sexta-feira, 1 de junho de 2012

[Novel] No. 6 Volume 2 Capítulo 3

 
Passe o mouse sobre as palavras e textos sublinhados para ver informação
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Capítulo 3: O Profano e o Sagrado

Os seres humanos são metamorfos, não há nada que não seja deste mundo.
         - Ihara Saikaku, "Contos de Saikaku de várias províncias" 

A inclinação em que Shion havia derrapado revelou ser um pilar enorme tombado de lado. Após uma inspeção mais próxima, podia-se ver que a base foi esculpida com figuras de várias mulheres vestidas em pano fino e translúcido. Fundações em metal enferrujado eram tudo o que restava do que provavelmente costumava ser um teto arqueado, e várias videiras secas debilmente agarravam-se a eles. O muro havia desabado totalmente, e pedaços de pedra em todos os tamanhos estavam espalhados aqui e ali.

Se ele acidentalmente tivesse batido a cabeça em um desses – Shion estremeceu com o pensamento.

A cena diante de seus olhos era algo que Shion estava vendo pela primeira vez. Naturalmente, não havia tais edifícios em ruínas para serem encontrados na Nº 6. Todos os edifícios eram construídos de acordo com a sua finalidade, com prioridade à eficiência e funcionalidade. Ruínas como essas, que tinham se acumulado ao longo do tempo, expostos ao vento e à chuva, eram sinônimos de ilusão e não produtos da realidade.

Ele respirou, e deixou seu olhar vagar naquilo novamente. O vento soprava numa dança feroz, como se prosseguisse a sua viagem em direção a um lugar ainda mais ruinoso. Uma porção da parede fez um estalo seco quando ruiu diante dos olhos de Shion.

"Nezumi", ele chamou. Não foi um pedido de ajuda. Ele só queria chamar seu nome. "Você está aí, não está? Apareça."

"Você está ficando mais perceptivo", disse uma voz em algum lugar lá de cima. Shion olhou para cima para ver Nezumi sentado no peitoril de uma janela, vários metros acima. Nada restou da janela em si, exceto o quadro. O vazio retangular, que fora limitado no preto, como se fosse uma boca aberta na face do muro em ruínas, abria-se para soltar um grito.

Nezumi pulou de seu lugar que estava vários metros acima. Ele pousou diretamente na terra macia.

"Você tem pés velozes", comentou Shion.

"Estou muito modesto pelos seus elogios graciosos, sua Alteza".

"Grande coisa" brincou Shion. "Sem mencionar ainda como incrivelmente rápido você parece desaparecer em uma situação apertada."

Nezumi encolheu os ombros levemente e deu uma risada suave.

"Você aprendeu mesmo como ser sarcástico. Já é alguma coisa. Cresceu um pouco, não foi?"

"Eu devo ter ganhado uns dez anos de experiência por caminhar neste lugar."

A mão do Nezumi acenou languidamente em frente ao rosto de Shion.

"Então, você quase conseguiu ser baleado por uma arma, foi seduzido por uma mulher, tropeçou em um corpo morto, e apanhou de um velho. Bem, acho que para um menino mimado como você, isso conta por cerca de dez anos. Mas..."

"Hum?"

"Você realmente ficou melhor para fugir", disse Nezumi com aprovação. "Muito melhor que a sua última tentativa com o cara gordo".

"Com os Faxineiros, você quer dizer?"

"Sim. Parecia que aquele velhote iria te pegar seriamente. Para ser honesto, eu pensei que você iria se sair muito bem se fosse obrigado a entrar lá."

"Você desapareceu muito rápido nessa hora."

"Eu não me envolvo em mais problemas do que eu preciso", Nezumi riu silenciosamente. "Mas você fez um bom trabalho fazendo uma fuga. Deixe-me dizer-lhe, porém, esses caras não se dão por vencido facilmente. Eu teria cuidado se eu fosse você".

"É com profunda gratidão que aceito suas palavras de conselho, sua Majestade."

"Ah querido, e suas respostas começaram a ficar melhor também", Nezumi riu alto desta vez, mas suavemente. O cão magro estava esparramado no chão, abanando o rabo de um lado para o outro. A miséria do mercado parecia um sonho. A quietude silenciosa invadiu o lugar, como se as montanhas de escombros estivessem absorvendo todo o som ao seu redor.

"Nezumi, onde estamos?"

"Faça um palpite."

"Eu não tenho a menor ideia... Parece que isso foi um edifício muito grande... "

"É um hotel. Havia um hospital aqui em frente. Ao lado tinha um teatro, eu acho. Não sei muito sobre esse lugar, embora."

Um hotel, um hospital, um teatro...

"Então, isso realmente parecia ser uma cidade decente."

"Eu acho que sim. Quero dizer, realmente não sei como é a aparência de uma cidade decente, mas provavelmente não havia corpos por toda parte, para dizer o mínimo. Pelo menos naquela época."

"Naquela época?"

"Antes da Nº 6 ter sido estabelecida."

Shion não se surpreendeu. Ele já esperava isso. Fechou os dedos levemente sobre a palma da mão.

"Eu aprendi a história da Nº 6, e como ela surgiu. Foi uma das primeiras aulas de que tivemos."

"Mm-hmm," Nezumi respondeu despreocupado.

"Uma série de guerras em larga escala estourou em todo o mundo enquanto o século passado ia chegando ao fim. Foi antes de nós nascermos. Como resultado da enorme quantidade de bombas e armas biológicas que foram usados, a terra foi totalmente destruída e o clima se deteriorou gravemente. A maioria de todos os continentes, com apenas algumas pequenas exceções, perdeu toda a capacidade de sustentar a vida humana. Havia uma enorme quantidade de vítimas. O povo que permaneceu prometeu nunca fazer guerra outra vez, e nas regiões que foram poupadas da destruição foram fundadas as seis cidades utópicas. E a Nº 6 foi uma delas."

"Isso foi o que você aprendeu."

"Sim".

"E você sempre acreditou que isso fosse verdade?"

"Essa é a verdade que fomos ensinados a acreditar."

"Você se lembra do que me disse no dia em que nos conhecemos?" falou Nezumi. "Você disse que não achava que a Nº 6 era perfeita."

"Eu disse".

"Isso foi uma mentira?"

"Não", respondeu Shion. "Sinceramente, pensei assim. Mas antes de te conhecer, eu não sabia como era que eu realmente me sentia. Quando te conheci, foi quando eu finalmente soube."

Havia conhecido Nezumi e compreendido. Ele finalmente ouviu o som de sua própria consciência ranger tensamente contra seus grilhões, sempre se sentira sufocado. Na Nº 6, ele tinha tudo. Tinha muita comida, uma cama quente e acesso a cuidados médicos. E não parou por aí, com a idade de dois anos, quando ele foi reconhecido como um indivíduo de alto escalão em seus exames, ele havia adquirido o privilégio de viver no bairro de luxo, Chronos. Todos os seus moradores eram proporcionados um ambiente de primeira classe em muitos aspectos.

Antes de ele ter conhecido Nezumi naquela noite tempestuosa de seu aniversário de doze anos, era cercado por tudo o que ele poderia desejar, todos de primeira classe e de qualidade. Mas naquele dia, olhando para o vento e para a chuva que retumbava pela janela, o que Shion havia sentido foi um impulso destrutivo que vinha do núcleo.

Ele se sentia insuportavelmente suprimido. Como um animal encurralado que instintivamente jogava-se contra a cerca, Shion queria ser liberado da gaiola invisível que prendia ele. Bem no fundo da parte mais profunda do subconsciente de Shion, uma voz ressoou.

Isto é uma fachada.
Aqui, tudo é dado a você.
Mas não há nada aqui.
Você não pode viver mais aqui.
Então escape.

Quebre.
Destrua.
Destrua o quê?
Tudo.
Tudo?

Quando a voz dentro dele sobrepôs as palavras do Nezumi, Shion tinha finalmente entendido. Eu não sei a verdade. Eu não sei nada.

O olhar de Nezumi deslizou para longe de Shion enquanto virava as costas para ele. Shion agarrou seu braço.

"Nezumi, me diga."

Me diga a verdade. Não uma mentira ou uma desculpa casual. Me diga a verdadeira forma – da Cidade Santa, da Nº 6.

Seus dedos foram sacudidos rudemente.

"Eu não sou sua babá. Se você quer saber, então descubra por si mesmo."

Ele foi sacudido novamente. Não importa quantas vezes tentava agarrar a Nezumi, ele sempre era empurrado, rejeitado impiedosamente. Mas ainda assim, Shion manteve a mão estendida.

O cão estava pressionando seu corpo contra Shion. Suas costelas eram tão finas que se projetavam para fora, mas ainda estava quente. Muito quente. Tinha o calor de algo que estava vivo.

"Você está sentindo pena de mim, por acaso?"

O cão contraiu seu ouvido castanho-claro. Por um momento, pareceu que havia sorrido para ele. Então se arrastou pesadamente para o lado do Nezumi. A mão de Nezumi, lenta e suavemente, acariciou a cabeça do cão.

"Então você é agradável com os cães, hein."

"Os cães não agem como bebês."

"Mas os cães não podem costurar."

"O quê?"

"Os cães não podem suturar uma ferida. Notei que o kit de sutura ainda estava intacto para o caso de emergência. Se você se machucar de novo, eu vou costurar a sua ferida."

"Ora, obrigado", Nezumi disse sarcasticamente. "Sua oferta é tão grande que está dando arrepios em minhas costelas. Aquele seu rosto ficou em meus sonhos por um bom tempo depois daquele dia, sabe."

"Eu estava legal?"

"Você estava sorrindo. Você tinha aquele olhar como se estivesse tendo o momento de sua vida. Toda vez que eu sonhava com isso, eu tinha pesadelos."

"Bem, foi a primeira vez na minha vida que fiz uma sutura. Lembro-me de estar muito animado. Me diga", disse Shion com entusiasmo. "Então você tirou os pontos de si mesmo?"

"É claro. Foi mais fácil do que fazer sopa."

"E deixou uma cicatriz?"

"Sim. Mas eu não vou te mostrar."

Shion fez um bico.

"Não seja mesquinho."

"Preste atenção a seus pés" Nezumi interrompeu em voz alta. "As escadas começam aqui. Nós vamos subir."

O sol estava se pondo e a escuridão estava ficando maior. Uma grande parte das escadas havia desmoronado assim como a parede, e o que restava dela ia para cima em uma curva ampla no sentido horário. Aqui, o teto ainda estava intacto. Parecia que fora originalmente pintado de branco e, embora a maior parte tivesse sido descascada, havia manchas de tinta branca que ainda sobravam aqui e ali. Um lustre estava pendurado sobre a escada, e para surpresa de Shion, estava pouco danificado.

"Então este lugar realmente era um hotel."

"Ainda é."

"Hum?"

"Este lugar ainda é usado como um hotel."

"Sem chance."

Eles surgiram no topo das escadas e foram recebidos por uma câmara grande e vazia. Ali provavelmente havia sido a portaria. As paredes eram fixadas com vidro do chão ao teto. Os painéis na metade superior haviam sido destruídos e espalhados pelo chão, mas os painéis de fundo ainda permaneciam intactos. Cortinas rasgadas e desbotadas pendiam sem vida sobre eles. Videiras que provavelmente penetraram através das janelas quebradas agarravam-se densamente nas paredes e cruzavam-se como uma rede de capilares. Folhas caíam delas somando-se com a espessa camada que já havia carpetado o chão.

Foi graças a uma luz fraca naquele lugar que Shion fora capaz de decifrar isto, apesar da escuridão. Ela vinha de uma vela que queimava em cima de uma mesa de pedra.

"Nezumi, você sente o cheiro de alguma coisa?"

"Da vela queimando, talvez?"

"Não, não é de cera. Cheira quase... como um animal..."

Nezumi deu uma risada.

"Você realmente percorreu um longo caminho. Seu nariz ficou mais apurado. Agora vamos tentar trabalhar a sua visão. Olhe."

"Ah..."

A sombra se moveu na escuridão onde a luz não pôde alcançar. Não era um ser humano. Tinha quatro pernas, duas orelhas pontudas, e estava rosnando ameaçadoramente.

"Um cachorro", ele sussurrou.

Era um cão grande, coberto de pêlo castanho-escuro curto, com um brilho feroz em seus olhos. Sua garganta emitia um rosnado baixo. Shion deu um passo para trás.

"Ele não é o único", Nezumi acrescentou.

Havia uma nota de diversão em sua voz ­― ele estava gostando da reação de Shion. Shion resistiu ao impulso de virar e lhe dar um olhar fixo. Ele não tinha atenção de sobra para isso.

Liderados por esse cão, vários outros cães de todas as formas, tamanhos e cores foram surgindo da escuridão. Eles estavam longe de serem chamados de animais de estimação. Estavam sujos, seus olhos brilhavam cruelmente, e os seus dentes estavam descobertos.

"Isto é um ninho para cães selvagens?"

"Pode ser. O que você quer fazer? Fugir? Se não se decidir logo, vai ter sua garganta arrancada".

O cão castanho-escuro se aproximou dele com cautela. Não estava mais rosnando. Silenciosamente, mas de forma constante, dirigiu-se a ele sem abaixar seu olhar.

Shion olhou de volta para o conjunto de olhos caramelo que eram da mesma cor de seu pêlo. Atrás da luz selvagem em seus olhos, residia algo surpreendentemente suave. Shion podia sentir a sua presença lá.

Intelecto?

Shion ajoelhou-se, o vidro quebrado se esmagou abaixo do joelho de seus jeans. Nezumi estava inquieto. Shion não se moveu. Agachado no chão, ele olhou diretamente para o cão.

O cão parou e assim permaneceu na frente dele. Abriu a boca pendendo sua língua rosa e lambeu a ponta do nariz de Shion, depois se deitou no local e deu um bocejo. Todos os outros cães começaram a se mover por conta própria. Alguns começaram a lamber uns aos outros, outros se esparramaram no chão, enquanto outros farejavam seus arredores, e nenhum deles parecia estar preocupado com a presença do Shion.

"Passei na entrevista," Shion sorriu quando ele olhou para Nezumi. Nezumi estalou a língua e se virou.

"Os cães selvagens não te assustaram?" ele disse acidamente.

"Sim, me assustaram. Mas cães selvagens não acendem velas".

Nezumi fungou desdenhosamente. "Você nunca viu uma vela antes."

"Eu acabei de ver pela primeira vez. É mais brilhante do que eu imaginei que fosse. Ei, Nezumi, alguém vive aqui?"

Risos trovejaram. Ecoaram nas ruínas e desapareceram na escuridão.

"Prazer em ter você, cliente."

Era uma voz humana, mas ele não podia ver a quem pertencia. A voz ecoou em tantas direções que ele não poderia dizer de onde veio. Ela ricocheteou e se sobrepôs em camadas incontáveis. Apenas ao ouvir isso o fez sentir tonto.

"Pare de se acovardar." Nezumi se abaixou. Ele pegou um pedaço de escombro, e arremessou-o direto para a escuridão de onde os cães tinham vindo. O escombro foi sugado pela bruma, mas ele pôde ouvir um som definido na distância no momento em que aquilo bateu no chão.

"Cuidado." O foco de onde vinha a voz se definiu em um ponto na escuridão. Era uma voz jovem. Uma luz piscou na piscina de tinta preta.

"Isso é uma forma violenta de cumprimentar alguém, Nezumi. Você não tem boas maneiras."

"Você mesmo poderia ter algumas maneiras se é isso o que você chama a maneira correta de receber um convidado."

A figura estava tecendo entre os cães em direção a eles com um castiçal. Mesmo com a chama da vela, a pessoa parecia que ainda estava na escuridão.

Seu cabelo ia até a cintura. Seus olhos, seu suéter folgado e suas calças que estavam rasgadas nos joelhos, eram todos pretos, e tinha a pele bronzeada.

Era um menino? Uma menina?

Shion não poderia fazer a distinção. Os olhos redondos e o queixo apontado do estranho lembravam um pequeno roedor. Ele era muito pequeno e magro, e apenas chegava cerca à altura dos ombros de Shion.

"Ele vive aqui", disse Nezumi. "Eu não sei o seu nome real. Apenas o chamamos de Inukashi".

"Como... aluga cão?"

"É isso", respondeu o estranho. "Empréstimo de cães é o meu negócio. Prazer em conhecê-lo, Shion." Inukashi sorriu. Shion foi pego de surpresa.

"Você sabe o meu nome."

"Eu sou rápido para apanhar informações por aqui. Contanto que eu tenha meus cães, obter todas as informações sobre tudo é moleza. Eu sei o seu nome, e sei que você chutou o Faxineiro nas bolas antes de vir correndo para cá. Esse cara me contou tudo."

O cão magro abanou a cauda ao lado de Inukashi.

"Você pode falar com os cães?"

"Posso manter conversas com qualquer pessoa, desde que não sejam humanos. Sempre que você quiser alguma informação, sinta-se livre para me procurar." Inukashi estendeu a mão com um sorriso. Ele estava usando um anel grosso, de prata, que combinava bem com sua pele bronzeada.

"Prazer em conhecê-lo também." Shion também estendeu sua mão.

Fazia um tempo desde que ele tinha apertado as mãos de alguém. Até agora, suas experiências só tinham se consistido em fugir, gritar, ou rolar por aí. O rosto de Inukashi era aberto e afetuoso, e lembrava-lhe um filhote de cachorro.

Uma dor aguda percorreu em sua mão.

"Ai!"

Shion retirou a mão rapidamente. Na base do dedo indicador havia uma pequena ferida do tamanho de uma alfinetada. O sangue já estava começando a brotar a partir dela percorrendo a palma de sua mão em um único fluxo vermelho. Ele acreditou sentir as pontas dos dedos ficarem dormentes.

Inukashi jogou a cabeça para trás e gargalhou.

"O que foi isso?" Shion disse em descrença.

"'O que foi isso', ele disse!" Inukashi cantou. "Haha, que surpresa! Você cai direitinho nesse aperto de mão, se vira para mim e pergunta 'o que foi isso?' clássico".

Inukashi mostrou a palma da mão a Shion, e dobrou os dedos ligeiramente. Uma pequena ponta da agulha saiu pelo anel. Quando ele esticou seus dedos de novo, voltou a se esconder.

"Tem sido usado como uma arma de assassinato por séculos. Bem, a maneira correta de usá-lo seria cobrir a ponta da agulha com veneno. Mas eu não fiz nada a este, só para que você possa relaxar."

Shion pressionou bastante a base do dedo. Ele lambeu seus lábios secos, e abriu a boca para perguntar.

"Por que você faria isso?"

"Oh querido", disse Inukashi exageradamente. "Agora ele está me perguntando, por que você faria isso?"

O olhar de Inukashi se virou para Nezumi, que estava em silêncio.

"Você não ensinou a esse cara nada sobre como viver aqui?"

"Esta não é minha responsabilidade."

"Você o pegou e o levou para casa, não foi? Se você vai pegar um gato de rua, você tem que tomar conta dele corretamente. Ele vai se tornar útil um dia."

"Eu não tenho tanta certeza disso."

Inukashi riu de novo.

"Se não, apenas coma ele. Ou ele é..." o olhar de Inukashi viajou para o cabelo do Shion. "Tem um cabelo interessante. Ele tem problemas, ou o quê?"

Nezumi mexeu o canto da boca e respondeu logo.

"Como os muitos problemas dos cães que você tem. Demais para contar."

"Uhum. Assim, os rumores eram verdadeiros. Você realmente está mantendo um menino como um animal de estimação." O rosto de Inukashi ficou sério enquanto olhava para Shion da cabeça aos pés. Foi um olhar ousado e insolente. O cão, de repente levantou-se do chão, e latiu uma vez. Duas bolas marrom e peludas vieram saindo da escuridão. Eles eram filhotes, provavelmente um ou dois meses de idade, seus narizes e caudas eram brancos. O cão magro deitou-se de novo, mostrando a sua barriga e seus bicos caíram lamentavelmente. Os filhotes ansiosamente se jogaram para eles. Seus traseiros redondos balançavam de um lado para o outro.

"Uau, filhotinhos!" Shion exclamou. Ele gentilmente acariciou suas costas de modo a não interferir em sua alimentação. "Uau, Nezumi, olha. Eles são tão suaves. Por que você não tenta acariciá-los também?"

"Não, obrigado".

"Mas veja, eles são filhotes. Então você é uma mãe, hein. Deve ser duro para você, criar todas essas crianças."

Inukashi franziu o cenho e recuou meio passo longe de Shion.

"O que há com esse cara? O que ele está fazendo tendo uma conversa séria com um cão? Ele é desequilibrado ou algo assim?"

"Ele é um pouco vago. Isso é natural para ele."

"Natural, hein? Por que você está cuidando desse maluco?"

"Como eu disse, ele tem problemas. E pode não parecer, mas ele é muito bom com as mãos. Ele pode até mesmo fazer uma cirurgia simples."

"Eu não me importo com o que ele pode fazer, eu não teria nada disso. Ele sempre vai ser um peso morto."

"Eu não poderia ter dito melhor", respondeu Nezumi. "Então você já procurou pelo o que eu pedi para você?"

"É claro. Trabalho é trabalho. Vamos lá para cima." Inukashi pegou o suporte de vela na outra mão e desapareceu na escuridão. Havia mais escadas, como as de antes, elas se dirigiam para cima em uma curva suave. Estas não estavam tão em ruínas, o entulho foi limpo de modo que ficava um espaço grande o suficiente apenas para que uma pessoa pudesse percorrer.

"Oh" Shion murmurou surpreso quando eles surgiram no topo das escadas.

Um corredor estreito corria diante deles. Havia uma pessoa enrolada na ponta do corredor. Ao lado dele estava um par de cães. Eles tinham o pêlo longo e branco e estavam situados perto da pessoa como se para protegê-la. Shion apertou os olhos, e pôde ver mais alguns desses grupos de pessoas e cães enrolados juntos.

"O que estas pessoas estão fazendo?"

Inukashi respondeu por cima do ombro.

"Eles são os meus clientes."

"Clientes?"

"Este lugar costumava ser um hotel, e ainda é. Boatos dizem que este lugar era muito grande, mas agora é só um lugar onde as pessoas podem dar um pouco de dinheiro se não tiverem onde ficar durante a noite. Temos camas, também. Se você puder desembolsar a grana, estarão prontas."

"E quanto àqueles cães?"

"Eu os alugo para aquecer. Pode ficar bastante frio à noite, mas não é tão ruim se você enrolar com um cão ou dois. Você não vai congelar até a morte, pelo menos."

"Então é daí que 'aluga cão' vem".

"Os cães são úteis para outras coisas também. Eles coletam informações, guardam a sua propriedade ou levam o seu material. Eles vão fazer tudo. E são provavelmente muito mais úteis do que um cabeça de vento natural como você."

Nezumi estalou a língua.

"Essa fala é minha."

No final do corredor havia uma porta de madeira. Além de que era uma sala pequena, com um teto baixo e sem janelas. Uma mesa redonda ficava no centro dela. Inukashi abaixou o suporte de vela, e espalhou um velho mapa sobre a superfície da mesa.

"Este é o mapa que Nezumi pôs as mãos por volta de 20 anos atrás. Este é o meu hotel, e LK-3000 deve estar em algum lugar por aqui."

"O Edifício Latch não está marcado neste mapa", acrescentou Nezumi. "Eu pedi para o Inukashi procurá-lo."

Ele passou um dedo levemente sobre o mapa. Foi um gesto casual, mas um dos elegantes. Foi um movimento calculado e afinado à perfeição.

"O quê?" Nezumi inclinou a cabeça diante ao olhar de Shion.

"Não, eu apenas pensei que às vezes você realmente se move com elegância."

"Hum?"

"Às vezes, seus gestos são realmente cativantes. Eu não conseguiria parar de olhar."

Inukashi olhou para eles, o seu olhar alternando entre o rosto de Nezumi e o de Shion.

"Como você pode dizer algo assim na frente dele?" ele perguntou incrédulo. "Nezumi, esse cara é realmente estranho por natureza. Como você convive com ele?"

"Eu consigo de alguma forma."

"Shion, você não sabe qual é o emprego desse cara?"

"Não."

Inukashi estendeu a mão aberta em direção a Shion.

"Se você pagar, posso lhe dizer. Vender informação é mais um dos meus negócios."

"Eu não tenho dinheiro."

"O quê? Você não tem? Nezumi, você está cuidando de um vagabundo sem dinheiro?" os olhos do Inukashi se estreitaram. "Então ele tem o cabelo esquisito, é um cabeça de vento, aperta a mão das pessoas sem pensar duas vezes, e não tem dinheiro. Nezumi, de onde você o trouxe?"

"De onde você acha?"

"Eu que estou perguntando aqui."

"Se você me pagar, posso lhe dizer."

"Não bagunce tudo", Inukashi estourou. "Você é o único que deveria estar pagando."

Nezumi pegou uma pequena bolsa de couro do bolso.

"Lá vai."

O conteúdo da bolsa caiu em cima do mapa. Era um rato cinza e pequeno.

"É um micro robô. Ele reconhece áudio e vídeo, tem sensores de gravação e é montado com uma micro bateria movida a energia solar. Uma carga fará com que ele dure 36 horas. Ele pode se deslocar livremente para coletar informações. Vai ser muito útil nos lugares onde seus cães não podem entrar. Você estava me dizendo que queria um, certo? "

Inukashi acenou com a cabeça sem dizer nada. Ele moveu a cabeça para cima e para baixo de forma exagerada, muito parecido como uma criança pequena acenaria.

"Você realmente vai dar isso para mim?" perguntou ele.

"Sim. Se suas informações valerem a pena."

Nezumi colocou o rato de volta na bolsa e o apertou levemente. O tom da voz de Inukashi acelerou.

"Tudo bem. Vou saltar direto para a conclusão. O Edifício Latch não existe."

"Isso é tudo o que você tem?"

"Claro que não. Ele não existe, mas há algo que tem esse nome."

"Edifício Latch?"

"Folheto Latch, e é o nome de um jornal. Há muito tempo atrás, havia um jornal com esse nome, logo atrás desse hotel. Ele faliu e foi demolido para ser transformado em um estacionamento para este lugar. Foi o que aconteceu antes deste mapa ser feito, é por isso que não existe."

"Assim, Folheto Latch 3A significa…"

"Ou significa que é o 3º andar dessa empresa jornalística, ou então..."

"Ou então?"

"Eu não tenho ideia", Inukashi disse abruptamente. "Não há como eu saber o que havia no 3º andar de um jornal que saiu do mercado há vinte e poucos anos atrás. Você deve encontrar-se diretamente com o cara que tem uma ligação com aquele lugar."

"Há alguém com ligação nisso?"

"Sim. Eu achei a localização de um cara que tinha ligações com o Folheto Latch. E digo: esse cara também tem ligações interessantes com a Nº 6. Ouça com atenção"

Nezumi se inclinou para frente. Shion engoliu em seco.

* * *

A Nº 6 estava envolta em um brilho vermelho do pôr do sol. Nada era mais requintado do que o pôr do sol de outono. O homem soltou um suspiro satisfeito.

Que beleza era aquilo, uma cena tranquila. O Parque Florestal há poucos dias havia um contraste vivo entre as folhas que se transformavam e aquelas que ainda estavam verdes, mas agora a maioria das árvores havia perdido suas folhas. Era um tipo de beleza pacífica da natureza que ia calmamente se preparando para o inverno que se aproximava.

Aqui ele obteve os pináculos da ciência moderna; tinha a natureza sob a sua gerencia e a última cidade utópica estava se aproximando de seu término. As pessoas tiveram a sorte de serem capazes de nascer, crescer, e viver até uma idade avançada aqui. Eles foram os escolhidos.

Não havia tal coisa como a desgraça aqui. Mesmo os furacões que apareciam ocasionalmente eram abundantes fontes de irrigação natural que molhavam as pastagens agrícolas e pecuárias que se espalhavam do bloco leste para o bloco sul.

Tudo o que se precisava era de um pouco mais. Um pouco mais, e a terra dos deuses finalmente estaria completa. Uma utopia, onde somente os escolhidos residiriam. Ele só precisava de um pouco mais.

"Você realmente deve amar a vista daqui." Uma voz disse atrás dele, com um tom de riso.

"Você não concorda que é excelente?"

O homem que riu silenciosamente balançou a cabeça em uma expressão de recusa. Ele estava vestindo um jaleco branco.

"Eu prefiro o micro universo. O mundo das bactérias, micróbios, neurônios, macrófagos, vírus. Os vírus estão em escala nanométrica, você só poderá vê-los através de um microscópio eletrônico. Eles são muito bonitos, sabe. As coisas realmente bonitas são coisas que você não pode ver a olho nu."

"Esse sempre foi o seu mantra, não foi. Você já disse isso tantas vezes quanto posso me lembrar."

"É o meu mantra imutável."

"E você também ainda bebe café forte antes e depois do jantar."

"Esse é outro hábito imutável meu".

Os homens entreolharam-se e riram baixinho. Eles se conheciam há décadas. Sabiam bem qual parte do outro havia mudado, e o que permanecia o mesmo.

"Então, e agora? Eu acho que agora é questão de tempo." O homem ergueu sua xícara de café feita por encomenda. O café manteve-se em vapor e perfumado como se tivesse acabado de ser colocado graças ao mecanismo de ajuste embutido no copo. O homem vestido de jaleco lambeu seu lábio inferior. Costume de quando ele ficava imerso em pensamentos.

"Você está pensando em coletar mais amostras", disse ele.

"Vivos."

"Sim, nós já coletamos algumas amostra de corpos mortos. Mas não podemos dizer que são o suficiente, no entanto. Queremos um pouco mais."

"Se você quiser, eu posso encontrar maneiras de procurar por eles. Quantos você precisa?"

"Eu vou relatar a você mais tarde com quantos nós precisaremos para cada condição baseado no sexo, idade e histórico de doença."

"Isso seria ótimo. Então, e os vivos? Você quer que eu prepare a coleta?"

"Não, eu preciso de mais tempo."

"Por quê?"

"Os dados das amostras coletadas ainda estão incompletos. Ainda estamos executando análises e enviando-as para o banco de dados. Eu quero um corpo primeiro."

"Está demorando muito para alguém como você. Que raro."

"Se formos capazes de fazê-lo publicamente, as coisas seriam muito mais tranquilas. Mas fazer isto em segredo vai demorar o dobro do tempo. Eu quero que você tenha isso em mente. Além disso, devemos entrar na fase de amostras vivas somente depois que o banco de dados das amostras dos mortos estiver completo. Isso foi uma ocorrência inesperada a qual teremos que investigar por que motivo isso aconteceu nesta fase. Tudo vai levar tempo..."

"Eu sei", admitiu o homem. "Eu não estou te apressando. Certifique-se de que tudo seja realizado de forma cuidadosa, completa e perfeitamente. Isso tudo está ligado às raízes do futuro da No. 6. Sim ― e esta é a última peça."

"A última peça para fazer deste lugar uma Cidade Santa, no sentido real, hmm". O homem do jaleco riu. "Um brinde para o Grande Líder". Ele levantou sua xícara de café brandamente.

"E aplausos para o Grande Cérebro por trás de tudo." O homem ergueu a xícara também. Houve um momento de silêncio. O homem de jaleco falou com uma voz ligeiramente rebaixada.

"Mas seria realmente uma coisa boa fazer isso?"

"O quê?"

"A coleta de amostras vivas. Ouvi dizer que um certo rato está com ele."

O homem abaixou a sua xícara de café, e limpou os lábios com os dedos.

"É apenas um rato. Deve ser só um obstáculo."

"Se você pudesse pegá-lo vivo também ― eu estou interessado nele."

"Você quer abri-lo?"

"Uma autópsia, hmm. Isso seria bastante agradável. Gostaria de investigar todos os cantos de seu corpo. Mas antes disso, precisamos de mais amostras."

O homem de jaleco de repente se levantou e começou a caminhar silenciosamente no tapete espesso. Ele caminhou com impaciência, dava passos grandes com as mãos atrás das costas. Era um mau hábito que ele tinha desde que era jovem. Seguindo os movimentos do homem de jaleco com o seu olhar, o outro homem reclinou profundamente em sua cadeira.

"Sim, essa é a questão principal", o do jaleco continuou. "O número total de amostras é severamente deficiente. Precisamos de mais, Fennec." Fennec era um apelido que tinha sido dado ao homem quando ele era jovem. A raposa do deserto. Ela tinha o menor corpo e as maiores orelhas de sua espécie. Suas orelhas, que poderiam atingir até 15 centímetros de comprimento, não só eram bem adequadas para liberar o calor do corpo de forma eficaz, com também possuíam a capacidade de audição afiada que poderia detectar até mesmo um salto de um gafanhoto na areia. Ele também ouviu que, ao contrário do seu aspecto bonito, tinha uma personalidade viciosa.

Não era um apelido que ele gostava muito. Não o usava, nem era chamado pelo apelido há pouco tempo. Havia quase se esquecido disso, mas ele não sentia a mesma repulsa a esse nome como em sua juventude. Sentia-se até um pouco afeiçoado a isso agora.

Fennec. A raposa do deserto. Não é ruim.

"Nós também não temos amostras vivas suficientes. Eu gostaria de pelo menos dois, não, mais de três ao alcance. Mas isso pode ser difícil..."

O homem no jaleco continuou murmurando para si mesmo e o ritmo de seus passos aumentava cada vez mais rapidamente. Ele estava completamente alheio a tudo ao seu redor. Provavelmente não tinha sequer percebido que ele havia chamado o homem de Fennec. Era assim desde que ele era jovem. Suas pesquisas e experimentos, sua especulação, sua satisfação. Era tudo o que se sabia sobre ele, nunca tinha demonstrado qualquer interesse em relação às coisas externas a ele. Ele não mostrava anexos ao poder, dinheiro ou mulheres. Ele não via a necessidade da filosofia, da fé ou da moral em sua vida. Um cérebro de inteligência rara e uma alma vazia...

― É por isso que ele é ainda mais útil.

O homem acostumou o seu olhar para o ritmo dos passos da figura vestida de jaleco, e sorriu.

― Uma alma não seria tão útil para você. Se fosse, seria apenas para declarar sua lealdade a mim.

O de jaleco parou de caminhar.

"Fennec, vamos criar outra amostra viva. Eu quero uma mulher dessa vez. Pode ser difícil. Sim, esta fase será muito difícil... mas é por isso que devemos nos preparar antes."

"Vamos fazer isso."

"Há um grande risco de fracasso, no entanto..."

"Fracasso e sacrifício são todas as coisas que devemos passar a fim de obter progresso. Não se preocupe, nós vamos ser capazes de superar e segurar a peça final em nossas mãos."

"Eu acho que você está certo", o de jaleco concordou.

"Vamos jantar então? Isso provavelmente não vai despertar muito o seu interesse, mas eu já tinha tudo preparado. O prato principal será cordeiro. Eu também tenho um vinho notável para acompanhar."

"E café após a refeição?"

"Claro. Mas eu te peço, pelo menos tire esse jaleco enquanto comemos."

O homem bateu levemente no ombro do de jaleco. Então ele olhou de esguelha a cena pela janela. Através do vidro grosso e sem mácula, as estrelas começavam a piscar.

***

"É aqui."

O pé do Nezumi parou. Eles pararam em frente a um prédio de três andares. Pelo menos, seu aspecto era muito melhor que o hotel de Inukashi, porém no sentido de que também estava caindo aos pedaços, eles não eram muito diferentes.

A entrada em arco e as paredes de tijolos vermelho poderiam ter sido parte de uma cúpula, mas agora estavam estrangulados por trepadeiras, se desintegrando no lugar e irradiando uma aura de dilapidação. Nezumi levantou seu queixo.

"Tem alguém em casa."

Havia uma luz na janela central do terceiro andar. Pelo seu brilho, era provavelmente uma lâmpada elétrica. Isso significava que havia energia elétrica neste edifício.

Eles empurraram as portas abertas de madeira e entraram. Não havia sinais de pessoas no primeiro ou segundo andares. As escadas, que também eram de madeira, rangiam ruidosamente a cada passo que davam.

Se o palpite do Inukashi foi bom, um ex-repórter do jornal Folheto Latch estaria vivendo aqui.

Eles subiram até o terceiro andar. Havia luz saindo de uma fresta da porta aberta para o corredor de madeira que estava forrado com uma camada grossa de poeira. Na piscina de luz, havia várias garrafas de vidro vazias. Era fácil dizer para que essas garrafas foram usadas. Shion não precisou pegar uma para verificar, o cheiro forte do álcool encheu o ar ao seu redor. Em um canto escuro do corredor, havia pilhas enormes de documentos empacotados, e latas vazias espalhadas sobre eles. Apenas a porta a qual a luz saía não era nem suja nem quebrada, embora fosse muito velha. Shion levantou a mão para bater, mas Nezumi o deteve.

"O que há de errado?"

"Não, apenas... o ar é estranho."

"O ar? O que você..."

Antes que Shion pudesse terminar a frase, ouviu um grito de dentro do quarto. Ele pertencia a um homem. Houve o som de móveis sendo derrubados. Uma voz estridente gritando com raiva. Ele pôde ouvir o som de vidro sendo quebrado.

"Parece sério. E agora Shion?"

"O que você quer dizer com ‘e agora’?"

"Parece que eles estão ocupados no momento. Devemos voltar outro dia?"

"Como se eu fosse fazer isso".

"Foi o que eu pensei."

Houve um barulho de novo. A voz profunda de um homem gritou por socorro. Shion tentou irromper na sala, mas Nezumi o deteve e abriu a porta.

A sala estava bem iluminada por uma lâmpada de grande porte. Foi a luz mais brilhante que Shion havia visto desde que chegou ao Bloco Ocidental. A luz iluminava claramente todos os cantos do quarto. Perto da janela havia uma mesa grande, e contra a parede tinha um sofá com têxteis bastante inexpressivos. O chão estava coberto, novamente, com feixes de papel e livros que estavam empilhados ou espalhados a esmo. No entanto, ele havia notado todas essas coisas quando tomou uma boa olhada em volta da sala muito mais tarde. O que Shion vira imediatamente por cima do ombro do Nezumi eram duas pessoas emaranhadas uma com a outra. Um homem e uma mulher. O homem estava de calças, mas a sua parte superior do corpo estava nua. A mulher estava vestida toda de preto. Seu cabelo tinha um corte em linha reta na altura dos ombros, e também era preto. Ela estava cavalgando o homem. A bainha de sua saia rasgada havia virado para cima de modo a revelar sua coxa. Ela tinha o corpo bem dotado e curvado. Tinha um rosto redondo, nariz redondo e olhos redondos. Seu rosto estava tenso.

A mulher moveu a mão direita para cima.

"Socorro!" O homem gritou. Shion percebeu que havia uma faca na mão da mulher. Nezumi estalou sua língua rapidamente.

"Você não serve para nada!" A mulher gritou. Nezumi se moveu ao mesmo tempo. Silenciosamente e em um flash, ele estava segurando o pulso da mulher em pleno movimento. Sem uma palavra, ele torceu-o.

A faca caiu no chão. Shion às pressas pegou-a. Ele viu uma bainha vermelha para a faca no canto de sua visão. Ele a agarrou reflexivamente e guardou a lâmina. Sentiu-se aliviado.

"Que diabos você está fazendo?" A mulher gritou estridentemente. Ela tinha caído de bunda por ter sido empurrada por Nezumi.

"Eu não acho que você deve ficar balançando um brinquedo como esse, moça. É perigoso", Nezumi disse suavemente.

"Me deixa. O que isto tem a ver com você? Esse não-serve-para-nada, merda de um mulherengo merece morrer."

A mulher se dissolveu em lágrimas no chão. Ainda segurando a faca, Shion olhou para ela corcunda. Não sabia o que fazer. Não havia nada no manual de Shion, que lhe dissesse como lidar com este tipo de situação. Nezumi ajoelhou-se e gentilmente acariciou suas costas, enquanto ela balançava em soluços. Ele abaixou a voz para um murmúrio silencioso.

"Não chore. Não... você deve chorar. Chore o conteúdo de seu coração. Você vai se sentir melhor assim. Vá em frente, chore"

Era como uma canção de ninar. Seu sussurro era tão profundo e calmo que embebedava na alma de Shion como o som da chuva que penetrava no quarto do porão. Ele podia ver a agitação da mulher desaparecer enquanto sua gentileza e tranquilidade a inundavam. Mas não havia mansidão ou tranquilidade no olhar do Nezumi. Depois de tomar uma rápida olhada ao redor da sala, seu olhar parou no homem de meia-idade que estava ofegante, seminu no chão. Então seus olhos se detiveram em Shion, que estava imóvel, preso ao chão. Shion deu um passo adiante.

"Um... você é Rikiga-san? Que trabalhava para o jornal Folheto Latch?"

O homem levantou-se cambaleando e colocou seus braços por meio de uma camisa que estava estendida sobre o sofá. Embora não exatamente obeso, ele era bastante carnudo em torno dos ombros e da cintura. Havia uma cicatriz branca que corria na diagonal sob seu ombro direito.

"Hum... Achamos a pessoa errada?" Shion perguntou incerto. "Nós viemos aqui hoje porque ouvimos que poderíamos conhecer a um Rikiga-san aqui"

"Você achou ele."

Foi a mulher que tinha respondido. Seu rosto estava uma bagunça em mar de lágrimas, suor e ranho, mas ela não estava chorando mais.

"Este não-serve-para-nada mentiroso vai por esse nome. Ele já foi um repórter de jornal, mas agora essa desculpa de merda para um homem se reduziu a fazer porcarias de revistas pornográficas para pagar seu hábito de bebidas."

"E quem foi a única que teve um ataque histérico quando foi abandonada pelo o que ela diz ser desculpa de homem, hein?" respondeu o homem que se chamava Rikiga.

"O que você está falando?" a mulher atirou de volta. "Você é o único que disse que queria se casar!"

"E eu estou lhe dizendo, problemas têm surgido, e não posso me casar com você."

"Que problemas?"

"Bem... ah, hum, você sabe..."

"Se você vai tentar me enganar, pelo menos prepare uma mentira adequada com mais tempo. Eu não sou uma pessoa que acredita em idiotices."

Com suas próprias palavras, provocou ira que ameaçava transbordar novamente. De repente, ela se lançou a Shion respirando rápido.

"Me dê a faca de volta!"

"Não, eu não posso fazer isso" Shion resistiu. "Pare, por favor. É perigoso."

"Eu disse para me dar essa maldita coisa de volta. Que 'problemas', hein? Vamos ouvir sua desculpa. Eu não posso acreditar que estou sendo tratada como bosta desse jeito. Eu vou te matar".

"Pare, cuidado..."

Nezumi se levantou. Com um passo, ele caminhou para o lado de Rikiga e colocou a mão em seu ombro.

"Pai, ela vai ser a nossa nova mãe a partir de agora?"

A mulher congelou. Sua boca abriu e contraiu a pálpebra.

"Pai?"

Nezumi assentiu com um sorriso carinhoso.

"Sim. Somos seus filhos."

"Você... Você teve filhos? Eu nunca ouvi falar nada sobre isso antes."

A voz da mulher voltou rouca. Rikiga piscou.

"Nosso pai e mãe se separaram há muito tempo", explicou Nezumi. "Mas mãe faleceu no mês passado, e assim voltamos para viver com o nosso pai. Nós já ouvimos antes que o pai tem alguém que ele ama. Mas ele disse que iria desistir de se casar para que pudéssemos viver juntos como uma família novamente, nós três. Certo, irmão?"

"Hum?"

"Viemos até aqui em busca do nosso pai, certo?"

"O quê? Ah, sim, viemos. Somos seus filhos. Prazer em conhecê-la."

Rikiga pigarreou algumas vezes.

"... É isso. Eles são os meus filhos. Eu tenho que cuidar deles agora... criar esses dois sozinho. Viver vai se tornar muito mais difícil. Eu não podia deixá-los por isso mesmo, querida. Eu te amo, eu te amo tanto. Mas essas crianças precisam de seu pai... Eu não podia te sobrecarregar pedindo-lhe para ser a mãe deles. Eu não tinha escolha a não ser lhe pedir para terminar comigo."

"Então foi isso o que aconteceu..."

"Bem... foi sim."

A mulher passou a mão em seu cabelo e suspirou. "Então, é isso."

"É isso."

A mulher passou a mão pelo seu cabelo novamente, e pegou o casaco e a bolsa, que estavam deitados no chão. Ela olhou para Shion, e inclinou o queixo ligeiramente para trás.

"Você tem o cabelo estranho. É uma peruca?"

"Ah, hum... coisas que aconteceram..."

"Mais problemas? Tal pai tal filho, vocês devem amar seus problemas. Ah, tudo bem. Se é isso o que está acontecendo, eu vou terminar com você. Como se eu fosse querer um homem de meia-idade com filhos, de qualquer maneira."

A mulher balançou energeticamente sua mão.

"Adeus, então. Foi divertido enquanto durou."

A porta se fechou. Shion deixou a faca em sua mão cair no chão. As palmas de suas mãos estavam suadas de nervos.

Rikiga levantou-se da cadeira e começou a recolher os pedaços de vidro quebrado. Provavelmente havia algum tipo de bebida a qual seu conteúdo tinha feito uma mancha no tapete que emitia um cheiro tão insuportável de álcool que fez Shion se sentir mal.

"Meu Deus, ela certamente se deixou ir", resmungou Rikiga. "Foi divertido enquanto durou, ein? Colocar um rosto calmo no último minuto. Puxa vida."

Rikiga olhou alternadamente Shion e Nezumi, e sorriu.

"Vocês me salvaram da forca. Primeiro, deixe-me lhes dar os meus agradecimentos."

Ele tinha ombros largos e fortes e altura considerável. A ponta de seu nariz era alta, e bem adequada ao seu bigode. Seu rosto não era nem bonito nem feio. Era um rosto que era ao mesmo tempo enérgico pelo otimismo e cansado pelas dificuldades, era um rosto de astúcia e uma resistente força de vontade de aço.

"No entanto, sua atuação poderia ter sido melhor. Especialmente para uma super estrela como você, Eve".

Nezumi pegou a faca do chão e esboçou um sorriso.

"Você sabe sobre mim?"

"Eu sou seu fã. Fui ver seu show na semana passada."

"Isso é bom de ouvir, mas eu não apareci em nenhum show na semana passada."

"Sério? Bem, de qualquer maneira, nós queríamos fazer uma matéria especial em nossa revista sobre você. Pedimos ao seu gerente para fazer uma entrevista com você, mas ele recusou."

"Ele provavelmente recusaria para uma revista como esta." Os dedos do Nezumi passaram casualmente através das páginas. Na capa tinha uma foto de uma mulher nua. No geral, ela estava um pouco embaçada. Todas as outras páginas eram um pouco parecidas. Mulheres nuas, homens seminus. Luxúria e provocação transbordavam das finas páginas da revista.

"Isto é um estímulo para os jovens", disse Rikiga. "Ensina-lhes tudo sobre controle de natalidade para pegar mulheres."

"Você deve fazer uma matéria sobre a maneira correta de terminar com uma mulher, velho."

Nezumi jogou a revista de lado. Rikiga levantou as mãos num gesto exagerado.

"Ai Eve, isso foi muito duro. Pensei que você era mais do que um marica."

"É bom ouvir isso vindo de alguém que estava preso no chão por uma mulher há apenas um minuto atrás."

"Eu estava bêbado, certo? E ela apenas saltou em mim de repente – mas eu nunca teria imaginado que ela tinha uma faca. Coisas assustadoras, essas mulheres."

Shion foi meio passo para frente.

"Eve... é esse o seu nome verdadeiro, Nezumi?"

"De jeito nenhum. É apenas para o trabalho."

"Trabalho... então você é um ator de teatro."

"Nada tão elegante assim. Pelo menos estou alguns passos acima desta revista."

"Mas... ah," murmurou Shion em realização. "Então é por isso que você fala e se move tão graciosamente."

Um foco de luz brilha sobre um palco escuro, iluminando um único ator enquanto ele flutua para fora da escuridão. Cativando os olhos, ouvidos e almas de todos que assistem. Os anéis de sua voz soam, às vezes com um ar, subindo elegante, às vezes com um tremor dolorido como um vento que assobia baixo para o chão.

Nezumi bufou.

"O que você está imaginando, Shion? Estamos falando de um teatro aqui, no Bloco Ocidental. As pessoas que tem um pouco de dinheiro sobrando saem para esquecer as suas preocupações por um tempo. Não temos qualquer queda de cortinas bordadas, roupas decentes, ou adereços. É principalmente música improvisada ou dança."

"Mas mesmo assim faz a gente esquecer as preocupações, certo?"

"Hum?"

Shion estava olhando Nezumi sem piscar. Nessas últimas horas, ele tinha experienciado quase tanto como – não – talvez até mais do que ele havia visto e ouvido em toda a sua vida. É claro, isso ainda era apenas um vislumbre. Mas ele teve um vislumbre de como dura e brutal era viver apenas um dia, uma hora, até um momento, neste mundo. Se essas pessoas, em seu breve momento de descanso, decidissem ir para este lugar onde estava Nezumi por seu próprio livre arbítrio, e aí que seria incrível. Isso não enchia a barriga, nem matava a sede. Mas as pessoas ainda ansiavam por este palco extraordinário e as histórias que eram contadas neles, e imersos nelas, se esqueceriam de sua melancolia. Eles batiam palmas, choravam, riam e se movimentavam com ruído. Não havia como dizer quando a morte poderia vir varrê-los. Mas neste momento, eles ainda poderiam viver e desfrutar a vida. Poderiam viver e desfrutar a vida ainda mais por causa disso.

"Eu acho que é incrível, Nezumi."

Nezumi suspirou, apressadamente notou seu ato e fez uma careta.

"Pare com isso. Não é tão rósea como você acha que é. Você provavelmente nunca viu nem mesmo um palco."

"Você está certo. Na Nº 6, os alunos não tinham permissão para assistir a peças."

"Foi o que eu pensei. Especialmente para top-ranks como você, Sr. Elite. Tudo o que você assistia ou lia era estritamente limitado, embora você provavelmente nunca sequer percebesse que isso estava sendo retido de você."

"Nº 6?"

Rikiga parou em meio-gesto quando trazia um cigarro aos lábios. "Ei, espere um minuto. Você está dizendo que esse menino de peruca é da Nº 6? Você deve estar brincando comigo."

"Isso não é brincadeira, velho. E ele não está usando uma peruca."

"Então é algum tipo de chapéu novo? É isso o que está na moda nos dias de hoje?"

"Não, é o meu cabelo de verdade", respondeu Shion. "Só... um monte de coisas aconteceram devido a... hum, problemas."

"Ah?" Rikiga disse. "Não há nada que eu amo mais do que problemas. Se você realmente saiu da No. 6, deve ter problemas como nenhum outro. Quero ouvir a sua história. E a razão por trás desse cabelo."

Nezumi içou-se sobre a mesa, e se deixou balançar as pernas.

"Sentiu algum cheiro, velho?"

"O quê?"

"Seu nariz se contraiu. Você farejou uma informação interessante, ou o quê?"

Rikiga apalpou o nariz. Nezumi continuou rindo baixinho.

"É o mesmo gesto que os cães selvagens fazem quando eles sentem o cheiro de comida. O nariz se contrai, então fica vermelho."

A testa de Rikiga franziu, e uma expressão de claro desagrado distribuiu por suas feições.

"Eu já mencionei isso antes, Eve. Eu acho que eu tinha ideias erradas sobre você. Pensei que era mais delicado e refinado. Eu nunca teria imaginado tal uma criança rude e impetuosa. Estou desapontado, francamente."

"Eu pensei que você era meu fã"

"Pode me excluir dessa a partir de agora. Bom Deus, eu não sei por que você gosta tanto de provocar adultos assim."

"Karan", Nezumi falou calmamente. Rikiga congelou. "Você conhece uma mulher com esse nome?"

O corpo de Rikiga, que começava a mostrar os sinais de ganho de peso em sua meia-idade, oscilava perigosamente. Sua garganta contraiu quando ele engoliu em seco.

"Vocês conhecem Karan...? Vocês são conhecidos dela?"

"Ela é minha mãe."

Rikiga pareceu não entender as palavras de Shion imediatamente. Ele absorveu uma respiração profunda.

"Mãe?"

"Sou... Ah, meu nome é Shion. Sou o filho de Karan".

"Filho... filho de Karan, hein... quem é o pai?"

"Eu não posso dizer."

"Você não... você não sabe quem ele é? Ele está morto?"

"Não, eu ouvi de minha mãe que eles se separaram logo depois que nasci. Fomos apenas nós dois toda a minha vida. Eu nunca conheci meu pai."

Nezumi continuou a rir.

"Você está dizendo que há uma possibilidade de que ele possa ser seu filho?"

"Não... não pode ser... espere um minuto, er, qual é o seu nome mesmo?"

"Shion".

"Shion... Áster, hum. Karan gostava muito de flor. Uh... Shion, você pode esperar por um minuto? Eu vou te dar uma bebida... ah, quero dizer, uma não-alcoólica, é claro... Do que você gostaria? eu tenho de tudo. Ah sim, aqui... vamos para um lugar mais confortável, onde possamos conversar."

Rikiga bateu na parede atrás do sofá e pressionou sua mão direita sobre ela. A parede silenciosamente deslizou para o lado.

"Uau", Nezumi assobiou. "Reconhecimento de impressão digital? Você tem truques extravagantes neste lugar. Acho que não é tão surrado quanto parece."

Além do muro apareceu um quarto bem extravagante. O chão era forrado com um tapete de luxo, e havia cadeiras de couro, um sofá de couro, e uma mesa. Havia um fogo que ardia na lareira assentada na parede.

"Entre, por aqui. Vou pôr um pouco de café. Está com fome? Tenho algumas tortas excelentes."

Shion havia esquecido que ele estava morrendo de fome. Seu estômago vazio doía.

"Que tipo de torta?" Nezumi disse. "Eu prefiro de carne."

"Você pode calar a boca." Rikiga acenou irritado com a mão para o Nezumi.

"Você é horrível, nos tratando de forma tão diferente assim."

Rikiga ignorou e desapareceu em uma pequena sala adjacente. O aroma do café logo soprava sobre a eles.

"Café e torta, hein. Eu não acredito nisso." Shion mal tinha experimentado qualquer alimento salgado desde que havia escapado da No. 6. Nezumi deixou seu olhar vagar sobre o quarto.

"Você está certo. Eles são itens de luxo, com certeza. E vendo como esse quarto é equipado... parece que a informação de Inukashi foi direto ao ponto, afinal."

"Se for esse o caso..." Shion disse pensativo. "Não, isso não pode ser..."

"O que não pode ser?"

"Minha mãe me disse uma vez que meu pai gostava de dinheiro e de mulheres, e estava a um passo de se tornar um alcoólatra, um sem esperança que..."

"Servia para nada?"

"Isso. Um sem esperança que servia para nada... mas ela disse que ele era realmente gentil, honesto e direto."

"O que é que isso quer dizer? A sua mamãe ainda gosta dele?"

"Eu não tenho ideia... mas se encaixa com a sua imagem, certo?"

Nezumi lançou um olhar para a entrada da pequena sala, e fez uma careta.

"Eu não sei a parte sobre gentil, honesto e direto, mas ele com certeza é rápido e solto com as mulheres, e já é meio caminho andado para ser um alcoólatra. Agora que você mencionou, eu acho que vocês são meio que similares ao redor dos olhos. Bem, não temos teste de DNA aqui, então não haveria como saber com certeza... Shion, você não parece muito bem. "

"Ah, não... Eu provavelmente apenas estou com fome..."

"Não se preocupe. Apenas a ideia dele ser o meu pai me faria sentir mal também. Eu provavelmente teria uma febre."

"Você está com febre? Você está bem?" Rikiga colocou uma bandeja em cima da mesa. Sobre ela tinha café, torta e um copo de uísque. Shion ficou com água boca.

"Karan gostava de torta, também", disse Rikiga reflexivamente. "Ela também gostava de pão e bolos."

"Ela ainda ama isso", respondeu Shion. "Ela tem uma padaria para se sustentar agora."

"Padaria, hein... mm-hmm. Entendo."

Uma ideia acendeu na mente de Shion.

"Você se lembra do bolo de cereja?"

"Bolo de cereja? Eu não estou muito certo... o quê, você quer comer bolo de cereja?"

"Não, apenas... a minha mãe me disse uma vez que no dia em que nasci, meu pai chegou em casa com três caixas, cada uma com um bolo inteiro de cereja dentro. E os dois comeram juntos."

Rikiga levantou o copo de líquido âmbar e apertou os olhos.

"Isso é... uma das lembranças de Karan, hein? Mas infelizmente eu não me lembro disso. Eu nunca comprei um bolo de cereja ou comi com Karan. Eu nunca fui mesmo um residente da N º 6. Shion, Eu não sou seu pai ".

Nezumi engoliu sua boca cheia de torta e cutucou o ombro do Shion.

"Então ele disse. Que alívio, hein, Shion?"

"O que isso quer dizer, Eve?"

"Isso significa exatamente o que isso significa."

Shion pegou o memorando de Karan.

clip_image002

"Nós contávamos com este memorando para nos trazer aqui."

Rikiga olhou fixamente para os rabiscos da escrita de Karan. Shion falou.

"Pouco depois de eu... ter escapado da Nº 6, minha mãe me mandou isto. Ela deve ter pensado que você ainda estivesse aqui. Eu estou apenas querendo saber como você..."

'Conhece minha mãe' era o que Shion pretendia dizer depois, mas suas palavras ficaram presas em sua garganta. Uma lágrima caiu do olho de Rikiga.

"Karan... ela não se esqueceu de mim... ela se lembrou de mim... sua escrita... ainda a mesma que eu lembro..."

A cabeça baixa e os ombros largos tremiam ligeiramente. Nezumi cutucou Shion no ombro novamente.

"Egh, você vai ficar olhando para isso. Este velho é um bêbado chorão. Nesta idade fica demasiado vergonhoso falar sobre essas coisas, ha."

"Cale a boca. O que há de errado em chorar um pouco? Você está sempre chorando e gritando no palco."

"Isso tudo é atuação. O que você está dizendo é que está atuando também, velho?"

Rikiga encarou Nezumi com os olhos lacrimejantes, e levantou-se pesadamente. Ele pegou uma pasta na parte de trás de uma estante robusta. Ele apanhou uma única foto dela e colocou-a na frente de Shion.

"É Karan e eu."

Uma imagem de sua mãe estava sorrindo para ele, jovem, bonita e com um vestido de uma peça sem mangas. Ao lado dela estava Rikiga, muito mais magro e bem proporcionado do que agora, mesmo com uma pitada de infantilidade em suas feições.

"Ela foi tirada décadas atrás, não muito tempo depois de nos conhecermos. Karan ainda era estudante, ela estava interessada nas colunas que eu escrevi, e veio me visitar. O terceiro andar do prédio da empresa era o meu local de trabalho, e quando eu tinha acabado de voltar de uma entrevista, ela estava sentada lá. Era um dia chuvoso, e trovejava lá fora, mas ela veio todo o caminho até ali para me ver..."

Rikiga soluçou. Shion e Nezumi se entreolharam. Nezumi deu um suspiro longo, exagerado.

"Você era um repórter, não era, velho? Você pode resumir um pouco mais eficientemente? Então, basicamente o que você está dizendo é que você e a mamãe do Shion se encontraram pela primeira vez no terceiro andar do prédio da empresa Folheto Latch, estou certo?"

"É isso mesmo. Nós nos dávamos muito bem... Eu gostava de passar o tempo com Karan. Eu acho que deve ter sido amor. Naqueles dias, No. 6 não era tão fechada como é agora. As pessoas eram mais ou menos livre para ir e vir. Eu havia começado a minha carreira como jornalista, e uma das coisas que eu estava buscando era sobre a No. 6."

"Buscando? Então, você tinha algumas suspeitas sobre a cidade, né, velho? Você deve ter tido um nariz decente naquela época. Pena que é inútil agora".

Rikiga fixou Nezumi com o olhar de novo, e seu rosto se contorceu em uma posição estranha de meio careta.

"Eve, eu não estava brincando quando disse que era seu fã. Quando eu fui te ver, você estava de pé no centro do palco e recitava um poema. Arthur Rimbaud, eu acho que foi... Fiquei fascinado por sua aparência e sua voz."

Nezumi lambeu a graxa da torta de seus dedos, e cruzou as pernas.

"Mas, na verdade, eu chorei muito! O amanhecer é de partir o coração
Toda lua é atroz e todo sol amargo.
O amor acre inchou-me com torpor inebriante
O que minha quilha! O estouro deixe-me ir para o mar!
[1]

- Shion, sabe o que é isto?"

"Uma estrofe de 'O Barco Ébrio', se não me engano."

Nezumi riu. "Está correndo na curva da aprendizagem, não é? Eu posso te tratar bem para um pouco mais de serviço de fã se você quiser, meu velho. Que tal?"

"Não, obrigado. Mas deixe-me dizer, você foi brilhante no palco. Eu quase não posso acreditar que era a mesma pessoa que este pirralho insolente que está na minha frente. Então me faça um favor e pare de falar."

"Não se irrite", Nezumi falou mole. Ele descruzou as pernas, e seu rosto ficou sério. A expressão desapareceu de sua voz. Tornou-se plana e pesada. Era uma voz surpreendentemente diferente de momentos antes.

"No início, seis cidades foram fundadas, incluindo a No. 6, como cidades-modelo para o futuro. Eram modelos criados na busca de uma maneira onde a humanidade poderia viver confortavelmente em uma terra que foi reduzida a escombros, cheio de padrões climáticos anormais principalmente devido ao dióxido de carbono do consumo massivo de combustíveis fósseis durante as guerras. Foi isso, em primeiro lugar. O plano era que cada cidade ira tomar parte na pesquisa e no desenvolvimento de coisas como a energia limpa, que poderia ser produzida em massa para substituir os combustíveis fósseis e energia nuclear, e a tecnologia científica, que vai desde a nanométrica até as escalas cósmicas, de uma forma apropriada para as condições de cada cidade. Isso foi na esperança de que algum dia, todos nesta terra estaria livre de qualquer ameaça à sua vida, seja ela de guerra, catástrofes, ou pragas. E esse primeiro passo em direção a um mundo livre de ameaças de vida, a pedra angular da esperança, era a Nº 6. Em todos os aspectos, este era o objetivo em primeiro lugar. Não era isso, velho? "

Rikiga tomou em um gole o que sobrava em seu copo de uísque e tossiu levemente.

"Então acho que os clássicos não são as únicas coisas que você pode recitar de cor, Eve. O gerente me disse que não sabia o seu verdadeiro nome, idade, ou onde você nasceu. Ele disse que você era um andarilho que só apareceu do nada. Mas eu não acredito - você não é só um ator viajante. Qual é a sua verdadeira identidade?"

"Mete o nariz no que não é da sua conta mesmo depois de tudo. Assim, durante o tempo em que esta foto foi tirada, No. 6 ainda era vista como a esperança para toda a humanidade, certo? Mas você tinha dúvidas. Você devia ter um nariz fino para cheirar algo suspeito lá."

"Quando me tornei jornalista, No. 6 já estava em processo de mudança", disse Rikiga. "As organizações de investigação estavam reunindo todos os tipos de mão de obra qualificada, e os seus departamentos floresceram; Mas por outro lado, a informação e a liberdade de expressão foram se tornando mais e mais restritos. Pensei, isso realmente vai se tornar uma cidade utópica? Eu tinha minhas dúvidas. Você e a sua boca inteligente estão certos. Naquela época, eu tinha um nariz que podia farejar algo que não podia ver. Enquanto eu estava lutando, as barreiras se propagaram e cresceram mais seguras, e investigar a partir do lado de fora tornou-se muito mais difícil. Logo, você não podia nem entrar ou sair sem autorização da cidade. Isso aconteceu de repente. Desde que eu era um jornalista, fizeram com que eu nunca pudesse colocar os pés naquele lugar novamente. Eles eliminaram a liberdade de imprensa, assim como tal. Claro, isso significava que eu também não podia mais ver Karan. Para dizer a verdade, acho que me foi mais duro do que não ser capaz de fazer o meu trabalho.

Um pouco mais de uma década mais tarde... chegamos ao o que você está vendo agora. As imediações da Nº 6 se tornaram lugares cujo único propósito é de servir o centro da cidade. Terras agrícolas, pastagens, florestas recreativas ― esta é a lata de lixo deles. Destituição, disputa, doenças, violência ― todo o lixo que a Nº 6 cospe acaba aqui. Vocês dois provavelmente não sabem disso, mas esta cidade costumava ser pequena, mas era um lugar muito mais decente do que é agora. Pelo menos, não um lugar que foi classificado e arquivado afastado com um rótulo impessoal como o Bloco Ocidental. Porém eles transformaram este lugar numa lata de lixo. O que é essa esperança que eles estão falando para agora? Cidade Santa – é como alguns nomeiam essa desgraça. Parece mais como um demônio que libera toxinas em todos os lugares que vai."

"Eu acho que os seres humanos e as cidades são semelhantes, então," comentou Nezumi. "Com o tempo eles esquecem as ambições que tinham, e se corrompem para nenhum fim."

Nezumi tomou o resto de seu café, e lançou um olhar sobre o homem que tinha acabado de falar.

"O que isso quer dizer? Você está falando que eu estou corrompido?"

"Você pode dizer que não está?"

Shion deixou seus olhos fitarem o perfil do Nezumi. Ele sentiu que Nezumi estava provocando Rikiga. Rikiga respondeu a essa provocação. Não, talvez ele tivesse acabado de cair na armadilha hábil.

"Você está me criticando sobre como eu me tornei um bêbado, né? Como eu me reduzi a fazer revistas cheias de fotos nuas, a beber tanta bebida quanto eu poderia usá-la para banhar, e ainda por cima, a quase ser morto por uma mulher."

"Você parece amargo, velho. Mas, usar palavras bonitas não vai ajudá-lo a sobreviver aqui."

"Todo mundo sabe disso."

"Eu estou curioso é sobre como esta sala está decorada. Uma sala quente e boa comida. Você não consegue essas coisas com facilidade aqui. Eu não consigo ver todos esses seus rendimentos provenientes de revistas pornôs. Isso significa que você tem outras cartas na manga. Estou certo?"

Nezumi sorriu. Era um sorriso arrogante, mas elegante, como se emitisse um julgamento divino.

"Ouvi dizer que frequentemente funcionários de altos cargos da No. 6 vêm aqui secretamente."

A boca de Rikiga fez um movimento de mastigação.

"Velho, eu soube que estes homens te dão ordens para trazê-los o tipo de mulher que eles querem, como o intermediário em um acordo. Eu acho que as conexões de seus dias como jornalista acabou sendo bastante útil. E o pagamento enorme você recebe desses caras paga este estilo de vida luxuoso. Você suga os caras que estão bem no centro da cidade a qual você acabou de chamar de demônio, enquanto você vive à custa de mulheres que não têm escolha senão vender seus corpos para evitar o frio e a fome. Você não chama isso de corrupção?"

Toda a expressão desapareceu do rosto de Rikiga. Não tinha luz ou sombra, e pareceu estranhamente apagada. As chamas da lareira iluminavam a metade direita do rosto.

"... De onde você ouviu sobre isso?"

"De um cão."

"Um cão?"

"Um cão me disse que ouviu você e um homem sussurrando sob as escadas. Depois, o homem entrou em um carro e se dirigiu para a direita através das portas especiais do Escritório de Controle de Acesso, e entrou na Nº 6 sem qualquer dificuldade. O tipo de pessoas que podem ir entre a Nº 6 e o Bloco Ocidental livremente são limitadas. Só funcionários de altos cargos que têm um cartão especial de identificação com eles podem. Os demais que tentassem, seriam aniquilados nos portões."

Shion engoliu em seco, sentiu que estava assistindo a uma peça de teatro. Ele podia ler nada no rosto do homem, que era de cor vermelha por causa das chamas. De repente, a boca torceu.

"Como você gostaria de se unir, então?"

"Se unir?"

"No. 6 é um lugar chato. Você não tem permissão para ter uma vida desordenada. Mendigos e prostitutas não têm permissão para existir, todo mundo é apático. Então eles vêm aqui para abrir suas asas. Eles vêm, rir das mulheres que se vendem por qualquer mísera quantidade de dinheiro. Os homens reconfirmam que eles são de uma classe especialmente privilegiada, e se sentem felizes com isso mais uma vez. Depois de seu breve momento de diversão, eles voltam para casa aborrecidos. Esses tipos de pessoas são os que continuam vindo."

"Então, o negócio está crescendo, hein? Isso é bom para você."

"Felizmente, sim. Mas suas demandas parecem não ter fim. Eles me dão ordens diferentes a todo o momento. Primeiro, eles querem uma menina de pele escura, depois eles querem uma jovem com uma tatuagem nas costas toda. Fica estressante às vezes."

Shion estava de cabeça baixa. Doía-lhe ouvir Rikiga falar. Nº 6 era uma bela cidade superficialmente. Agora ele estava hesitante em falar que a beleza era real, sendo que, no entanto, foi ordenada. Sua natureza e edifícios mantinham-se em equilíbrio delicado, nem um supervalorizava-se, e todas as pessoas eram gentis e educadas. Por trás de tudo isso encontrava a verdade que ele estava ouvindo agora. Seus olhos se encontraram com os de Karan na fotografia.

Mãe, o lugar onde vivemos, o lugar onde você ainda vive agora, era apenas um monstro usando uma máscara de beleza. Mãe...

"E você está me convidando para acompanhá-lo nessa caça de mulheres?"

Era a voz do Nezumi, seca e quebradiça. Rikiga riu. Era vulgar e insultuoso para os ouvidos.

"Nunca. Isso seria um desperdício de uma boa mão de obra que poderia ser mais bem aproveitada. Eu realmente estive pensando sobre isso desde que eu o vi pela primeira vez no palco. Você poderia arrecadar tanto dinheiro quanto você quiser. Deve ser moleza para você conversar carinhosamente com aqueles rudes entediados para regá-lo com dinheiro. O que você acha? Isso vai pagar muito mais do que aquele teatro velho e surrado."

"Você está me dizendo para ter clientes? O álcool chegou a seu cérebro, velho?"

Rikiga zombou. "Não tente dar uma de bacana comigo. Deus sabe de onde você veio e por onde você anda – um ator vagante como você provavelmente teve experiência com isso de qualquer maneira. Não adianta fingir que você é um inocente."

"Cale-se!"

Foi Shion que havia gritado. Ele chicoteou a xícara de café e o seu conteúdo em Rikiga. Ele pulou sobre a mesa, agarrou-o pela camisa, que estava encharcada, e inclinou-se com todo o seu peso. Rikiga deu um grito curto no momento em que ele caiu no chão.

"Isso é o suficiente!" Shion gritou com raiva. "Como você ousa dizer algo tão degradante! Desculpe-se... desculpe-se com ele!"

Shion montou em Rikiga e sacudiu-o grosseiramente. A parte de trás da cabeça de Rikiga bateu contra o chão repetida vezes. Ainda segurando-o pelo colarinho, Shion fechou as mãos em torno da garganta de Rikiga.

"Não posso... respirar..." Rikiga engasgou. "Shion, por favor... eu realmente não posso... vou me desculpar... então pare..."

"Cale-se! Seu sem vergonha... crie vergonha"

Um par de mãos enfiou-se em suas axilas, e ele foi arrastado para trás.

"Shion, já é o suficiente. Mais uma coisinha e o velho vai desmaiar."

Rikiga se enrolou e tossiu.

"Isso foi uma surpresa", Nezumi murmurou, ainda segurando Shion por trás. Ele realmente parecia atordoado. "Nunca imaginei que você iria recorrer à violência. Eu acho que até você deixa o sangue subir à cabeça às vezes, hum, suficiente para ir atacando pessoas assim."

“... Primeira vez em minha vida..." disse Shion, um pouco sem fôlego.

"Eu posso dizer. Seu coração está a mil por hora".

Shion virou e impacientemente tirou a mão do Nezumi.

"Por que não está zangado?"

"Zangado? Se eu deixasse uma besteira como essa chegar a mim todo o tempo, eu estaria enlouquecido todo o ano. Estou acostumado com isso. Não é grande coisa."

"Idiota!"

"Idiota? Shion, para que você tá explodindo assim?"

"Você é um idiota. O que ele disse não foi uma besteira. Não diga que você está acostumado com isso. Não..."

Seus olhos queimaram. Uma lágrima derramou antes que ele pudesse fechá-los.

"Shion... vamos, não chore. Por que você... Eu não posso acreditar que você está chorando", disse Nezumi exasperado.

"Ele... insultou você".

"Hum?"

"Ele insultou. Ele disse coisas horríveis... queria te juntar com os oficiais imundos da Nº 6. Mas você diz que não é grande coisa. Você não estava nem mesmo bravo com isso... e isso me fez sentir ainda mais impotente e bravo – tão bravo... Eu nem sei mais o que fazer ... "

Nezumi abriu a boca para dizer alguma coisa, depois fechou de novo. Ele puxou a toalha da mesa e levou o fim dele para Shion.

"Isso é tudo o que tenho, mas você pode limpar o seu rosto nisso."

"Ok".

"Shion, aquele que foi insultado fui eu, e não você. Não chore por outras pessoas, não entre em brigas por outras pessoas. Brigue e chore apenas por si mesmo."

"Eu não entendo o que você está dizendo."

"Eu acho que não, às vezes é como se falássemos línguas diferentes. Olha, tem catarro saindo de seu nariz. Limpe-o, vá lá."

"U-hum."

"Eu sempre achei que é impossível compreendê-lo. Mesmo se passássemos toda a nossa vida juntos, eu provavelmente ainda não iria compreendê-lo. Você está bem na minha frente, mas ao mesmo tempo, é como se você estivesse longe. Isso é provavelmente porque..."

Rikiga levantou-se atrás de Shion.

"Sinto muito por interromper o momento, mas eu quero que você saiba que isso é toalha de seda. Tive um momento difícil para conseguir essa coisa, então eu apreciaria se você não limpasse o nariz nela."

Ele olhou para o rosto do Shion.

"Seu rosto com raiva parecia com o de Karan. Eu senti como se ela mesma estivesse me repreendendo. Embora ela nunca tenha gritado tão violentamente."

Então ele se virou para Nezumi e baixou a cabeça em desculpas.

"Sinto muito, fui longe demais. Eu merecia ter apanhado. Parece que a minha moral apodreceu com isso."

"Ela não apodreceu. Apenas está em conserva em álcool, isso é tudo."

Nezumi deu em Shion um suave empurrão nas costas.

"Acho que podemos chamá-lo um dia. Vamos para casa."

"Claro. Mas eu tenho que limpar isso antes."

Nezumi riu.

"Você realmente é um garotinho bem-comportado, não é?"

"Ria de mim o tanto que quiser, mas eu ainda vou limpar isso."

Shion agachou para pegar a xícara de café. Nezumi também pegou as pastas e pratos espalhados pelo chão. Seu corpo enrijeceu. Sua respiração prendeu em sua garganta, e ele congelou.

"Nezumi, o que há de errado?"

"Isso..."

Os dedos de Nezumi estavam tremendo um pouco enquanto eles seguravam uma única fotografia. Ela provavelmente tinha caído de uma das pastas. Rikiga estreitou os olhos.

"Qual é o problema? Ah, isso."

Havia vários homens e mulheres na foto, com Karan no centro.

"É uma foto da última vez que entrei na No. 6. É um retrato de Karan e seus amigos."

"Este homem..."

Nezumi apontou para o homem alto de pé ao lado de Karan.

"Esse cara, hein", disse Rikiga distraidamente. "Quem era ele mesmo? Eu acho que ele disse que estava em uma instituição para a pesquisa biológica, parece um sujeito brilhante, não é? Não me lembro muito sobre ele, no entanto. Ele realmente não se destaca. Eve, você conhece esse cara? "

"Eu acho".

"Como você o conhece?"

Nezumi respirou e respondeu calmamente.

"Ele é meu padrinho[2]."

Leia o capítulo 4.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Notas

  1. Rimbaud, Arthur. "O Barco Ébrio" ("Le Bateau ivre"). Obras Completas, Cartas Selecionadas. Trans. Wallace Fowlie. Chicago: University of Chicago Press, 2005. 135.
  2. Padrinho [名付け親] em japonês pode significar tanto "guardião" ou literalmente, "o pai (ou mãe) que deu o nome" ou aquele que nomeia a criança. Nezumi o usa em ambos os sentidos.
[Voltar]

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Ver mais…