O que é que isso quer dizer? A sua mamãe ainda gosta dele?"

"Eu não tenho ideia... mas se encaixa com a sua imagem, certo?"

Nezumi lançou um olhar para a entrada da pequena sala, e fez uma careta.

"Eu não sei a parte sobre gentil, honesto e direto, mas ele com certeza é rápido e solto com as mulheres, e já é meio caminho andado para ser um alcoólatra. Agora que você mencionou, eu acho que vocês são meio que similares ao redor dos olhos. Bem, não temos teste de DNA aqui, então não haveria como saber com certeza... Shion, você não parece muito bem. "

"Ah, não... Eu provavelmente apenas estou com fome..."

"Não se preocupe. Apenas a ideia dele ser o meu pai me faria sentir mal também. Eu provavelmente teria uma febre."

"Você está com febre? Você está bem?" Rikiga colocou uma bandeja em cima da mesa. Sobre ela tinha café, torta e um copo de uísque. Shion ficou com água boca.

"Karan gostava de torta, também", disse Rikiga reflexivamente. "Ela também gostava de pão e bolos."

"Ela ainda ama isso", respondeu Shion. "Ela tem uma padaria para se sustentar agora."

"Padaria, hein... mm-hmm. Entendo."

Uma ideia acendeu na mente de Shion.

"Você se lembra do bolo de cereja?"

"Bolo de cereja? Eu não estou muito certo... o quê, você quer comer bolo de cereja?"

"Não, apenas... a minha mãe me disse uma vez que no dia em que nasci, meu pai chegou em casa com três caixas, cada uma com um bolo inteiro de cereja dentro. E os dois comeram juntos."

Rikiga levantou o copo de líquido âmbar e apertou os olhos.

"Isso é... uma das lembranças de Karan, hein? Mas infelizmente eu não me lembro disso. Eu nunca comprei um bolo de cereja ou comi com Karan. Eu nunca fui mesmo um residente da N º 6. Shion, Eu não sou seu pai ".

Nezumi engoliu sua boca cheia de torta e cutucou o ombro do Shion.

"Então ele disse. Que alívio, hein, Shion?"

"O que isso quer dizer, Eve?"

"Isso significa exatamente o que isso significa."

Shion pegou o memorando de Karan.

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"Nós contávamos com este memorando para nos trazer aqui."

Rikiga olhou fixamente para os rabiscos da escrita de Karan. Shion falou.

"Pouco depois de eu... ter escapado da Nº 6, minha mãe me mandou isto. Ela deve ter pensado que você ainda estivesse aqui. Eu estou apenas querendo saber como você..."

'Conhece minha mãe' era o que Shion pretendia dizer depois, mas suas palavras ficaram presas em sua garganta. Uma lágrima caiu do olho de Rikiga.

"Karan... ela não se esqueceu de mim... ela se lembrou de mim... sua escrita... ainda a mesma que eu lembro..."

A cabeça baixa e os ombros largos tremiam ligeiramente. Nezumi cutucou Shion no ombro novamente.

"Egh, você vai ficar olhando para isso. Este velho é um bêbado chorão. Nesta idade fica demasiado vergonhoso falar sobre essas coisas, ha."

"Cale a boca. O que há de errado em chorar um pouco? Você está sempre chorando e gritando no palco."

"Isso tudo é atuação. O que você está dizendo é que está atuando também, velho?"

Rikiga encarou Nezumi com os olhos lacrimejantes, e levantou-se pesadamente. Ele pegou uma pasta na parte de trás de uma estante robusta. Ele apanhou uma única foto dela e colocou-a na frente de Shion.

"É Karan e eu."

Uma imagem de sua mãe estava sorrindo para ele, jovem, bonita e com um vestido de uma peça sem mangas. Ao lado dela estava Rikiga, muito mais magro e bem proporcionado do que agora, mesmo com uma pitada de infantilidade em suas feições.

"Ela foi tirada décadas atrás, não muito tempo depois de nos conhecermos. Karan ainda era estudante, ela estava interessada nas colunas que eu escrevi, e veio me visitar. O terceiro andar do prédio da empresa era o meu local de trabalho, e quando eu tinha acabado de voltar de uma entrevista, ela estava sentada lá. Era um dia chuvoso, e trovejava lá fora, mas ela veio todo o caminho até ali para me ver..."

Rikiga soluçou. Shion e Nezumi se entreolharam. Nezumi deu um suspiro longo, exagerado.

"Você era um repórter, não era, velho? Você pode resumir um pouco mais eficientemente? Então, basicamente o que você está dizendo é que você e a mamãe do Shion se encontraram pela primeira vez no terceiro andar do prédio da empresa Folheto Latch, estou certo?"

"É isso mesmo. Nós nos dávamos muito bem... Eu gostava de passar o tempo com Karan. Eu acho que deve ter sido amor. Naqueles dias, No. 6 não era tão fechada como é agora. As pessoas eram mais ou menos livre para ir e vir. Eu havia começado a minha carreira como jornalista, e uma das coisas que eu estava buscando era sobre a No. 6."

"Buscando? Então, você tinha algumas suspeitas sobre a cidade, né, velho? Você deve ter tido um nariz decente naquela época. Pena que é inútil agora".

Rikiga fixou Nezumi com o olhar de novo, e seu rosto se contorceu em uma posição estranha de meio careta.

"Eve, eu não estava brincando quando disse que era seu fã. Quando eu fui te ver, você estava de pé no centro do palco e recitava um poema. Arthur Rimbaud, eu acho que foi... Fiquei fascinado por sua aparência e sua voz."

Nezumi lambeu a graxa da torta de seus dedos, e cruzou as pernas.

"Mas, na verdade, eu chorei muito! O amanhecer é de partir o coração
Toda lua é atroz e todo sol amargo.
O amor acre inchou-me com torpor inebriante
O que minha quilha! O estouro deixe-me ir para o mar!
[1]

- Shion, sabe o que é isto?"

"Uma estrofe de 'O Barco Ébrio', se não me engano."

Nezumi riu. "Está correndo na curva da aprendizagem, não é? Eu posso te tratar bem para um pouco mais de serviço de fã se você quiser, meu velho. Que tal?"

"Não, obrigado. Mas deixe-me dizer, você foi brilhante no palco. Eu quase não posso acreditar que era a mesma pessoa que este pirralho insolente que está na minha frente. Então me faça um favor e pare de falar."

"Não se irrite", Nezumi falou mole. Ele descruzou as pernas, e seu rosto ficou sério. A expressão desapareceu de sua voz. Tornou-se plana e pesada. Era uma voz surpreendentemente diferente de momentos antes.

"No início, seis cidades foram fundadas, incluindo a No. 6, como cidades-modelo para o futuro. Eram modelos criados na busca de uma maneira onde a humanidade poderia viver confortavelmente em uma terra que foi reduzida a escombros, cheio de padrões climáticos anormais principalmente devido ao dióxido de carbono do consumo massivo de combustíveis fósseis durante as guerras. Foi isso, em primeiro lugar. O plano era que cada cidade ira tomar parte na pesquisa e no desenvolvimento de coisas como a energia limpa, que poderia ser produzida em massa para substituir os combustíveis fósseis e energia nuclear, e a tecnologia científica, que vai desde a nanométrica até as escalas cósmicas, de uma forma apropriada para as condições de cada cidade. Isso foi na esperança de que algum dia, todos nesta terra estaria livre de qualquer ameaça à sua vida, seja ela de guerra, catástrofes, ou pragas. E esse primeiro passo em direção a um mundo livre de ameaças de vida, a pedra angular da esperança, era a Nº 6. Em todos os aspectos, este era o objetivo em primeiro lugar. Não era isso, velho? "

Rikiga tomou em um gole o que sobrava em seu copo de uísque e tossiu levemente.

"Então acho que os clássicos não são as únicas coisas que você pode recitar de cor, Eve. O gerente me disse que não sabia o seu verdadeiro nome, idade, ou onde você nasceu. Ele disse que você era um andarilho que só apareceu do nada. Mas eu não acredito - você não é só um ator viajante. Qual é a sua verdadeira identidade?"

"Mete o nariz no que não é da sua conta mesmo depois de tudo. Assim, durante o tempo em que esta foto foi tirada, No. 6 ainda era vista como a esperança para toda a humanidade, certo? Mas você tinha dúvidas. Você devia ter um nariz fino para cheirar algo suspeito lá."

"Quando me tornei jornalista, No. 6 já estava em processo de mudança", disse Rikiga. "As organizações de investigação estavam reunindo todos os tipos de mão de obra qualificada, e os seus departamentos floresceram; Mas por outro lado, a informação e a liberdade de expressão foram se tornando mais e mais restritos. Pensei, isso realmente vai se tornar uma cidade utópica? Eu tinha minhas dúvidas. Você e a sua boca inteligente estão certos. Naquela época, eu tinha um nariz que podia farejar algo que não podia ver. Enquanto eu estava lutando, as barreiras se propagaram e cresceram mais seguras, e investigar a partir do lado de fora tornou-se muito mais difícil. Logo, você não podia nem entrar ou sair sem autorização da cidade. Isso aconteceu de repente. Desde que eu era um jornalista, fizeram com que eu nunca pudesse colocar os pés naquele lugar novamente. Eles eliminaram a liberdade de imprensa, assim como tal. Claro, isso significava que eu também não podia mais ver Karan. Para dizer a verdade, acho que me foi mais duro do que não ser capaz de fazer o meu trabalho.

Um pouco mais de uma década mais tarde... chegamos ao o que você está vendo agora. As imediações da Nº 6 se tornaram lugares cujo único propósito é de servir o centro da cidade. Terras agrícolas, pastagens, florestas recreativas ― esta é a lata de lixo deles. Destituição, disputa, doenças, violência ― todo o lixo que a Nº 6 cospe acaba aqui. Vocês dois provavelmente não sabem disso, mas esta cidade costumava ser pequena, mas era um lugar muito mais decente do que é agora. Pelo menos, não um lugar que foi classificado e arquivado afastado com um rótulo impessoal como o Bloco Ocidental. Porém eles transformaram este lugar numa lata de lixo. O que é essa esperança que eles estão falando para agora? Cidade Santa – é como alguns nomeiam essa desgraça. Parece mais como um demônio que libera toxinas em todos os lugares que vai."

"Eu acho que os seres humanos e as cidades são semelhantes, então," comentou Nezumi. "Com o tempo eles esquecem as ambições que tinham, e se corrompem para nenhum fim."

Nezumi tomou o resto de seu café, e lançou um olhar sobre o homem que tinha acabado de falar.

"O que isso quer dizer? Você está falando que eu estou corrompido?"

"Você pode dizer que não está?"

Shion deixou seus olhos fitarem o perfil do Nezumi. Ele sentiu que Nezumi estava provocando Rikiga. Rikiga respondeu a essa provocação. Não, talvez ele tivesse acabado de cair na armadilha hábil.

"Você está me criticando sobre como eu me tornei um bêbado, né? Como eu me reduzi a fazer revistas cheias de fotos nuas, a beber tanta bebida quanto eu poderia usá-la para banhar, e ainda por cima, a quase ser morto por uma mulher."

"Você parece amargo, velho. Mas, usar palavras bonitas não vai ajudá-lo a sobreviver aqui."

"Todo mundo sabe disso."

"Eu estou curioso é sobre como esta sala está decorada. Uma sala quente e boa comida. Você não consegue essas coisas com facilidade aqui. Eu não consigo ver todos esses seus rendimentos provenientes de revistas pornôs. Isso significa que você tem outras cartas na manga. Estou certo?"

Nezumi sorriu. Era um sorriso arrogante, mas elegante, como se emitisse um julgamento divino.

"Ouvi dizer que frequentemente funcionários de altos cargos da No. 6 vêm aqui secretamente."

A boca de Rikiga fez um movimento de mastigação.

"Velho, eu soube que estes homens te dão ordens para trazê-los o tipo de mulher que eles querem, como o intermediário em um acordo. Eu acho que as conexões de seus dias como jornalista acabou sendo bastante útil. E o pagamento enorme você recebe desses caras paga este estilo de vida luxuoso. Você suga os caras que estão bem no centro da cidade a qual você acabou de chamar de demônio, enquanto você vive à custa de mulheres que não têm escolha senão vender seus corpos para evitar o frio e a fome. Você não chama isso de corrupção?"

Toda a expressão desapareceu do rosto de Rikiga. Não tinha luz ou sombra, e pareceu estranhamente apagada. As chamas da lareira iluminavam a metade direita do rosto.

"... De onde você ouviu sobre isso?"

"De um cão."

"Um cão?"

"Um cão me disse que ouviu você e um homem sussurrando sob as escadas. Depois, o homem entrou em um carro e se dirigiu para a direita através das portas especiais do Escritório de Controle de Acesso, e entrou na Nº 6 sem qualquer dificuldade. O tipo de pessoas que podem ir entre a Nº 6 e o Bloco Ocidental livremente são limitadas. Só funcionários de altos cargos que têm um cartão especial de identificação com eles podem. Os demais que tentassem, seriam aniquilados nos portões."

Shion engoliu em seco, sentiu que estava assistindo a uma peça de teatro. Ele podia ler nada no rosto do homem, que era de cor vermelha por causa das chamas. De repente, a boca torceu.

"Como você gostaria de se unir, então?"

"Se unir?"

"No. 6 é um lugar chato. Você não tem permissão para ter uma vida desordenada. Mendigos e prostitutas não têm permissão para existir, todo mundo é apático. Então eles vêm aqui para abrir suas asas. Eles vêm, rir das mulheres que se vendem por qualquer mísera quantidade de dinheiro. Os homens reconfirmam que eles são de uma classe especialmente privilegiada, e se sentem felizes com isso mais uma vez. Depois de seu breve momento de diversão, eles voltam para casa aborrecidos. Esses tipos de pessoas são os que continuam vindo."

"Então, o negócio está crescendo, hein? Isso é bom para você."

"Felizmente, sim. Mas suas demandas parecem não ter fim. Eles me dão ordens diferentes a todo o momento. Primeiro, eles querem uma menina de pele escura, depois eles querem uma jovem com uma tatuagem nas costas toda. Fica estressante às vezes."

Shion estava de cabeça baixa. Doía-lhe ouvir Rikiga falar. Nº 6 era uma bela cidade superficialmente. Agora ele estava hesitante em falar que a beleza era real, sendo que, no entanto, foi ordenada. Sua natureza e edifícios mantinham-se em equilíbrio delicado, nem um supervalorizava-se, e todas as pessoas eram gentis e educadas. Por trás de tudo isso encontrava a verdade que ele estava ouvindo agora. Seus olhos se encontraram com os de Karan na fotografia.

Mãe, o lugar onde vivemos, o lugar onde você ainda vive agora, era apenas um monstro usando uma máscara de beleza. Mãe...

"E você está me convidando para acompanhá-lo nessa caça de mulheres?"

Era a voz do Nezumi, seca e quebradiça. Rikiga riu. Era vulgar e insultuoso para os ouvidos.

"Nunca. Isso seria um desperdício de uma boa mão de obra que poderia ser mais bem aproveitada. Eu realmente estive pensando sobre isso desde que eu o vi pela primeira vez no palco. Você poderia arrecadar tanto dinheiro quanto você quiser. Deve ser moleza para você conversar carinhosamente com aqueles rudes entediados para regá-lo com dinheiro. O que você acha? Isso vai pagar muito mais do que aquele teatro velho e surrado."

"Você está me dizendo para ter clientes? O álcool chegou a seu cérebro, velho?"

Rikiga zombou. "Não tente dar uma de bacana comigo. Deus sabe de onde você veio e por onde você anda – um ator vagante como você provavelmente teve experiência com isso de qualquer maneira. Não adianta fingir que você é um inocente."

"Cale-se!"

Foi Shion que havia gritado. Ele chicoteou a xícara de café e o seu conteúdo em Rikiga. Ele pulou sobre a mesa, agarrou-o pela camisa, que estava encharcada, e inclinou-se com todo o seu peso. Rikiga deu um grito curto no momento em que ele caiu no chão.

"Isso é o suficiente!" Shion gritou com raiva. "Como você ousa dizer algo tão degradante! Desculpe-se... desculpe-se com ele!"

Shion montou em Rikiga e sacudiu-o grosseiramente. A parte de trás da cabeça de Rikiga bateu contra o chão repetida vezes. Ainda segurando-o pelo colarinho, Shion fechou as mãos em torno da garganta de Rikiga.

"Não posso... respirar..." Rikiga engasgou. "Shion, por favor... eu realmente não posso... vou me desculpar... então pare..."

"Cale-se! Seu sem vergonha... crie vergonha"

Um par de mãos enfiou-se em suas axilas, e ele foi arrastado para trás.

"Shion, já é o suficiente. Mais uma coisinha e o velho vai desmaiar."

Rikiga se enrolou e tossiu.

"Isso foi uma surpresa", Nezumi murmurou, ainda segurando Shion por trás. Ele realmente parecia atordoado. "Nunca imaginei que você iria recorrer à violência. Eu acho que até você deixa o sangue subir à cabeça às vezes, hum, suficiente para ir atacando pessoas assim."

“... Primeira vez em minha vida..." disse Shion, um pouco sem fôlego.

"Eu posso dizer. Seu coração está a mil por hora".

Shion virou e impacientemente tirou a mão do Nezumi.

"Por que não está zangado?"

"Zangado? Se eu deixasse uma besteira como essa chegar a mim todo o tempo, eu estaria enlouquecido todo o ano. Estou acostumado com isso. Não é grande coisa."

"Idiota!"

"Idiota? Shion, para que você tá explodindo assim?"

"Você é um idiota. O que ele disse não foi uma besteira. Não diga que você está acostumado com isso. Não..."

Seus olhos queimaram. Uma lágrima derramou antes que ele pudesse fechá-los.

"Shion... vamos, não chore. Por que você... Eu não posso acreditar que você está chorando", disse Nezumi exasperado.

"Ele... insultou você".

"Hum?"

"Ele insultou. Ele disse coisas horríveis... queria te juntar com os oficiais imundos da Nº 6. Mas você diz que não é grande coisa. Você não estava nem mesmo bravo com isso... e isso me fez sentir ainda mais impotente e bravo – tão bravo... Eu nem sei mais o que fazer ... "

Nezumi abriu a boca para dizer alguma coisa, depois fechou de novo. Ele puxou a toalha da mesa e levou o fim dele para Shion.

"Isso é tudo o que tenho, mas você pode limpar o seu rosto nisso."

"Ok".

"Shion, aquele que foi insultado fui eu, e não você. Não chore por outras pessoas, não entre em brigas por outras pessoas. Brigue e chore apenas por si mesmo."

"Eu não entendo o que você está dizendo."

"Eu acho que não, às vezes é como se falássemos línguas diferentes. Olha, tem catarro saindo de seu nariz. Limpe-o, vá lá."

"U-hum."

"Eu sempre achei que é impossível compreendê-lo. Mesmo se passássemos toda a nossa vida juntos, eu provavelmente ainda não iria compreendê-lo. Você está bem na minha frente, mas ao mesmo tempo, é como se você estivesse longe. Isso é provavelmente porque..."

Rikiga levantou-se atrás de Shion.

"Sinto muito por interromper o momento, mas eu quero que você saiba que isso é toalha de seda. Tive um momento difícil para conseguir essa coisa, então eu apreciaria se você não limpasse o nariz nela."

Ele olhou para o rosto do Shion.

"Seu rosto com raiva parecia com o de Karan. Eu senti como se ela mesma estivesse me repreendendo. Embora ela nunca tenha gritado tão violentamente."

Então ele se virou para Nezumi e baixou a cabeça em desculpas.

"Sinto muito, fui longe demais. Eu merecia ter apanhado. Parece que a minha moral apodreceu com isso."

"Ela não apodreceu. Apenas está em conserva em álcool, isso é tudo."

Nezumi deu em Shion um suave empurrão nas costas.

"Acho que podemos chamá-lo um dia. Vamos para casa."

"Claro. Mas eu tenho que limpar isso antes."

Nezumi riu.

"Você realmente é um garotinho bem-comportado, não é?"

"Ria de mim o tanto que quiser, mas eu ainda vou limpar isso."

Shion agachou para pegar a xícara de café. Nezumi também pegou as pastas e pratos espalhados pelo chão. Seu corpo enrijeceu. Sua respiração prendeu em sua garganta, e ele congelou.

"Nezumi, o que há de errado?"

"Isso..."

Os dedos de Nezumi estavam tremendo um pouco enquanto eles seguravam uma única fotografia. Ela provavelmente tinha caído de uma das pastas. Rikiga estreitou os olhos.

"Qual é o problema? Ah, isso."

Havia vários homens e mulheres na foto, com Karan no centro.

"É uma foto da última vez que entrei na No. 6. É um retrato de Karan e seus amigos."

"Este homem..."

Nezumi apontou para o homem alto de pé ao lado de Karan.

"Esse cara, hein", disse Rikiga distraidamente. "Quem era ele mesmo? Eu acho que ele disse que estava em uma instituição para a pesquisa biológica, parece um sujeito brilhante, não é? Não me lembro muito sobre ele, no entanto. Ele realmente não se destaca. Eve, você conhece esse cara? "

"Eu acho".

"Como você o conhece?"

Nezumi respirou e respondeu calmamente.

"Ele é meu padrinho[2]."

Leia o capítulo 4.

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Notas

  1. Rimbaud, Arthur. "O Barco Ébrio" ("Le Bateau ivre"). Obras Completas, Cartas Selecionadas. Trans. Wallace Fowlie. Chicago: University of Chicago Press, 2005. 135.
  2. Padrinho [名付け親] em japonês pode significar tanto "guardião" ou literalmente, "o pai (ou mãe) que deu o nome" ou aquele que nomeia a criança. Nezumi o usa em ambos os sentidos.
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