segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

[Novel] No. 6 Volume 3 Capítulo 2 (Completo)

no. 6 volume 3

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(Parte A)

Capítulo 2: Cenas de tranquilidade

Sou o desesperado, a palavra sem ecos,
o que perdeu tudo, e o que tudo esvai.
Última amarra, ruído em ti minha ansiedade última.
Em mim gritas deserta e és tua a última rosa.

- Neruda, Vinte Poemas de Amor e uma Canção do Desespero [1]

 

Na Nº 6, pessoas com quarenta anos de idade consistiam a maioria da idade demográfica. Era uma cidade jovem. Devido a isto, a estranha pessoa idosa que passava na rua se destacava ainda mais intensamente.

Eu faria qualquer coisa para evitar o envelhecimento.

Ela estava farta de ver obesos, mulheres de cabelos brancos, nodosas; homens enrugados e similares.

A mulher trabalhava como enfermeira no Hospital Municipal Central, que era gerido diretamente pelos Serviços de Saúde e Higiene. Ela estava atualmente no comando da ala de idosos. Apesar do fato de que ela os abominava, tinha de lidar com os idosos a cada dia.

Por que eles se preocupam em permanecerem vivos?

A mulher passou a mão pelo seu longo cabelo marrom castanho o qual se orgulhava. Ela não podia suportar a ideia desse cabelo se tornar branco, e ter rugas e manchas aparecendo no rosto. Prefiro morrer antes de acabar ficando assim.

Ela estava falando sério. A Nº 6 tinha cuidados terminais de excelente capacidade profissional. Alguns diziam que não poderia se comparar à nenhuma outra cidade.

Uma vez que o idoso chegava a certa idade e recebia uma notificação da cidade, eles tinham o direito de viver em um lugar chamado Casa Crepúsculo, independentemente da sua classe social, sexo ou história pessoal.

A Casa Crepúsculo era uma instituição ideal que a cidade tinha construído para que os idosos pudessem passar o resto de suas vidas em abundância e conforto. As pessoas diziam que era como um paraíso para elas: instalações médicas para cuidados paliativos eram um dado; todas as coisas que ameaçavam machucá-los, seja a dor, o sofrimento ou a angústia, eram removidas. Era uma instalação sob o controle direto da cidade e do local de trabalho da mulher no Hospital Central, algumas pessoas idosas eram escoltadas até a Casa Crepúsculo cada semana. Não era divulgada a idade ou os critérios determinados para as pessoas serem enviadas para o chalé. Embora não muitos, ainda havia alguns idosos que morriam de doenças ou de fatalidades, antes mesmo de obter o direito de viver na Casa Crepúsculo. Era por isso que os idosos por unanimidade se alegravam ao receber a notícia de residência.

Foi o mesmo com a mulher, cujo pedido de residência aconteceu ontem. Ela estava com uma doença que tinha sido declarada incurável até mesmo pela tecnologia medica estelar da Nº 6.

"Eu estou tão feliz. Agora eu posso passar o resto dos meus anos em paz. Dou a minha gratidão a Deus e à cidade por sua compaixão."

A mulher, que tinha dito ser uma forte crente em Deus, apertou as mãos em seu peito, e murmurou palavras de oração antes de sair da ala hospitalar.

A Casa Crepúsculo. A mulher não sabia onde era localizada. A cidade também não tinha revelado seu endereço. Mas a mulher não tinha qualquer interesse na Casa Crepúsculo.

A mulher odiava as pessoas idosas. Seu desgosto era um lado da mesma moeda do medo que ela sentia em relação a envelhecer sozinha. A mulher era jovem e bonita. Ela queria ficar jovem e bonita para sempre. Através de seu trabalho, ela tinha ouvido rumores de que a cidade estava se concentrando mais do que nunca em sua pesquisa médica sobre a compreensão do mecanismo da vida. Ela também tinha ouvido falar que, a cidade estava investindo recursos consideráveis ​​na pesquisa das moléculas que têm a ver com o envelhecimento.

Se um medicamento para suprimir o envelhecimento fosse desenvolvido – se pudesse ficar assim, e nunca envelhecer - como seria esplêndido. Ela queria que sucedessem em breve, o mais rapidamente possível.

Ela estava quase na estação. Seus pais esperavam em seu lar, numa pequena casa em uma cidade de duas estações de distância. Um homem e uma mulher que acabaram de entrar em seus últimos anos, os dois tinham harpia, eram neuróticos e pretensiosos. Eles ainda se queixavam de que sua filha não tinha sido bem classificada pela cidade, em qualquer campo. Ela não queria envelhecer assim.

A mulher se viu refletida na janela da loja. Estou a caminho do trabalho para casa, então eu acho que não tem um jeito para não parecer um pouco cansada. Mas, ainda assim bonita. Meu cabelo, minha pele - ainda jovem, ainda bonita.

Ela deveria fazer algumas compras antes de ir para casa. Na vitrine, podia ver os vestidos luxuosos, sapatos elegantes e terninhos que ladeavam a loja. Nesta cidade, ela podia ter o que desejava. Claro, limitando a coisas dentro de seu alcance financeiro.

Excluindo a pequena parte da população que se revolvia penosamente na Cidade Perdida, os moradores da cidade não tinham nenhum problema em obter tudo o que precisavam desde que não estivessem atrás da maioria das coisas de classe Premium. Eles poderiam obter roupas, alimentos e residência sem dificuldade.

Não era tão bom como era para os residentes de Chronos, mas era muito melhor que para as pessoas da Cidade Perdida. Ela vivia uma vida relativamente confortável.

A mulher estava satisfeita com a sua posição. Ela queria desfrutar mais de sua juventude, sua beleza, seu conforto e sua vida que estava à sua frente.

Os pés dela pararam. Um par de sapatos exibidos na janela lhe chamou a atenção. Eles eram um rosa choque ofuscante. O inverno havia apenas começado, mas a coleção de primavera já estava sendo exibida. O rosa choque ofuscou: lá estavam eles, mais cedo do que em qualquer outra loja, mais rápido do que qualquer outra pessoa; convidando-a mais e mais.

A Celebração Santa era próxima semana. Era um dia que marcava a fundação da cidade. Festas e eventos comemorativos iriam ser realizados em toda a cidade. A mulher também estava planejando fazer duas coisas.

Eu vou comprar estes sapatos. E eu vou comprar um vestido leve de pêssego para combinar. Vou ficar esplêndida, eu sei disso.

Quando um sorriso satisfeito se espalhou em seu rosto, ela foi atingida com uma tontura repentina. Depois dessa breve crise, a base de seu pescoço ficou quente.

O que há de errado comigo? - Eu me sinto cansada - Meu corpo está pesado.

Suas pernas se sentiam fracas. Ela sentiu náuseas.

Eu tenho que descansar em algum lugar...

Ela entrou em um beco entre duas lojas. Supôs que lá seria uma clínica dirigida pelo Hospital Central.

Eu só tenho que chegar lá...

Seu pescoço estava queimando. Ela sentiu que havia algo se contorcendo debaixo de sua pele. Sentiu a sensação estranha e perturbadora de seu corpo sendo torcido secamente.

O quê?

Ela cambaleou e caiu. A bolsa se abriu, e seu conteúdo se espalhou. A mulher estendeu a mão para pegar as coisas dela, e gritou quando percebeu o que viu.

Manchas – manchas pretas, como placas senis, e várias delas, foram aparecendo. Sua pele rapidamente perdeu a umidade e começou a rachar.

Não pode ser... o que... o que está acontecendo?

A mulher pegou seu espelho e olhou para ele. Ela gritou novamente. Mas sua voz era rouca, e o que saiu foi apenas um sussurro.

Meu rosto, meu rosto...

Seu rosto, o qual momentos antes era tão bonito, estava mudando rapidamente diante de seus olhos. Rugas vincaram a sua pele, manchas a desfiguravam, e seu cabelo começou a cair.

Algo se contorceu na base de seu pescoço. Havia algo vivendo dentro de seu corpo. A mulher, tomada pelo medo, percebeu que seu corpo estava sendo tomado por outra coisa.

Não, me ajude... Mãe... Pai... Salvem-me...

Os rostos de sua mãe e de seu pai apareceram diante de seus olhos.

Mãe, Pai...

Seus dedos, estendidos em apelo, agarraram o ar. A inconsciência a dominou.

* * *

Karan se sentou no banco e soltou um suspiro, um dos muitos que ela havia soltado hoje. Ela sabia que suspirar era inútil. Poderia gritar, poderia se lançar no chão, mas a realidade não se mexeria. Não iria mudar. Então, pelo menos, ela poderia se manter desafiante. Ela iria levantar os ombros, manter a cabeça erguida, e não ter vergonha.

Isso foi o que ela havia pensado, mas logo depois, um suspiro escapou de seus lábios.

Eu não posso fazer nada. Eu sou impotente...

Karan tentou abrir as duas palmas das mãos viradas para cima em seu colo. Os raios suaves do sol de inverno brilhavam sobre as palmas das mãos brancas. Ela sentiu outro suspiro vindo.

Karan fechou a sua pequena padaria em um canto da Cidade Perdida hoje, e passou metade do dia andando por aí. Ela havia embarcado para visitar Safu, em sua casa e de sua avó, no bairro de luxo, Chronos.

Se os residentes eram reconhecidos pela cidade como sendo da categoria mais alta de um dos vários campos, eles eram autorizados a viver em Chronos, independentemente do sexo, educação, ou estrutura familiar. A cidade fornecia alojamento, bem como um ambiente ideal adequado para o crescimento e desenvolvimento de cada habilidade.

Quando seu filho Shion foi classificado com nível superior em inteligência nos Exames para Crianças de Dois Anos de Idade, Karan também havia recebido uma residência em Chronos. Condições de vida confortáveis, e uma vida inteira de segurança ― como uma elite, graças a seu filho que, provavelmente, eventualmente trabalharia trilhando o seu caminho até os altos escalões de Nº 6 ― Karan estava em uma posição que muitos invejavam e desejavam.

Uma posição que muitos invejavam e desejavam ― era uma vida de conforto, livre da necessidade de se preocupar das dores do amanhã, livre de fome ou de qualquer violência, uma vida onde o ambiente interior, segurança, higiene e condições físicas eram todas monitoradas.

Karan lentamente apertou sua mão. Seus dedos, que eram lisos e macios quando ela vivia em Chronos, tornaram-se ásperos e desgastados com o seu trabalho na Cidade Perdida, e sua pele, por vezes, rachava e sangrava.

Mas antes de perder Shion, eu era mais feliz do que quando eu estava em Chronos. Muito mais feliz.

Karan nunca tinha se ajustado bem a uma vida onde todos os aspectos dos minutos eram controlados e verificados, e tinha começado a sentir uma espécie de terror o qual seus nervos iam se desfazendo. Foi por isso que, quando Shion cometeu um tabu e engajou em um ato inacreditável de abrigar um fugitivo, ela sentia ― mais do que surpresa, mais do que desesperada ― uma sensação de alívio, mesmo. Ela ainda se deparou gostando disso.

É claro que ela sabia em sua mente racional que isso significava que todos os seus privilégios especiais seriam revogadas, bem como o direito de viver em Chronos, e que o caminho para o futuro de Shion seria fechado para sempre. Mas ela ainda gostava disso.

Ela queria louvar em vez de repreender as ações de seu filho, que foram tão tolas para alguém com tal nível de inteligência. Shion tinha jogado fora sua vida em Chronos tão facilmente. Ao contrário da sua vida estável e segura, ele havia escolhido o caminho de proteger alguém que havia fugido em seu quarto numa noite de tempestade. Foi um erro, mais do que qualquer outra coisa. Mas ele não estava errado em cometê-lo.

Isso significava que Shion também não tinha visto muito significado na vida em Chronos. Para ele, era algo que poderia jogar fora facilmente. Ele só tinha descartado o que era sem sentido para ele. E isso não estava errado, contudo.

"Mãe, me desculpe."

Em sua primeira noite de mudança para a Cidade Perdida, 12 anos, Shion abaixou a cabeça enquanto pedia desculpas à sua mãe.

"Desculpa por quê?"

"Porque... Mãe, você... você tem que sair e trabalhar agora."

O crime Shion foi ajudar a clandestinidade e auxiliar a fuga de um criminoso violento, chamado de VC na Nº 6. Pela relação à sua idade, ele havia sido poupado apenas com o exílio de Chronos. Mas, por sua vez, ele foi proibido de viver em qualquer outro lugar que não fosse a área da cidade de menor classe residencial da Cidade Perdida. Mãe e filho haviam deslizado a partir da crista do topo da montanha para o fundo do vale em apenas uma noite. Em primeiro lugar, eles tinham que pensar em um meio de vida para o futuro.

"Eu sinto muito."

Seu queixo desenhado, que ainda carregava um semblante de infantilidade, tremeu. Karan colocou o braço ao redor dos ombros de seu filho em um abraço firme.

"Que coisa estúpida de se dizer," ela disse suavemente. "Você não deve se desculpar por algo assim."

"Mas..."

"Shion, você é a mamãe aqui, ou eu? Eu acho que você misturou os papéis", ela o repreendeu na severidade fingida. "Sou muito mais resistente do que você imagina. Aposto que você não sabia disso, não é?"

"Não."

"Então, isso é algo que você pode esperar ansiosamente. Verá o quão resistente pode ser sua mãe em breve. Você vai se surpreender."

Em seus braços, Shion deu uma risada silenciosa.

Quantos anos haviam se passado desde que abraçara seu filho assim? Naquele dia, no quarto, escuro e úmido que uma vez fora uma despensa para materiais de construção, o que Karan sentia não era nem desespero nem dor. Era a alegria do calor de seu filho em seus braços, e o sentido de realização que somente a maternidade poderia trazer.

"Que tipo de pessoa era ele?"

"Hein?"

"A pessoa que você tomou sob sua asa. Eu estava me perguntando como ele era. Estou curiosa para saber... Mas você não irá me dizer, certo?"

O corpo de Shion encolheu para longe dela como se tivesse sido picado. Seu beicinho e suas bochechas coradas lhe pareceram tão engraçadas que Karan não poderia deixar de sorrir.

"Boa noite", Shion murmurou, e com a expressão ainda em seu rosto, trotou às pressas para fora da sala. Mesmo depois da porta raquítica ter se fechado com um ruído alto, Karan ainda estava sorrindo.

Ela se perguntava que tipo de menino era. Que tipo de garoto fez Shion deixar Chronos para trás? E por que esse menino atraiu Shion e o deslumbrou?

Ela queria saber, mas Shion provavelmente nunca colocaria isso em palavras. As crianças aprendiam a esconder seus sentimentos, ou encontravam algo que os faziam fazê-lo, e assim era como eles cresciam. Talvez ela nunca fosse capaz de puxar seu filho assim para perto de novo, sem hesitação.

Assim como um pássaro plenamente desenvolvido estende suas asas jovens para deixar o ninho, Karan sabia que ela teria de deixar Shion partir algum dia. Ela estava preparada. Poder ver o filho levantando voo, ela imaginava que seria uma coisa alegre como mãe. Então, a partir de amanhã, ela se serviria para o trabalho.

Fiel ao seu voto, durante quatro anos na Cidade Perdida, Karan trabalhou incansavelmente. Ela começou cozinhando pão e vendendo na rua, eventualmente, ela equipou um canto de sua residência em uma padaria, e aumentou a variedade de seus produtos. Seus pães acessíveis e bolos saborosos ganharam popularidade na Cidade Perdida, onde havia poucos luxos. O negócio cresceu, e sustentou a sua casa de dois.

Crianças pequenas apareciam para comprar bolinhos, sem fôlego e com moedas apertadas firmemente em seus pequenos punhos. Um trabalhador idoso vinha para comprar um bolo para dar de presente para seus netos. Havia clientes que iam à primeira hora na parte da manhã para comprar pães frescos.

Karan estava satisfeita com a sua vida na Cidade Perdida. Não era bravata, nem estava tentando enganar a si mesma. Ela não tinha um fio de ligação deixado com Chronos. Ela estava trabalhando e colhendo as suas recompensas. Era uma vida que havia construído com suas próprias mãos, com os pés firmemente plantados no chão. Ela não desejava nada mais.

Karan foi, à sua maneira, feliz - até que aquele dia chegou.

Um dia, Shion tinha simplesmente desaparecido. Ele havia partido pela manhã para seu local de trabalho no Escritório Administrativo do Parque Florestal, para nunca mais voltar para casa. Isso estava longe do tipo de despedida que havia se preparado para enfrentar como mãe. Esta não era uma forma natural de partir - era tão irregular, tão repentina, tão cruel. Ela percebeu o quão ingênua e sonhadora tinha sido ao pensar que iria ver seu filho levantar voo do ninho dos pais.

Ele foi levado para a prisão como suspeito de um crime violento, e foi encarcerado na Instituição Correcional.

Quando ela recebeu a notícia da Secretaria de Segurança, Karan experimentou toda a extensão da feiura do desespero. Se desesperar significava girar nas dobras da mais profunda escuridão. A escuridão deslizava em seu corpo, e entorpecia suas mãos e seus pés. Como irresistível pareceu ser a morte então.

Mas havia alguém que tinha dado a ela a esperança de viver. Nezumi. Ele entrou em contato com ela para deixá-la saber que Shion estava vivo e no Bloco Ocidental. Ele havia entregado uma curta carta de Shion para ela. Quão bela era a pequena luz que havia brilhado em meio a seu desespero escuro.

Mãe, me desculpe. Bem e vivo.

O rabisco apressado de poucas palavras se tornou um raio de luz que rasgou a escuridão, e tornou-se a voz que sussurrou vividamente em seu ouvido.

Karan abriu sua loja, e continuou a cozer o pão. Até que Shion chegasse em casa, ela cerraria os dentes e esperaria. Ela iria continuar esperando. Nezumi tinha trazido a força para que ela pudesse fazer isso. Às vezes, ela permanecia sobrecarregada com a ansiedade e a vontade de gritar, mas a vida diária de Karan foi gradualmente recuperando a sua estabilidade. Foi nessa época que Safu apareceu em sua porta.

Safu, como Shion, também foi reconhecida com o topo do rank por inteligência. Ela era uma menina cujos olhos grandes e negros se destacavam definidos em seu rosto, e também tinha um olhar honesto. Safu, com poucas palavras, mas com uma forte vontade, tinha falado de seu amor por Shion, e proclamou que ela estava indo para o Bloco Ocidental para vê-lo.

"Não importa para mim. Mesmo se eu nunca puder voltar aqui novamente, eu não vou me arrepender. Se Shion está no Bloco Ocidental, é para onde eu vou."

"Eu quero vê-lo. Eu quero ver Shion."

"Eu... eu o amo", Safu disse, sua voz tremendo. "Do fundo do meu coração, eu sempre, sempre, amei somente ele."

A menina de dezesseis anos de idade havia formado estas palavras, lutando para conter as lágrimas, e por suas simplicidade e estranheza, elas haviam tocado o coração de Karan ainda mais. Mas mesmo estando comovida, ela não poderia deixar Safu ir para o Bloco Ocidental. Como mãe de Shion, e adulta formada, ela tinha de parar ela.

Safu deixou sua loja, e Karan a seguiu pouco tempo depois. O que ela testemunhou foi o sequestro de Safu pelos funcionários da Secretaria de Segurança.

Já havia passado três dias desde então.

"Safu..." Ao final de sua sagacidade, Karan deixou outro suspiro escapar de seus lábios. Ela não fazia a menor ideia do que iria fazer a seguir. Ela tinha passado um memorando para o ratinho mensageiro. Isso era tudo o que havia feito.

Será que Nezumi salvaria a menina, como fez com Shion? Se ela já estivesse presa na Instituição Correcional, parecia ser quase impossível salvá-la. Se Shion descobrisse, e partisse para a Instituição Correcional para salvar Safu, talvez desta vez ele fosse realmente morto. Talvez eu tenha feito algo imprudente... Não havia nenhuma maneira de que Nezumi tomasse tal risco para salvar um completo estranho. Seus sentimentos se desfiaram em tiras pequenas, e fizeram seus dedos tremerem.

Karan passou estes últimos três dias quase sem dormir ou comer. Ela estava física e mentalmente exausta, ainda não era capaz de ficar parada, e tinha vindo até aqui, perto de onde Safu costumava viver.

O bairro de luxo de Chronos.

Vegetação abundante, e um ambiente tranquilo. Um sistema de segurança completamente funcional. Várias instalações, para cuidados médicos, entretenimento e compras eram fornecidas na íntegra, e os moradores poderiam usá-las livremente com apenas um cartão de identificação. Mesmo dentro da Cidade Santa de Nº 6, Chronos era de uma classe diferente, uma residência além dos sonhos mais longínquos.

Embora Karan tivesse sido uma residente daqui apenas a alguns anos atrás, desta vez havia sido impedida de entrar até mesmo nas ruas. Assim que ela pisou no caminho de pedras que levava a Chronos, os portões se fecharam.

Lamentamos muito. Devido a preocupações com a segurança, a área para além deste ponto é acessível apenas aos residentes de Chronos. Obrigada pela sua compreensão. Além disso, quem passa pelos portões sem uma licença de entrada para bairros residenciais especiais emitidos pelas autoridades está sujeito a remoção do local e punível pelo artigo 203 da Lei Municipal Cláusula 42. Repito ― Devido a preocupações com a segurança...

Uma voz suave feminina fluiu continuamente. A câmera de vigilância ligada aos portões brancos silenciosamente capturaram Karan enquanto ela estava com os pés enraizados no chão. Se ela permanecesse imóvel ali, a voz suave iria se transformar em um alarme estridente, e funcionários da Secretaria de Segurança entrariam em cena. Karan não tinha escolha a não ser virar as costas para o portão, morder o lábio, e voltar do jeito que ela tinha vindo.

E agora, em um canto do Parque Florestal, ela estava sentada em um banco sob uma árvore grande que havia perdido todas as suas folhas. Ela sentou-se, olhando distraidamente para as mãos.

"Shion... Safu..."

Por que sou tão impotente? Eu vivi por décadas, eu sou uma mãe, eu sou uma adulta, e eu não posso nem mesmo ajudar dois jovens que estão no meio de uma crise. Eu estive viva por tanto tempo, e agora...

Karan ergueu o rosto. Uma emoção muito diferente de medo ou ansiedade cruzou um canto de seu coração. Nos anos em que a Nº 6 se moldava e começava a amadurecer como uma cidade independente, Karan viveu em seu interior como residente.

Seis cidades foram fundadas neste mundo, construídas sobre os numerosos erros que a humanidade tinha causado. Era um lugar livre de guerra ou de fome, e as pessoas podiam viver aqui em paz e liberdade. Aqui, as pessoas poderiam viver, desde o nascimento até a morte, seguras, felizes e tranquilas. Era assim que deveria ser. Ela nunca havia pensado profundamente sobre isso. Todo mundo achava que enquanto permanecessem na Nº 6, seria prometido uma vida satisfatória.

Eles pensavam eles haviam pensado - eles foram ensinados a pensar.

Ela apertou os dedos e mordeu o lábio mais forte.

É tudo uma mentira. Tudo isso... é apenas uma aparência.

Ela sussurrou sem colocar em palavras. Embora estivesse à beira do inverno, ela estava começando a transpirar.

Eles eram divididos em incontáveis classes ​​por seus cartões de identificação para que não fossem nem mesmo livres para viajar dentro da cidade. Seu filho havia sido levado à força em custódia, e ela não era permitida nem mesmo fazer uma objeção formal. Ela nem podia confirmar a segurança de outra moradora que havia sido apreendida pelas autoridades. Onde estava a liberdade? Onde estava a paz, a segurança, e a vida de realizações? Em lugar nenhum.

Se isso for verdade, então o que estivemos fazendo todo esse tempo? Por que criamos uma cidade como esta? O que temos feito ― onde temos errado?

"Com licença..."

Karan foi trazida abruptamente de volta à realidade por uma voz.

"Desculpe. Eu te surpreendi?" Uma senhora idosa usando um pequeno chapéu azul-claro estava sorrindo para ela. Era um rosto que ela não conhecia.

"Ah... oh não, não é nada", disse Karan apressadamente. "Eu sinto muito, eu só estava um pouco perdida em pensamentos... Há alguma coisa...?"

"Você se importaria se eu me sentasse ao seu lado?"

"Nem um pouco, por favor."

A mulher, ainda sorrindo, abaixou-se em seu assento ao lado de Karan.

"O tempo está esplêndido, você não acha? Muito bom".

"Sim, está." O tempo era a última coisa em sua mente. Nesses últimos dias, ela não sentia nada na cor do céu, no som do vento, ou na vista das árvores.

"Você deve ter pensado que sou uma velhota bastante rude para de repente falar assim com você, não é?" a mulher disse suavemente.

"Não, não, claro que não. Eu só estava um pouco surpresa. Eu estava pensando sobre alguma coisa, e não tinha percebido que você estava aí."

A senhora empurrou os óculos redondos no nariz e seu rosto ficou sério.

"Vê, é exatamente por isso que decidi falar com você."

"Desculpe?"

A mulher estava usando um anel de prata. Seus dedos se estenderam para apertar em torno da mão de Karan.

"Por favor, eu não quero que você fique ofendida. Eu sei muito bem que estou sendo intrometida." Ela hesitou. "Mas você tinha um olhar tão desamparado em seu rosto, eu não pude ficar sem fazer alguma coisa."

Ah, Karan disse suavemente, com a mão ainda entrelaçada com a da mulher.

"E foi por isso que você tomou tempo para falar comigo?"

"Ah, sim. Lá estava você, em um dia tão bom, em uma tarde esplêndida, parecendo tão preocupada como nunca. Você estava sentada sozinha, hesitando no banco, com a cabeça baixa. Não tinha como eu ficar sem dizer alguma coisa."

A mulher idosa apertou os dedos em torno das mãos de Karan, e envolveu-as ternamente em suas próprias mãos.

"Por que uma mulher tão jovem e bela como você, está sentada com esta feição? Aconteceu alguma coisa?"

O par de olhos por trás dos óculos era suave e gentil. Acima de suas cabeças, os galhos de uma árvore de faia estavam balançavam.

"Obrigada por se preocupar. Acabei de passar um pouco de dificuldade..."

"Sim, eu entendo", disse a mulher com simpatia. "Houve um tempo em minha vida também que eu estava terrivelmente sobrecarregada com problemas." Seu semblante envelhecido, mas digno, nublou ligeiramente. O coração de Karan pulou por um instante.

Havia outras pessoas chocadas como ela? Havia outras pessoas que sofriam como ela? Havia outras pessoas que perceberam contradições na cidade também?

"Foi devastador, mesmo que tenha acontecido décadas atrás. Eu perdi o meu filho por uma doença."

"Nossa, uma doença", murmurou Karan.

"Sim, e ele tinha apenas três anos. Quando morreu, eu ainda me lembro de ter chorado incontrolavelmente quando vi o quão pequeno era o caixão. Você iria entender, não é, os sentimentos de uma mãe que perdeu seu filho?"

Karan tentou assentir, e parou o queixo a tempo. Shion ainda estava vivo. Eu não perdi meu filho ainda.

"Eu não consigo dizer que entendo...", ela disse lentamente, "mas você deve ter sofrido tanto."

"Sim. Palavras não podem descrever o que eu passei. Muitas vezes, pensei o quão melhor seria se eu estivesse morta. Mas agora, eu estou feliz por estar viva. Eu não poderia estar mais feliz, vivendo em uma cidade tão brilhante, cercada por meus filhos e netos."

A mulher sorriu, e lançou o olhar ao seu redor.

"Eu sempre quis que meu filho tivesse a experiência de crescer aqui. Não... se o cuidado médico de Nº 6 fosse naquela época o que é agora, tenho certeza de que ele não teria morrido."

Karan puxou sua mão de volta brevemente. O olhar da senhora idosa vagou no céu enquanto ela continuava a falar. Em seus lábios ainda aparecia um sorriso vago.

"Eu realmente acho que este lugar é uma utopia. Sabe, eu digo isso para os meus netos constantemente. Eu digo, você deve ser grato por ter nascido aqui. Eles só ficam duvidando, é claro... É quando eu lhes digo sobre Bloco Ocidental".

"Bloco Ocidental?" O coração de Karan se acelerou novamente, por uma razão completamente diferente desta vez.

"Sim, o Bloco Ocidental. Você sabe que tipo de lugar é?"

Karan se inclinou para frente. Ela queria saber. O Bloco Ocidental era onde Shion estava, e ela queria saber dos detalhes, que tipo de lugar que era.

"Eu não tenho a menor ideia. Por favor, me diga."

A senhora franziu a testa e balançou a cabeça.

"Eu não sei muito sobre isso. Mas meu sobrinho trabalha no Serviço de Controle de Acesso, e eu ouço histórias dele às vezes. É um lugar horrível, eu ouço."

Karan conteve seu coração impaciente, e murmurou em concordância. Ela queria incentivar a senhora para continuar sua história.

"A higiene de lá é absolutamente atroz, e eu ouço que as crianças têm que beber água contaminada."

"Contaminada..."

"Sim, não é horrível? Eu sinto tanta pena deles, meu coração dói. Comparado a isso, as crianças desta cidade não poderiam estar mais feliz. Você não concorda?"

"O que? Quero dizer... sim, mas..."

"É por isso que lá eles são atormentados com doenças contagiosas o tempo todo, que nós nunca poderíamos imaginar dentro da Nº 6. O crime é uma ocorrência diária, e a segurança é quase inexistente. Os moradores do Bloco são todos ignorantes, selvagens, e até mesmo matam um homem sem pestanejar se isso significar dinheiro para eles. Recentemente, eu soube que um grupo de homens violentos tentou forçar o caminho para o Serviço de Controle. Naturalmente, já que seu sistema de segurança é perfeito, eles foram presos antes mesmo de colocar o pé lá. É assustador, de verdade."

A senhora colocou os braços em volta de si e estremeceu.

"Meu sobrinho me disse que o lugar é como um inferno, o ambiente mais vil, o pior possível. Deve ser sempre tão diferente daqui. Devemos nos contentar, também, por sermos moradores de Nº 6... Não apenas nossos filhos. Eu não tenho medo de contar aos meus netos como sortudos eles são como habitantes de Nº 6, em comparação com o Bloco Ocidental."

O Bloco Ocidental. O ambiente mais vil, o pior possível.

Karan fechou os olhos. A caligrafia de Shion flutuou em sua mente. Era um rabisco simples, e apenas uma linha. Era uma mão ligeiramente inclinada, distintiva.

Mãe, me desculpe. Bem e vivo.

As cartas eram cheias de energia. Eram escritas que irradiavam o vigor juvenil para a vida. Ele estava vivo no Bloco Ocidental. Sempre tão forte, neste instante, ele continuava a viver.

"Aconteceu alguma coisa?"

Ela abriu os olhos ao ouvir as palavras da senhora.

"Está se sentindo mal? Devo contatar o Departamento de Saúde e Higiene?"

Karan balançou a cabeça lentamente.

"Eu não acho."

"Perdoe-me?"

"Eu não acho que o Bloco Ocidental é o mais vil, nem o pior."

"Ora, o que..."

"E eu não acho..."

Eu não acho que esta cidade é uma utopia, também.

Assim quando ela estava prestes a dizer essas palavras, houve um som, uma onda de asas batendo, e um objeto preto veio voando para ela de cima.

(Parte B)

A mulher idosa deu um pequeno grito.

"Céus, um corvo!"

Um corvo com asas negras brilhantes havia pousado aos pés de Karan.

"Como perturba", disse a mulher, inquieta. "Sempre teve corvos no Parque Florestal?" Ela franziu a testa.

"É um ambiente natural afinal de contas. Há corvos, embora provavelmente não muitos deles", respondeu Karan. O corvo levantou voo novamente. Ela pensou que ele iria voar para longe, mas em vez disso, ele bateu suas asas bruscamente e desceu outra vez sobre o ombro de um homem.

Foi Karan que dera um grito de surpresa desta vez. Com tudo isso, ela não havia notado que tinha alguém por perto. Durante sua conversa com a mulher idosa, houve outros transeuntes: um homem idoso com o seu cão, uma menina inclinando-se para pegar uma folha colorida, um grupo do que parecia ser estudantes - mas ninguém com um corvo em seu ombro. Quando ele tinha chegado tão perto? Há quanto tempo ele estava lá? Era um tanto enervante.

O homem era alto e magro, vestido com uma jaqueta marrom-claro com calças da mesma cor. Ele tinha uma cabeça cheia de cabelos, mas com manchas cinza que se destacavam. O bigode também era salpicado com cinza. Além do fato de ter um corvo empoleirado em seu ombro, ele parecia como um homem de meia-idade comum. E ele era um completo estranho.

Mas o homem estendeu as duas mãos em direção à Karan com um sorriso no rosto. Ele ainda mencionou o nome dela enquanto falava.

"Karan, eu senti sua falta."

"Hein?"

Antes que ela pudesse dar uma resposta decente, o homem agarrou Karan pelo braço e a puxou para ele. A estatura pequena de Karan se aninhou facilmente nos longos braços do homem quando a cercaram. Ele a estava segurando tão apertado que ela não conseguia respirar.

"Perdoe-me", ele implorou. "É tudo culpa minha. Eu nunca vou fazer algo que vai fazer você se sentir mal novamente. Prometo. Você vai ser a única que eu amarei para o resto da minha vida."

"Desculpe, o que?" Karan gaguejou em alarme. "O que você está fazendo?"

"Eu não percebia o quanto eu a amava até você se for. Por favor, estou implorando. Diga que vai ficar de novo comigo, Karan".

Ora, ele enlouqueceu.

Seu primeiro pensamento foi de que ele estava fora de si. Mas se alguém estivesse louco, não seria capaz de andar nas instalações da cidade. Assim quando o pensamento cruzou sua mente, ela notou os batimentos cardíacos do homem. Eles estavam tão perto um do outro que ela pôde sentir seu coração batendo em seu próprio peito. Batia com um ritmo constante. O homem não era nem louco, nem excitado com nervosismo. Ele estava despejando essas linhas clichês muito fria e calmamente.

"Eu não acredito nisso. Já basta!" Karan enfiou os braços a sua frente e empurrou o homem. "Já basta dessa sua fala mansa. Estou te deixando. Nunca mais quero vê-lo novamente."

"Karan, eu te amo. Estou muito apaixonado por você, de verdade." O corvo no ombro do homem crocitou estridentemente, como que para zombar deles. O homem limpou a garganta sem jeito e inclinou a cabeça para a senhora idosa que estava olhando para eles com a boca escancarada.

"Lamento muito por ter que mostrar uma cena tão feia."

"Oh... ah, você não precisa...", a mulher disse vacilando. "Então, er, vocês dois são...?"

"Nós somos noivos", respondeu o homem. "Eu fui um idiota, e lhe causei muita dor. Eu só queria pedir desculpas a ela e começar de novo."

"Certo. Bem, isso é..."

"Nós temos algumas coisas importantes para discutir, então se você nos dá licença..."

O homem agarrou o braço de Karan e ela foi meio que arrastada para longe de cena. O corvo crocitou alto novamente. Eles pegaram uma rota de volta por trás do Posto do Parque – antigo local de trabalho de Shion – e saíram pela parte de trás do parque. O homem não pronunciou uma única palavra durante todo o caminho. Karan também se manteve em silêncio enquanto era puxada pelo braço.

Havia um carro branco estacionado no meio-fio. Era um modelo muito antigo, raramente visto nas ruas da cidade. O homem abriu a porta e falou sem qualquer hesitação.

"Entre"

"Não, obrigada."

"Entre", repetiu o homem. "Tem algo que eu quero falar com você." Com um grande swing de suas asas, o corvo voou ruidosamente do ombro do homem para o banco de trás do carro. Então, ele olhou para Karan e empurrou sua cabeça, como se a convidá-la a seguir.

"Ele parece ser um pássaro inteligente", observou Karan.

"Ele é um pouco inteligente demais para o seu próprio bem." O longo tom sofredor do homem contou quantos problemas a ave devia ter-lhe causado. O corvo abriu bem o bico e fez um som cacarejante. Parecia que estava rindo. Karan encontrou-se rindo um pouco também. Só depois de rir ela percebeu o quanto tinha ficado nos últimos dias sem rir, e nem mesmo sorrir.

Karan continuou sustentando o olhar do corvo enquanto deslizava para o banco do passageiro. O carro híbrido deslizou para frente silenciosamente. Quando imergiram na estrada, o homem pressionou o botão da direção automática e tirou as mãos do volante.

"Você sabia? Uma nova lei está sendo posta em prática, e não seremos mais permitidos usar gasolina começando já no ano que vem. Isso significa que não poderei mais conduzir este carro."

"Eu ouvi dizer que os combustíveis fósseis quase se esgotaram, exceto o carvão", disse Karan. "Eu acho que nós não temos outra escolha a não ser mudar para outra fonte de energia."

"De quem você ouviu isso?"

"De quem...? Bem, isso foi anunciado na política de energia da cidade..."

"Exatamente. Um anúncio das autoridades. O discurso do prefeito sobre sua política administrativa, palavra por palavra." O homem contraiu o bigode em um sorriso cínico. "Ninguém o questiona. Todo mundo aceita como é tudo o que a cidade anuncia, concordando sem pensar. Deus, todos nesta cidade maldita são tão obedientes e ingênuos. Duvidar de seus superiores é a última coisa em suas mentes. Eles provavelmente nem podem se imaginar fazendo isso, nem querem. Suspeitar toma energia. É mais fácil apenas se sentar e dizer, sim, sim, eu concordo, com tudo."

Karan lançou um olhar de esguelha para o rosto do homem.

Então está dizendo que você está suspeitando da cidade? Em vez de concordar obedientemente, você diz que está parando para questionar isso?

Ela resistiu ao impulso de perguntar a ele. Não era aconselhado dizer coisas tão imprudentes para alguém que ela mal conhecia. Tinha que ser cautelosa como um herbívoro encolhido.

Karan se ergueu e tentou mudar o rumo da conversa.

"Posso lhe fazer uma pergunta?"

"Manda."

"Quem é você, e como você sabe o meu nome? O que te fez ir tão longe a ponto de fazer uma encenação meia-boca para me trazer aqui?"

"Meia-boca é um pouco árduo, não?" disse o homem com ironia. "Eu acho que encenei muito bem. Você interpretou muito bem, também. É a essência do Prêmio de Melhor Atriz".

"Ora, obrigada", disse Karan agradavelmente. "O papel da heroína romântica não é um que eu interpreto muitas vezes nessa idade."

"Bem, eu não vejo por que não. Você é jovem e bonita o bastante, muito mesmo. Você pode interpretar qualquer heroína que quiser, Karan".

"Onde você aprendeu o meu nome?"

"Pela minha sobrinha."

"Sobrinha?"

"Diz que é uma fã sua", disse o homem. "Ou eu provavelmente deveria dizer, uma fã de seus muffins."

Um rosto pequeno e redondo flutuou na mente de Karan – a menina que sempre chegava à loja com moedas apertadas em seu punho.

"Senhora, você não vai fechar esta padaria, não é?" – A menina que havia mostrado uma preocupação sincera por Karan. Ela, junto com palavras e olhares de encorajamento de outros, a apoiou em seus dias negros após Shion ter sido levado sob custódia pela Secretaria de Segurança.

"Lili".

"É essa mesmo", afirmou o homem. "A adorável Lili. Ela é a filha de minha irmã mais nova. Diz que gosta de seus muffins de queijo cem vezes mais do que os desse velho tio aqui. Ela me disse isso na última vez que a vi."

"Ah, querida."

"Eu fiquei chateado, então pus meus próprios dois centavos nestes seus muffins para dar uma mordida para provar..." A boca do homem fez um movimento de mascar. Ele levou a ponta de sua língua para fora e lambeu os beiços.

"Eles eram bons, não eram?"

"Eles eram. Eu odeio admitir isso, mas eles estavam deliciosos. Acho que não pode se fazer nada ao fato de Lili gostar mais deles do que os de um velho tio que só aparece de vez em quando."

"Bem", disse Karan, "pelo menos agora eu sei que você é tio de Lili, e que você aprendeu meu nome pela sua adorável sobrinha."

"Obrigado pela compreensão. Você achou que eu era alguém suspeito, por acaso?"

"Eu ainda acho. O que foi aquela atuação? Você queria tanto assim me tirar daquela admirável senhora?"

"Pode apostar. Ela era perigosa."

"Perigosa?"

O carro virou lentamente. Ele estava indo para a Cidade Perdida. Parecia seguro acreditar que este homem pretendia levá-la para casa.

O carro velho voltou pelo mesmo caminho em que ela tinha tomado esta manhã, imersa em pensamentos. Ela havia tirado um dia de folga da padaria hoje. Lili estaria decepcionada?

"Você estava a um fio perto de expressar o seu descontentamento para com a cidade. Estou certo?"

Eu não acho que esta cidade é uma utopia.

De fato, ela estava prestes a falar essas palavras. Mas havia sido interrompida naquele momento pelo som de asas batendo.

"Isso foi perigoso?"

"Há uma possibilidade de que poderia ter sido. O que você teria feito se essa senhora decidisse que você era um problema?"

"Problema? O que você quer dizer?"

"O que eu estou dizendo é que ela teria ido para as autoridades e dito que a mulher sentada no banco do parque tem uma insatisfação com a cidade."

"Você quer dizer que ela ia secretamente me entregar?"

"Acha difícil de acreditar?"

"É claro", desabafou Karan. "Isso é um absurdo. Aquela senhora estava preocupada comigo. Falou-me com bondade."

"Exatamente, porque você parecia bem deprimida. Nesta utopia, na Nº 6, todo mundo tem que ser feliz. Mesmo pessoas seriamente doentes ou feridas têm quase todas as suas dores removidas por tecnologia médica de ponta. Pessoas que estão incomodadas, ou que meditam, ou que se perdem em pensamentos – esses tipos de pessoas não existem. Elas não estão autorizadas a existir."

"Isso não é..." Karan protestou. "Quero dizer, há sempre pessoas no banco que parecem estar perdidas em pensamentos."

O homem sacudiu a cabeça e tocou num canto do pequeno monitor do painel do carro que exibia as informações da estrada. Dígitos pequenos que expressavam as horas apareceram na tela.

"Você lembra por quanto tempo você ficou sentada naquele banco?"

Karan olhou para os números e balançou a cabeça. Ela havia se esquecido completamente do tempo. Ela tinha se sentado naquele banco, contemplando, lutando com seus pensamentos, e fora incapaz de encontrar uma resposta. Ela havia perdido a vontade de se levantar e de continuar caminhando.

"O prazo é de 30 minutos", o homem murmurou.

"Hein?"

"Os cidadãos são permitidos a ficarem aéreos por trinta minutos, no máximo. Se eles ficam pensando profundamente ou se perdem em pensamentos por mais tempo do que isso, as bandeiras se levantam e alguém aparece para checar."

"Então você está dizendo... que aquela senhora se aproximou de mim para investigar, porque eu estava pensando por um tempo muito longo?"

"Eu não poderia dizer", respondeu o homem. "Tudo o que sei é que tinha essa possibilidade. Talvez ela fosse apenas uma velhinha que pensou estar sendo gentil e generosa... Do tipo que não se importa em fazer algo de bom, desde que não seja um problema para elas."

"Que maneira horrível de dizer."

"É a verdade. Esta cidade está repleta desse tipo de autoproclamados bons samaritanos. Há muitos deles, o que torna muito difícil distinguir os que são realmente bons. Ainda assim, se aquela senhora fosse um desses, não seria um problema. Mas e se ela fosse uma informante? Isso teria sido um triz para você, não é?"

Karan não o respondeu. Ela não queria suspeitar da senhora idosa. Ela queria acreditar que a mulher tenha sido uma alma caridosa que havia falado com ela, uma estranha, por causa duma preocupação genuína.

Ela tinha olhos tão suaves, sorrindo por trás de seus óculos...

Karan desenhou uma respiração afiada.

"Aqueles óculos..."

"Você finalmente percebeu? Eles eram um pouco grandes e desajeitados para uma senhora sofisticada como ela, você não acha? Talvez eles fossem construídos com um microfone e um dispositivo de gravação."

Karan fechou os olhos e soltou um longo suspiro.

Trinta minutos era o seu limite de tempo. Ela não era permitida mais que isso.

Para contemplar profundamente, para lutar com os pensamentos, para mergulhar no reino da mente, e de lá, encontrar sua própria resposta – tudo isso era proibido.

A mesma pergunta brotou dentro de seu peito novamente.

O que estivemos fazendo esse tempo todo? Por que criamos uma cidade como esta? Onde temos errado?

Ela engoliu seu suspiro. Ela se sentia exausta, e sentia como se a sua vontade mental se retaliasse, e a sua força para ficar com raiva tinha toda se murchado dentro dela.

"Eu provavelmente fui monitorada pelas autoridades esse tempo todo", disse ela calmamente. "Eles devem ter me mantido sob vigilância, e não apenas porque eu estava perdida em pensamentos. Eu sou a mãe de um assassino condenado, afinal de contas."

"Não é nada disso", disse o homem fortemente. "Não se deprima." Seu tom era como o de um pai repreendendo a filha. "Você realmente acha que seu filho é um criminoso como as autoridades lhe disseram?"

Karan levantou o olhar do chão e balançou a cabeça. Ela não acreditou, nem por um instante, que seu filho havia assassinado alguém.

"Isso também é algo que eu ouvi de Lili", continuou o homem. "Ela diz que seu filho – Shion o nome, certo? – Diz que ele é muito bom. Quando ela quebrava seus brinquedos, ele sempre os consertava para ela. Diz que gosta dele muito mais do que desse tio aqui, embora não tanto quanto os seus muffins. Ela queria saber se ele tinha uma namorada."

"Ela queria? Ah, querida", disse Karan, com uma sugestão de um sorriso em sua voz.

"Insolente, hein? Agindo mais velha que sua idade. Mas por tudo o que é mais sagrado, ela não consegue perceber o quão atraente seu próprio tio pode ser. Não sei como minha irmã a criou para ela ficar assim."

"E se eu pedisse a Lili, será que eu conseguiria descobrir o nome deste tio atraente e o que ele faz?"

O homem riu das palavras de Karan e bateu levemente no painel novamente.

"Só Deus sabe o que pode acontecer se você perguntasse à Lili. Ela provavelmente diria que o tio Yoming é um homem estranho que perambula por sua casa de vez em quando, come até que esteja satisfeito e foge do lugar logo depois."

"Yoming. Esse é o seu nome."

"É. E este é o meu trabalho."

O painel se encheu de imagens de pães, bolos e outros pratos leves, seguido por informação nutricional e conteúdo calórico, preço e nome das lojas que lhes serviam.

"Eu produzo um feed de notícias eletrônico para todos os tipos de entretenimento nas regiões, todas, exceto Chronos. O que não é muito, quero dizer, são restaurantes e eventos sazonais que é o que eu mais faço. Já que a cidade supervisiona todas as peças de teatro, concertos e publicações impressas, não há muito que se possa escrever sobre outras coisas além de comida e bebida. Trabalhar na Secretaria de Alimentos está fora de questão, de maneira nenhuma eu poderia entrar naquele lugar – Então é só coisas como onde comer bons bolos, ou bons lugares para almoçar, ou coisas assim. Eu faço o melhor que posso. É realmente muito popular. Quero dizer, afinal, na Cidade Perdida, não há muito a fazer para se divertir além de comer ou beber, por isso todos são ávidos por informações."

"Então, por acaso, você está..."

"Exatamente", o homem disse energicamente. "Eu quero produzir uma matéria sobre os pães e bolos de sua padaria, com um foco de luz sobre os muffins. Você vai me deixar entrevistá-la?"

"Tem certeza de que quer escrever sobre minha loja?" Karan disse preocupada. "As autoridades não vão virar o olho para você também?"

"Eu não me importo se as autoridades virarem o olho para mim, ou se quiserem sumir comigo, ou qualquer outra coisa. Eu não posso deixar que esses deliciosos muffins fiquem sem publicidade." Ele fez uma pausa. "Embora Lili provavelmente não fosse ficar muito feliz se uma multidão de clientes chegasse e limpasse seus muffins. Tio, você nunca faz nada certo, é o que ela provavelmente diria."

"Nunca", sorriu Karan. "...Mas minha padaria já foi noticiada antes, com o incidente de meu filho e tudo mais. As pessoas da Cidade Perdida ainda podem vir... mas e as pessoas de outras áreas?"

Yoming encolheu os ombros e apagou a imagem na tela do painel de toque.

"Karan, as pessoas desta cidade não são muito boas em lembrar as coisas." Sua voz era rouca e difícil de entender.

"Elas se esquecem de tudo num piscar de olhos. Não importa o quão sério for um incidente. Já passou. Além do mais, elas nem mesmo veem a possibilidade de ter algo debaixo dos panos. Lembrar, duvidar, contemplar. É difícil para elas fazerem isso. Mas nem precisam fazer... o dia ainda continua, e pacificamente. É um lugar terrível, este."

As palavras de Yoming soaram tanto como uma crítica aberta da condição atual que Karan se encontrou se endireitando na cadeira. Se esta conversa atingisse ouvidos forasteiros, seria mais aterrorizante do que qualquer outra coisa. Como se percebendo a agitação de Karan, Yoming relaxou seu rosto em um sorriso e acenou com a mão despreocupadamente.

"Não se preocupe. Este carro é equipado com um dispositivo anti-vazamento. Mas quem sabe, talvez todos os carros novos que forem fabricados no próximo ano terão gravadores instalados dentro deles."

"Yoming, por que você critica tanto a cidade? Como você pode ter tanta certeza de que este é um lugar assustador?"

Depois de um breve silêncio, Yoming tapeou a tela de toque três vezes.

A imagem de uma mulher jovem, de rosto delicado, apareceu. Um bebê estava dormindo em seus braços, embrulhado num cobertor branco. O sorriso da mulher estava preenchido com a alegria da maternidade. Seu cabelo castanho, cortado em um bob curto, emoldurava seu rosto alerta e enérgico, e o seu sorriso gentil era memorável.

"Minha esposa. Esse é o nosso filho em seus braços. Esta foto é de muito tempo atrás."

"Aconteceu alguma coisa com a sua...?"

"O mesmo que com o meu filho, ela saiu de casa um dia e nunca mais voltou. A única coisa de diferente do seu caso é que ela desapareceu junto com o nosso filho, e que ela foi dada como uma pessoa desaparecida."

A respiração de Karan ficou presa na garganta. A forma calma e nivelada de Yoming falar fez o fato ainda mais chocante.

É o mesmo que Shion... Existe alguém que já passou pela mesma coisa...

"Ela era uma professora de escolinha", Yoming disse calmamente. "Ela ensinava arte e música para crianças como Lili. Dizia que nenhum outro trabalho poderia adequá-la melhor. Ela sempre dizia às crianças a valorizar o que sentiam em seus corações. Quer seja para fazer um desenho ou para escrever uma canção, dizia que o mais importante era olhar diretamente para seus sentimentos e emoções e expressá-los verdadeiramente."

"Isso é lindo", Karan respirava. "Eu não acho que eu tenha ouvido tantas palavras tocantes há muito tempo."

"É. Era uma mulher admirável, tocava muita gente. Tinha convicções firmes, e ensinava suas crianças com base nelas. Mas começou a receber cada vez mais advertências severas e orientações do Departamento de Educação... eles diziam-lhe para ensinar as crianças seguindo o livro estritamente. O livro que eles tinham publicado, é claro. Naturalmente, ela resistiu, e foi demitida do local de trabalho. Ela teve sua licença revogada também, por ser considerada como imprópria para o ensino. Acho que nesse tempo houve muito poucos professores como ela, que foram removidos de seus postos de trabalho. Você não sabia, não é?"

"Eu não fazia ideia... eu nem me lembro..."

"Não precisa se vergonhar. É natural que você não saiba," Yoming disse severamente. "Isso não foi noticiado. As autoridades já estavam começando a manipular informações nesse tempo. Era daí onde brotavam as sementes de um sistema que, eventualmente, evitaria que algo inconveniente fosse divulgado como uma informação tangível".

O carro já estava entrando na Cidade Perdida. Este distrito sempre foi o menos mantido e o último a ter suas instalações desenvolvidas, e era uma área de casual miscelânea. Em meio a seu zumbido inquieto, Karan se viu suspirando aliviada.

"Ela planejava construir uma escola para as crianças com outros professores exilados... estava tentando ensinar em um lugar onde as autoridades teriam menos influência Ela saiu para uma reunião para discutir os planos para a escola naquele dia... e nunca mais voltou."

Yoming cerrou o punho e bateu no volante. O corvo gritou melancolicamente no banco de trás.

"Eu nunca vou esquecer", disse ele com os dentes cerrados. "Não importa o que aconteça, eu nunca vou esquecer. Vou manter isso vivo em minha memória. O tempo estava nublado de manhã e parecia que iria chover a qualquer minuto. Eu deveria ter ido ao dentista porque minha dor de dente estava ficando insuportável. Eu estava de folga naquele dia, então eu deveria estar cuidando de nosso filho em casa. Mas ela o levou junto para que eu não precisasse fazer isso. Ela o colocou em um carrinho de bebê com uma capa azul e ela estava vestindo um casaco bege. Havia pequenas flores bordadas no peito. Nós prometemos que, se minha dor de dente parasse no período da tarde, e não chovesse, nós iríamos para o Parque Florestal para dar um passeio. À porta, nos beijamos e dizemos adeus. Beijei o meu filho no rosto, também. Ele riu e chutou seus pés. Ele estava vestindo meias brancas minúsculas. Havia padrões de flores costurados sobre eles que também eram roxas. Ainda me lembro. Ainda não me esqueci de um único detalhe. Eu nunca poderia esquecer."

"Yoming..."

O carro parou.

Você chegou ao seu destino, anunciou o navegador de carro. Eles estavam em frente à padaria de Karan.

"Eu sinto muito, eu fiquei um pouco agitado", Yoming disse. "Rude de minha parte, já que nós acabamos de nos conhecer."

"Não" Karan disse suavemente. "Obrigada por me trazer para casa."

Ela fez uma pausa, hesitante. Perguntou-se se seria certo dizer-lhe sobre Safu. Ela se notou incapaz de decidir se podia confiar plenamente no homem à sua frente.

"Senhora!"

Alguém bateu em velocidade total na cintura de Karan quando ela saiu do carro.

"Ora, Lili".

"Senhora, por que tirou um dia de folga hoje? Você está doente?"

Yoming falou de dentro do carro.

"Lili, ela está bem. Essa senhora aqui só tinha algumas coisas para fazer. Ela vai assar muffins para você amanhã, tenho certeza."

Lili piscou e sua boca se abriu.

"Ei, é você tio Yoming? Você veio para jantar de novo? Por que você sempre vem quando temos frango e cogumelos?"

"Veja, é isso o que eu recebo. Horrível, não é?" Yoming sorriu ironicamente, e inclinou-se para olhar para o rosto de Karan. "Se puder, abra sua padaria novamente amanhã. E permaneça nela. Você tem um trabalho a fazer, Karan".

"É claro."

"Nunca se desespere. Você não pode desistir, não importa o que aconteça. Você pode perder tudo somente quando você se desesperar e pensar que não há mais nada que se possa fazer. Desistir pode parecer mais fácil nessa situação..."

Karan colocou uma mão em cima da cabeça de Lili e assentiu com firmeza.

"Não, eu não vou desistir. Tenho minhas responsabilidades."

"Responsabilidades?"

"Sim, eu sou uma adulta crescida, e vivi ao lado dessa cidade por um longo tempo. Eu fiz o meu melhor para viver decentemente. Mas se o resultado disso é o que esta cidade se tornou... então nós cometemos um grande erro em algum lugar ao longo do caminho. Eu não tenho certeza em onde nós fizemos isso... mas eu sei que eu tenho que assumir a responsabilidade por isso. Não podemos deixar que crianças como Lili sofram por um crime que não cometeram, certo?"

"Shh...!" Yoming levantou um dedo de advertência. Uma jovem em uma bicicleta passou pelo carro. "Eu entendo como você se sente, mas não diga esse tipo de coisas em voz alta aqui. Você não sabe quem pode estar ouvindo."

Lili riu e puxou a saia de Karan.

"Tio Yo é sempre cauteloso. Ele é um gato assustado, mesmo sendo adulto."

"Quando você crescer, Lili, vai começar a ver como as coisas realmente são assustadoras."

"Bem, eu acho que o que é mais assustador é a mamãe quando ela está com raiva", disse Lili acompanhando o assunto com naturalidade. "Ela é muito assustadora, sabe. Papai diz que a mamãe é quem mais assusta ele também."

"Ah, isso é verdade", respondeu Yoming solenemente. "Eu concordo, sua mãe pode ser muito assustadora."

Karan começou a rir. A mãe de Lili muitas vezes repreendia seus filhos em um tom tão potente que era difícil imaginar que vinha de um corpo esguio.

"Lili, Yoming, e Sr. Corvo, também... se vocês tiverem tempo sobrando, o que vocês gostariam para um lanche? Eu não posso servi-los muffins, mas eu poderia preparar algumas panquecas."

"Sério? Yey!" Lili apertou a mão de Karan com força. Suas mãos estavam macias. O coração de Karan inchou com a demonstração de amor.

Eu não posso deixar que essa menina passe pelo que Shion e Safu passaram. E eu tenho que salvar os dois, de alguma forma. Sim... temos uma responsabilidade a cumprir.

Seus olhos se encontraram com os de Yoming. Eles olharam para ela, tinham a cor das penas do corvo. Karan assentiu e abriu a porta.

"Lili, entre. Você também, Yoming. Ainda tenho coisas para falar com você."

Só então, uma pequena mancha preta cruzou sua visão. Ela ouviu um zumbido de asas.

"O que há de errado?" Yoming seguiu o olhar de Karan e olhou de relance quando saiu do carro.

"Foi um inseto... Eu pensei que tinha visto uma abelha voando aqui."

"Abelha? Pode estar quente ainda, mas eu não acho que elas ainda estejam em atividade."

"Eu acho que você está certo."

Era inverno. Não havia maneira de abelhas estarem voando por aí. Mesmo se houvesse, provavelmente fosse um único inseto que tinha vagado ao relento, atraído pela luz solar e pelo calor. Mas ela não pôde afastar a sensação de mau agouro em seu coração.

"Senhora?"

Lili olhou para ela de baixo enquanto permanecia parada na porta.

"Ah, desculpe por isso. Vamos entrar."

Meus nervos apenas estão no gume. Eu devo estar cansada. Karan tranquilizou-se e abriu a porta. Ela entrou e balançou a cabeça violentamente, como se afastando do som vibrante que havia se alojado em seus ouvidos.

Leia o capítulo 3.

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Notas

  1. Neruda, Pablo. "VIII: Abelha Branca." Vinte Poemas de Amor e uma Canção do Desespero . Trans. William S. Merwin. New York: Penguin Books, 2004. (http://www.psb40.org.br/bib/b329.pdf) [Voltar]

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