domingo, 25 de agosto de 2013

[Novel] No. 6 Volume 3 Capítulo 4

No.6 3 

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Capítulo 4: Uma Mentira da Verdade, Uma Verdade da Ficção

As orelhas do rei são orelhas de burro.
Orelhas de burro grandes e peludas.
Movendo, contraindo, as orelhas de burro.
– Mito grego "Orelhas de Burro do 'Rei Midas'" [1]

Nezumi caminhou lentamente ao longo do caminho noturno. Aqui, a noite e as trevas eram sinônimos. Depois que toda luz natural desaparecia, o que restava era um mundo de trevas. Tudo ficava pintado de preto.

Às vezes, um barraco deixava uma fina tira de luz escoar para fora de uma de suas rachaduras, enquanto que apenas mantinha o vento e a chuva no lado de fora. Mas as luzes eram muitas vezes extintas pouco tempo depois, e um frio gélido reinava sobre a noite, perfurando a escuridão, o silêncio, e as roupas das pessoas para atingir os seus corpos quentes embaixo.

Mesmo a fumacinha branca de respiração que escapava de seus lábios desaparecia na escuridão. Ele virou o rosto para o céu. Inúmeras estrelas piscavam no claro céu noturno.

Amanhã de manhã, provavelmente será ainda mais frio do que o habitual. E do lado de fora, mais pessoas irão congelar até a morte. Um destino cruel para encontrar sob um céu estrelado. Mesmo com um céu cheio de estrelas, ninguém chamava essas noites de inverno de lindas ― não neste lugar.

Nezumi parou seus pés, e olhou para a cidade brilhando à distância. A cidade da luz aparecia na escuridão ― a Cidade Santa de N° 6.

Toda a cidade brilhava ouro, e lembrava o mito do rei Midas que transformava tudo o que tocava em ouro.

Na escuridão gelada, Nezumi sorriu fracamente.

Rei Midas adquiriria o toque de ouro, mas em troca ele não seria mais capaz de trazer carne nem pão para seus lábios, e iria até mesmo transformar sua amada filha em uma estátua de ouro. Ele, então, finalmente perceberia sua ganância e sua loucura, e pediria perdão aos deuses.

N° 6, o que você vai fazer? Você, a cidade que olha para baixo à nós em nossa escuridão, e reluz com toda a sua ilusão e o seu artifício, você também vai rastejar no chão e pedir perdão algum dia? Mas não haverá deuses para lhe conceder misericórdia. Vestida com esse seu manto de ouro, você vai se desintegrar, queimar em cinzas, e perecer. Eu vou viver até o momento em que as cortinas caírem ao seu final. Eu vou continuar a viver, e ver seu fim com os meus próprios olhos.

Nezumi recolocou seu pano de super fibra em torno de si e começou a andar. Um ratinho, que Shion havia nomeado Hamlet, empurrou a cabeça para fora das dobras e chiou suavemente.

Sim, ele ia viver. Assim como ele havia vivido por todo esse tempo até agora, ele continuaria vivendo, mesmo que tivesse de rastejar a terra em seus quatro cantos. Ele iria blindar a si de qualquer perigo, afiar suas presas, polir suas garras, e continuar vivendo até o momento em que ele afundaria seus dentes na garganta do outro e acabaria com isso.

Ele iria sobreviver, continuar vivendo. Ele iria.

Nezumi colocou a mão no bolso de trás das calças. Dentro dele estava o memorando de Karan.

Safu foi pega pela Secretaria de Segurança. Ajuda. –K

Ele ainda não tinha mostrado a Shion. O que ele tinha a ver com isso? Nezumi estava suspenso em sua decisão. Ele estava em uma encruzilhada, incapaz de jogar o memorando fora, nem passá-lo para Shion e virar as costas para ele, dizendo que não era da sua conta.

Ser indeciso, vacilar e estar perturbado ― ele sabia o quão perigoso isso era para ele, estava quase que dolorosamente consciente disso. Direita ou esquerda, cima ou baixo, lutar ou fugir, abandonar ou proteger ― o segundo decisivo tomado para tomar uma decisão era a diferença entre a vida e a morte. Ele nunca havia feito a escolha errada. Era assim que ele havia sobrevivido até agora.

Este memorando é perigoso. Então, tudo o que ele tinha de fazer era jogá-lo fora. Junto com a indecisão que, sem dúvida, poria em perigo a sua vida, o melhor seria enterrar tudo na escuridão.

Ele sabia a resposta correta. Mas por que ele não estava seguindo-a? Por que ele estava pegando a encrenca, até pagando uma grande quantia de dinheiro para coletar informações sobre a Instituição Correcional? O que diabos eu estou fazendo?

Seus pés pararam.

Nezumi parou e treinou seus olhos à escuridão. Ele estava em um declive pouco povoado com árvores, algumas dezenas de metros de distância de sua morada subterrânea.

"Quem está aí?" ele falou calmamente. Houve um ruído seco em cima dele, talvez por uma rajada de vento que assobiava através dos ramos nus. Mas ainda mais discretamente, houve um movimento no escuro, o som fraco de um passo sobre as folhas.

"Um pouco lento pra perceber, não?" Houve um pequeno ladro de risada. "Esse não é você, não é você mesmo. Com o que você estava sonhando?"

"Inukashi."

O cabelo preto do Inukashi e pele bronzeada eram convenientes para misturar com a escuridão. Mas foi descuido dele não ter notado sua presença a ponto dele chegar tão perto. Ele não era ele mesmo hoje.

"Ainda bem que era só eu. Quem sabe quantas vidas você precisaria se estivesse atordoado assim perseguido por qualquer outra pessoa, Eve". Inukashi chamou Nezumi pelo seu nome artístico, e deu outra risada curta.

"As coisas não são muito mais seguras com você por perto", Nezumi replicou. "Especialmente se você está me esperando à noite para me emboscar na estrada." Ele deu metade de um passo para trás. "O que você quer, Inukashi? Acho que é pouco provável que você tenha sido capaz de obter a informação tão rápido."

O tom de voz do Inukashi mudou e todo o sarcasmo desapareceu de seu discurso.

"Nós temos uma emergência."

"Emergência?"

"Agora a pouco... bem, há algum tempo atrás... Shion veio me ver."

"Ele foi?" Um choque de desconforto correu através dele, quase que dolorosamente.

"E não se trata de seu trabalho de lavagem de cães, também. Ele enfiou um casaco cinza na minha cara, e me perguntou se eu tinha pegado da Instituição Correcional".

"Casaco cinza, hãh... de mulher?"

"É. Ele estava rasgado no ombro, mas era uma bela peça de roupa. Ele veio de um negociante de roupas usadas para quem vendi coisas. Coisas que eu contrabandeei da Instituição Correcional".

Deve pertencer a essa menina ― Safu. Nezumi virou de lado e respirou fundo.

"Então?"

"Então?" Inukashi repetiu incrédulo. "Você me diz. Qual é o roteiro para este ato, hein, Nezumi? Shion diz que este casaco pertence a sua amiga. O que significa que sua amiguinha está sendo mantida como prisioneira na Instituição Correcional. E hoje cedo, você me deu dinheiro para coletar informações sobre a Instituição Correcional. Não me diga que não estão relacionados... Nem um cão iria cair nessa mentira. Você está planejando ajudar a amiguinha de Shion, é isso o que você está fazendo?"

Nezumi não tinha como responder. Ele não podia afirmar nem rejeitar o que Inukashi tinha dito.

"Claro que não", Inukashi respondeu por ele. "Não há maneira alguma de alguém como você jogar sua vida fora para ajudar um estranho."

"O que faz você pensar que eu vou morrer no processo?"

Na outra extremidade da escuridão, Inukashi chupou uma respiração profunda.

"Você está meio dormindo? É a Instituição Correcional de que estamos falando. Por alguma sorte feliz, você pode conseguir se esgueirar lá dentro. Mas não há maneira alguma de sair vivo. Nezumi, não tenha ideias engraçadas".

"Ó Deus, você está preocupado comigo? Estou chocado."

"Eu podia me importar menos por você", Inukashi estalou. "Se um rato morre ou não, não faz diferença. Mas o que você vai fazer com o Shion, hein? Agora ele sabe pra onde foi levada a sua amiguinha. Sendo o menino esquecido que ele é, ele provavelmente pensa que a Instituição Correcional é apenas um confortável Centro de Disciplina, ou o que for. Ele provavelmente descobrirá que tudo o que tem a fazer é entregar um Formulário de Visitação pra ver sua amiguinha. Se você não deter ele, o garoto vai embora. Ele vai ir e... ele vai se matar."

Inukashi ficou em silêncio, a escuridão da noite parecia se aprofundar. Até o vento estava calmo ― os galhos das árvores deixaram de fazer até mesmo um leve sussurro.

"É isso que fez você esperar todo esse tempo para me dizer?" Nezumi disse brevemente. "Dói imaginar o sofrimento que eu devo ter te feito passar."

Nezumi se adiantou e pegou Inukashi pelo ombro antes que pudesse escapar. Enquanto tivesse participando da presença do outro, ele poderia mais facilmente prever todos os seus movimentos.

"Não importa o que Shion pretende fazer", Nezumi disse calmamente. "Ele não é um de nós, e não é da nossa conta."

"Então, por que diabos você tá farejando suas costas?" Inukashi respondeu acusador. "Por que você precisa reunir informações sobre a Instituição Correcional em segredo?"

Nezumi endureceu seus dedos e os cavou mais adentro no ombro magro e ossudo de Inukashi. Inukashi gritou de dor. Nezumi se dobrou para levar seus lábios perto da orelha do outro.

"Não meta o nariz em coisas que não são da sua conta", ele sussurrou. "Você faz o trabalho que você foi pago para fazer, e nada mais."

Ele deixou sua mão ir. O pequeno corpo de Inukashi oscilou vacilante.

"Eu só disse a Shion de onde veio o casaco", ele disse. "Eu não disse nada sobre o porquê de você ter vindo me procurar."

"Claro que você não fez isso."

"Nezumi, Shion vai sozinho", Inukashi disse calmamente. Ele debilmente balançou o braço que agora estava entorpecido inteiramente até as pontas dos dedos. "Ele acha que você não sabe nada sobre isso. E ele vai sozinho, sem dizer nada a ninguém. Ele não vai te envolver. Você sabe disso, né?"

"O que te faz ter tanta certeza? Você é o papi de Shion ou algo assim?"

"Eu não tenho que ser seu papi pra saber. Você deve saber ainda melhor do que eu que tipo de pessoa ele é. Isso é porque você tá vigiando ele em segredo, não é?"

"Cale a boca!" Nezumi havia levantado sua voz em um grunhido. Suas emoções chicotearam meio turbulentas, sua respiração ficou irregular. Inukashi quase não mostrou reação.

"Se ele é tão precioso pra você não querer perder ele", Inukashi disse firmemente, "proteja ele até o fim. E faça o que for preciso para protegê-lo, seu idiota, não importa o quão humilhante for. Você acha que você pode disfarçar sua cara, hein? Manter tudo escondido, e cuidar de tudo por conta própria? Pare de enganar a si mesmo."

"Inukashi!"

Inukashi pulou para trás numa fração de segundo antes de Nezumi dar um passo adiante. Agachou-se em um joelho, Inukashi riu suavemente.

"Você perdeu, Nezumi".

"O quê?"

"Você arranjou algo que precisa proteger... você perdeu. Essas são as regras nestas bandas. Melhor saber delas..."

Nezumi empurrou o chão, e cercou Inukashi pela frente. Ele enlaçou o outro garoto enquanto ele tentava fugir e o empurrou para o chão.

"O que você disse sobre perder?" ele disse ferozmente. "Chega de besteira."

"Eu não estou mentindo. Nezumi, se fosse você a um tempo atrás, não teria se deixado ser provocado com tanta facilidade. Você não estaria andando à noite perdido em pensamentos, também."

Vamos, Inukashi disse em uma voz estranhamente calma. Ele se levantou e deu um suspiro.

"Ainda não percebeu, Nezumi?"

"Huh?"

Um assovio agudo rasgou o ar. Enquanto assobiava, Inukashi deu vários passos para trás.

Em todas as direções na escuridão, inúmeros pequenos pontos vermelhos de fogo brilhavam no momento em que surgiram. Não demorou muito para Nezumi perceber que eram olhos de cães. Antes de ele perceber, havia sido cercado por um bando deles. Nenhum deles levantou nem um grunhido enquanto formava um anel e avançava para ele.

"Esses são cães de guarda treinados. Você não vai conseguir fazer a mesma coisa que você fez à tarde." A voz de Inukashi foi mais longe agora. "Você caiu direitinho no aro, sem nem mesmo perceber. Definitivamente não é um erro que você normalmente comete, Nezumi. Mas aqui está a sua fraqueza. Esqueça Shion... Olhe para você, você não pode nem se proteger."

Depois de um momento de silêncio, um curto comando cortou o ar.

"Peguem ele!"

Os cães surgiram. Dezenas de corpos ágeis e mortais voaram sobre a cabeça de Nezumi e desceram sobre ele enquanto ele se agachava no chão. Ele saltou num pé, e mirou um chute direto para cima.

Um grito.

Um cão quebrou o silêncio com a sua voz e caiu no chão. Antes que Nezumi pudesse recuperar o fôlego, outro saltava do chão. Ele afundou os dentes no braço de Nezumi, que havia se envolvido com seu pano de super fibra na hora certa. Nezumi balançou todo o braço e espancou o cão no chão. Ele se levantou, e recuperou sua postura com uma árvore em suas costas.

"Inukashi, se você vai continuar com este jogo estúpido, eu não vou pegar leve com você também." Nezumi sacou sua faca da bainha de couro. Ele prendeu a respiração, e contou as pequenas chamas vermelhas.

Mais quatro.

"Então você não se importa se seus preciosos cães tiverem suas gargantas abertas, né?" ele gritou.

A voz de Inukashi respondeu do mesmo local de antes.

"Vamos ver você tentar. Isso foi apenas um aquecimento. Eles não vão ser todos educados agora e para vir em você um por um. Desta vez, eles estão vindo todos de uma vez."

Mesmo antes de Inukashi terminar a frase, Nezumi estava se lançando na direção de sua voz. Ao mesmo tempo, uma dor lancinante rasgou em seu ombro.

"Fora daqui!" Ele bateu a coronha da faca entre os olhos do cão. Junto com o som de tecido rasgando, o cão negro foi rolando pelo chão atrás dele.

"Inukashi!" Nezumi puxou Inukashi pelo seu cabelo longo e o arrastou para baixo. Ele o prendeu no chão e apertou a faca em sua garganta bronzeada.

"Retire seus cães, ou então..."

Inukashi riu.

"Ou então o quê? Você vai me matar?"

"Se você deseja assim", Nezumi disse friamente.

"Você acha que pode me matar, quando você nem sequer conseguiu matar um único cão?"

Desta vez, foi Nezumi quem deu uma risada suave.

"Mas eu não tenho uma faca extra hoje."

"O quê?"

"Sangue de cachorro embota a lâmina. Eu poupei e a deixei limpa para você."

O corpo de Inukashi se contraiu.

"Ei, pare com isso, seu idiota", ele disse nervosamente. "Tente e me mate... meus cães vão saltar em você todos de uma vez. Eles vão te rasgar em pedaços."

"Ah, não tenho certeza disso. Você é o lider, certo? Eu ouvi antes que os cães perdem a vontade de lutar se o seu lider é derrotado."

"I-Isso não é verdade, ei, realmente, corta essa. Isso é perigoso."

"Retire seus cães."

"Tudo bem." Inukashi estalou os dedos. Os cães giraram seus calcanhares de uma vez, e desapareceram na escuridão.

"Entendo. Você os treinou bem."

"Obrigado pelo elogio", Inukashi disse mal-humorado. "Engraçado como que ele parece não me fazer sentir melhor. Então, você vai tirar o seu traseiro pesado de mim ou não? Uma cena de amor com você não é exatamente algo que eu estive ansioso para fazer recentemente."

"Não se preocupe", Nezumi disse agradavelmente, "é a última coisa que eu gostaria de fazer também. Eu nem mesmo faria isso se eu fosse pago no palco."

Depois de ter libertado Inukashi e guardado sua faca, Nezumi expôs a pergunta de novo.

"O que foi isso?"

Inukashi estalou a língua enquanto ele escovava as folhas para fora de suas roupas.

"Eu tomei a iniciativa de te dar uma aula particular."

"O quê?"

"O fato é, você não é tão forte quanto você pensa. Eu só pensei que eu ia te ensinar isso. Você tem habilidade, no entanto. Muitas pessoas não podem chegar tão longe assim contra mim e meus cães."

"Ora, obrigado pelo elogio. Engraçado como ele não está fazendo eu me sentir melhor."

"Mas você não é nenhum super-humano ou monstro", Inukashi continuou. "Você é apenas um ser humano. E um homem só já pode fazer muito."

Havia uma dor estúpida no ombro de Nezumi. O sangue corria em riachos para baixo do braço.

Um pensamento fugaz passou pela mente de Nezumi. Este foi o mesmo local onde ele tinha conseguido a ferida de bala que Shion havia tratado há quatro anos.

"Nezumi!"

Ele podia ouvir a voz de Shion chamando. A luz de uma lâmpada balançava por perto.

"Parece que o rapazinho veio te buscar", Inukashi riu baixinho. "Bem, deixe-me desculpar-me então" Depois, um pouco apressado, ele acrescentou, "Nezumi, há algo estranho acontecendo dentro da Nº 6."

"Estranho?"

"Eu não sei os detalhes. Ouvi dizer que há alguma doença estranha por aí, mas eu não sei ao certo. Vou dar uma olhada nisso. E eu vou estar recebendo informações sobre o interior da Instituição Correcional em breve. Parece que as coisas estão começando a ficar agitadas por elas mesmas também. Vai ficar bem interessante, eu posso sentir o cheiro... o nariz do meu cachorro está me dizendo. Então..."

"Então?"

"Então tô dentro. Eu vou ajudar."

A mão de Inukashi se estendeu e bateu firmemente no ombro de Nezumi. Uma dor depravada baleou dentro ele. Nezumi gemeu, e caiu de joelhos, com uma mão apertando o ombro.

"Até mais. Estarei contatando em breve." Inukashi derreteu na escuridão negra mais rápido do que seus cães haviam desaparecido. Quando ele desapareceu os passos de Shion se aproximaram.

"Nezumi, aconteceu alguma coisa?"

Shion segurou a lâmpada acima de Nezumi quando ele surgiu a seus pés. Seus olhos se arregalaram em alarme.

"O que aconteceu com você? Você está sangrando!"

"Eu fui atacado por um cão."

"Um cão? Por quê?"

"Foi apenas um vira-lata. Acho que ele pensou que eu era um coelhinho bonitinho. O que você está fazendo aqui?"

Hamlet enfiou a cabeça para fora do bolso do suéter de Shion.

"Ele foi me buscar", disse Shion. "Eu pensei que algo poderia ter acontecido com você."

"Então você veio ajudar. Com uma lâmpada."

"Sim". Shion trouxe a lâmpada mais próxima da ferida de Nezumi e franziu a testa.

"Temos que tratar isso. Vamos para casa. Você pode andar?"

"É claro."

Shion enfiou a mão sob a axila de Nezumi, como se para apoiá-lo. Nezumi desviou, e começou a caminhar em frente. Seu ombro latejava dolorosamente. Mas ele não estava disposto a agarrar a mão que fora estendida a ele. Se ele aprendesse a confiar em alguém, nunca mais seria capaz de andar sozinho novamente. A mão amiga era sempre inconstante, e desaparecia tão repentinamente quanto era oferecida. Assim que as coisas eram.

Depois que eles voltaram para o quarto subterrâneo, Shion entrou em ação, rapidamente tomou as medidas apropriadas. Ele verificou a ferida, limpou e desinfetou.

"Você vai costurá-la de novo?"

"A ferida não é tão grave dessa vez, infelizmente," Shion disse, em um raro sorriso triste enquanto ele fechava o kit de emergência. "Assustou um pouco, né, Nezumi? Pensou que ia passar a mesma coisa que há quatro anos?"

"'Um pouco é um exagero. Com você, eu sinto que eu acabaria sendo costurado por uma mordida de inseto."

"Que rude," Shion sorriu. "eu ainda acho que o tratamento que lhe dei há quatro anos era a coisa apropriada a fazer."

Quatro anos atrás, naquela noite tempestuosa ― sim, na noite em que conheceu Shion ― N° 6 estava em meio a um tufão. Ele ainda se lembrava, sempre muito vívido. A janela se abriu como se o convidando; Shion, com doze anos, quando enfiava a cara para fora; ‘você está machucado, né? Eu vou tratar seu ferimento’... palavras que ele nunca havia esperado; o sorriso de satisfação que se espalhou pelo rosto de Shion no momento em que havia completado a sutura; a doçura do chocolate quente; o sabor delicioso do bolo de cereja; o conforto da cama; o som das respirações quietas e adormecidas ao lado dele quando ele acordou na manhã seguinte ― ele não poderia esquecer nada disso, não importa o quão duro ele tentasse. Mesmo quando ele tentou se desfazer disso, ele nunca conseguiu fazê-lo completamente.

Cada e toda ocorrência miraculosa daquela noite ainda permanecia com ele como sensações tangíveis, nunca desvanecendo o mínimo possível ao longo dos quatro anos até agora.

As pessoas chamam isso de memórias? Um registro mental? Ou será que elas chamam isso de destino?

Era muito mais fácil rir das pessoas, as chamando de indulgentes e fracas, quando elas aceitavam os outros incondicionalmente e tentavam salvá-los. De fato, como resultado de ter acolhido Nezumi, Shion tinha perdido quase todos os seus privilégios e fortuna.

Quanto mais fácil as coisas teriam sido se ele tivesse sido capaz de repudiar Shion com uma risada condescendente, esse menino ingênuo, essa placa de Petri de elite que tinha crescido alheio à sociedade. Mas era muito cruel rir e ficar satisfeito com isso. Fora muito vívido para esquecer. E jogar isso fora, seria muito difícil.

"Shion".

"Hm?"

"Você realmente acha isso?"

As mãos de Shion pararam no meio do enrolamento de uma bandagem.

"Quatro anos atrás. Você realmente acha que foi a coisa apropriada a fazer?"

"Bem, nós estávamos num ambiente bastante limitado", Shion disse lentamente. "Naquela época, no entanto, era o máximo que eu podia fazer. Agora, talvez eu pudesse ser capaz de costurá-lo um pouco melhor." Os longos dedos de suas mãos hábeis moviam tão agilmente quanto parecia, enrolando o curativo firmemente e ordenadamente.

"Não é apenas sobre a minha lesão. É sobre a noite inteira."

Depois que ele tinha atado as extremidades do curativo com cuidado, Shion estudou os olhos de Nezumi.

"Sua vida virou 180 graus naquela noite. Você ainda diria, mesmo agora, que o que você fez não foi um erro?"

"Sim". Sua resposta foi bem rápida, Nezumi foi pego de surpresa.

"Você não se arrepende?"

"Não."

"Nem mesmo um pouco?"

"Não."

"Por quê?"

"Nezumi, eu realmente não entendo o que você está tentando fazer. Mas eu estive pensando um pouco desde que me mudei para Cidade Perdida. Me perguntava, se eu fosse voltar no tempo, e voltar àquela noite quatro anos atrás ― se eu voltasse para antes de te conhecer, o que eu faria?"

Shion sorriu timidamente e empurrou o kit de emergência para a parte de trás da prateleira.

"Eu pensei sobre isso, de novo e de novo. E todas as vezes, eu só tinha uma resposta. Não importa quantas vezes eu voltasse para aquela noite, eu faria a mesma coisa de novo. Eu abriria a janela, e esperaria por você."

"Mesmo se você soubesse que a sua própria ruína estaria esperando nisso?"

"Mas não houve nenhuma ruína", Shion respondeu suavemente. "Eu não acho que estar aqui me arruinou. Certo, Cravat?"

O ratinho marrom assentiu com a cabeça, empoleirado em cima de uma pilha de livros.

"Aquele não é o Hamlet?"

"Hamlet está dormindo na cama."

"Ah, certo... Nossa, você tinha que dar nomes estúpidos a eles, agora está mais confuso do que antes."

"Esses pobres garotos merecem nomes, é o mínimo que você pode fazer. Ambos são inteligentes e corajosos. Assim como Hamlet hoje, quando ele me avisou que você estava em perigo."

"Bem, ele foi à pessoa errada. Mesmo aparecendo, você não seria de muita ajuda. Ocorreu tudo bem desta vez, porque eu já tinha afugentado os cães, mas se eu não tivesse, você provavelmente seria o único sentado ali com uma ferida aberta."

"Sim, bem... Eu acho que você está certo sobre isso."

Nezumi se levantou e agarrou Shion pelo braço.

"Nunca faça algo assim novamente, está me ouvindo? Aconteça o que acontecer, não fique se achando e acreditando que pode ser de alguma ajuda para mim."

Shion olhou para ele com os olhos arregalados. Nezumi ergueu o queixo e apertou a mandíbula.

"Você é impotente, lembre-se disso. Você não tem a habilidade ou a mentalidade suficiente para lutar. Você é como um pintinho que caiu de seu ninho. Você tinha acabado de fazer piu, piu, piu até ser comido por uma raposa. Então faça um favor, e não vá caminhando direto ao perigo. Não faça isso, nunca. Use sua cabeça. Coloque o seu cérebro super dotado para funcionar, a todo vapor, e use seu julgamento para avaliar a situação. Nossa, eu não sei o que diabos você estava pensando, correndo para a escuridão, mesmo sem portar uma arma".

"Eu não estava."

"O quê?"

"Eu não estava pensando na situação, ou no perigo. Eu já estava correndo antes que eu pudesse parar para pensar."

"É por isso que eu estou dizendo, Shion, da próxima vez, nunca mais faça algo tão tolo ou imprudente."

"Então o que devo fazer?"

"Não faça nada. Não há nada que você possa fazer de qualquer maneira. Coloque um cobertor sobre a cabeça ou algo assim, e fique quieto."

Shion abaixou os olhos e sacudiu a cabeça.

"Eu não posso fazer isso", ele disse calmamente. "Eu não posso ficar lá e ficar quieto quando eu sei que você está em apuros. Eu teria me explodido de qualquer maneira."

"Você seria apenas um obstáculo."

"Isso é cruel", Shion disse suavemente.

"É a verdade."

"Nezumi... você está certo", ele cedeu. "Eu sou inútil. Eu não sei como lutar, e eu nunca seria capaz de magoar alguém."

"Sim, e como um soldado, isso o colocaria no nível mais baixo. Não... Na verdade, teriam te dado baixa. Portanto, nem pense sequer em lutar. Você não tem o poder mental por ficar se preocupando com as outras pessoas. Você nem pode se proteger. Portanto, não faça nada. Estou implorando, só não chegue perto de nenhum lugar perigoso. "

O que diabos eu estou dizendo?

Nezumi apertou a mandíbula novamente.

O que ele estava dizendo? O que ele estava fazendo, levando isso a sério? Ele estava tão intrincado assim em parar Shion?

Shion vai ir sozinho.

A voz baixa de Inukashi ecoou em seus ouvidos.

Sim, Shion provavelmente iria sozinho. Ele partiria para um lugar com chances de menos de um em um milhão de voltar vivo, e ele iria sozinho, sem pedir a minha ajuda, sem sequer me avisar. Ele iria em silêncio, sem saber nada de luta, sem saber a dor do derramamento de sangue, ou dos horrores sombrios de intenção homicida. O idiota inútil, de cabeça grande e alheio.

"Mas não se trata de raciocínio", Shion disse calmamente, perfurando o silêncio.

"Hum? Você disse alguma coisa?"

"Não se trata de raciocínio, Nezumi. Sei muito bem na minha cabeça que, mesmo se eu aparecesse, eu não seria de grande ajuda para você... Eu não seria capaz de salvá-lo. Eu sei."

"Bom para você. A coisa cinzenta na sua cabeça é a única coisa de que você pode se vangloriar, de qualquer maneira. E se a sua cabeça sabe, em seguida, tome esse conselho."

"Não."

Shion franziu os lábios firmemente, com uma expressão desafiadora. Era o rosto de alguém cuja força de vontade corria forte e profundamente. Era a primeira vez que Nezumi via Shion com um cara assim.

"Não se trata de raciocínio!" Shion disse acaloradamente. "Lá atrás, quando Hamlet veio me chamar, eu estava com medo. Eu pensei que algo tinha acontecido com você. Pensei que você ia morrer. Você está me dizendo que eu deveria ter parado e calculado na minha cabeça? Perceber que de qualquer maneira eu não faria nada bom se eu fosse, e apenas ficasse sentado? eu nunca poderia fazer isso. Como eu poderia? Como eu poderia ser frio e calmo e pensar se eu tenho ou não tenho a força, se eu posso ou não posso ajudá-lo? Como alguém pode fazer isso? Idiota!"

Era a sua segunda vez que estava sendo chamado de idiota por Shion. Ambas as vezes, Nezumi não tinha sido capaz de prever a explosão de raiva de Shion. Pela primeira vez, Nezumi havia dito a Shion: 'Não chore por outras pessoas. Não entre em brigas por outras pessoas. Lute e chore apenas por si mesmo'. Shion tinha dito que ele não entendia. Era verdade, ele não tinha entendido. Desta vez, mais uma vez, Shion havia se atirado na escuridão por um estranho. Deixando de lado a razão, que o avisou dos riscos, ele tinha corrido para a escuridão. Era perigoso. Muito perigoso. Nezumi havia se preparado para caso de Shion se tornar algemas que prendiam seus tornozelos. Mas havia também o oposto. Havia uma possibilidade de que ele mesmo se tornasse os grilhões que envolviam os pulsos de Shion.

É por isso que...

Nezumi desviou o olhar do menino que estava à sua frente.

É por isso que os seres humanos são problemáticos. Quanto mais você se envolve com eles, mais apertado ficam as algemas. Eles impedem o livre impulso mental. Torna-se mais difícil de viver só para si mesmo. Talvez a gente nunca devesse ter se conhecido. Talvez um dia, Shion, você chegue a pensar assim.

Os ombros de Shion subiam e desciam enquanto ele tomava uma respiração profunda. Ele colocou os lábios de forma descontente.

"Nezumi, porque você não está dizendo nada?"

"Por nada".

"Vá em frente e ria se você quiser. Você provavelmente só acha que isso é tudo linguagem sem nexo de alguém que não sabe nada sobre o mundo, certo? Legal. Ria o conteúdo do seu coração. Vá em frente, ria."

"Espere um minuto, Shion," Nezumi disse apressadamente, "não é como se eu estivesse zombando de você. Eu só, bem... Eu só estou dizendo que é perigoso saltar no perigo desse jeito, sem pensar em..."

"Eu sei!" Shion disse com veemência. "Mas eu não poderia evitar, tudo bem, eu estava preocupado. Ou eu não sou nem sequer permitido me preocupar com você? Eu nem mesmo tenho o direito de estar preocupado?"

"Quer a verdade? Shion, Você não está fazendo sentido."

"É você quem está me fazendo falar assim!"

O punho de Shion bateu na estante. Um monte de livros entrou em colapso. Cravat deu um berro assustado, e deslizou para as dobras das roupas de Nezumi.

Shion piscou e suas bochechas coraram. Ele se abaixou para pegar os livros e murmurou um pedido de desculpas em uma voz suave.

"Eu sinto muito, eu só... Eu não queria gritar."

"Eu não me importo", Nezumi disse levemente. "Devo dizer que foi muito atraente te ver todo agitado assim. Um jeito que eu gostaria de ser tratado mais vezes de vez em quando."

"Parece que eu estou sempre agitado quando eu estou com você", Shion suspirou. "Estou surpreso com o quão emocional eu consigo ficar, às vezes."

"Você sempre foi uma pessoa emocional. Você sempre escolhe o sentimento invés a razão, e você não tem vergonha de ser honesto com as suas emoções. Quatro anos atrás, era a mesma coisa. Mesmo quando você era um candidato para os escalões de elite da No. 6, ainda obedeceu suas emoções e me acolheu."

"É... obedeci minhas emoções..." ele disse pensativo. "Eu acho que você está certo."

Shion empilhou os livros ordenadamente, e exalou.

"Mas sabe, Nezumi, eu realmente não me arrependo. Ainda estou feliz que eu não virei as costas para os meus sentimentos naquela noite."

"Eu sei."

"Hum?"

"Eu sei que você não se arrepende um pouquinho sequer do que fez. Eu apenas perguntei por um capricho. Acho que eu provavelmente estava entediado, ou algo assim."

Ele levou uma mão ao seu ombro. As bandagens, que eram velhas e gastas, e deveriam ter perdido toda a elasticidade, agora, envolviam-se firmemente em torno de seu ombro e das articulações de seu braço, e não mostrava sinais de abrandamento.

"Eu não teria sido capaz de envolver a minha ferida tão bem assim", Nezumi disse pensativo. "Você pode não ser capaz de lutar, mas provavelmente você pode tratar as pessoas. Todo mundo tem alguma coisa. E, provavelmente..."

"Provavelmente?"

"Não, não importa. Diga, estou com fome, você não está?"

Shion olhou para Nezumi e deu um sorriso gentil.

"Há pão e carne na mesa. Algumas coisas aconteceram e só há um pouco sobrando, mas deve ser suficiente para o jantar."

"E você?"

"Eu vou dormir. Sua ferida provavelmente vai te manter acordado hoje à noite, então você pode usar a cama. Vou dormir no chão."

"Que gentil da sua parte."

"Nezumi".

"Hm?"

"Se eu não tivesse te conhecido, eu provavelmente nunca teria percebido que tipo de pessoa eu era, né?"

"Por que você está tocando nisso agora?"

Shion se aproximou de Nezumi enquanto ele se sentava em sua cadeira e o olhou diretamente nos olhos.

"Gostaria de ter crescido um adulto compassivo, racional, obediente, mesmo sem saber que havia tantas emoções dentro de mim. Eu nunca saberia o que era chorar, ou ficar com raiva, ou sentir resistência a algo. Eu te conheci, e percebi quanta abundância eu tinha. E eu estou orgulhoso de que sei isso agora."

Shion cortou suas palavras e hesitante abaixou os olhos.

"Eu estou feliz de que eu encontrei você."

Saiu como um sussurro que mal dava para entender. Shion se curvou, os olhos ainda abaixados. Seus lábios roçaram levemente contra os de Nezumi.

Um livro caiu em algum lugar com um toc macio.

Quando Shion levantou o rosto novamente, Nezumi falou.

"Não é um beijo de agradecimento, é?"

"É um beijo de boa noite."

"Boa noite, é?"

"Eu vou fazer tosa nos cães amanhã", disse Shion. "Há um monte deles com pêlo longo. Inukashi apenas os deixa, então seus pêlos ficam tudo emaranhado e estão começando a inflamar a pele."

"Acabei de ser mordido por um cão, certo? Eu não me importo se eles têm pêlo curto ou pêlo longo, eu não quero nem ouvir falar de cães agora."

Shion soltou uma gargalhada e deu um aceno casual de sua mão.

"Boa noite, então."

"É. Bons sonhos."

"Você também."

Shion desapareceu nas sombras dos livros. Cravat se arrastou para fora da roupa do Nezumi e correu atrás dele, talvez com a intenção de dormir com ele também.

"Beijo de boa-noite, hein."

Nezumi traçou seus lábios com os dedos, e caiu para trás em sua cadeira.

"Você é um tanto mentiroso."

A fome atroz, o cansaço e a dor latejante caíram. No lugar disso, algo brotava de dentro. Tristeza, solidão... mas também não era tanto. O que era? Uma gota quente rolou pelo seu rosto. Levou um tempo para entender que elas eram lágrimas. Ele havia esquecido há muito tempo o que era chorar.

Tinha um gosto salgado, como uma sopa salgada.

Nezumi levou os joelhos para cima e colocou a cabeça para baixo entre eles. Lentamente, ele engoliu as lágrimas que penetraram em sua boca.

 

Leia o capítulo 5.

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Notas

  1. Traduzido do Inglês que foi traduzido do Japonês. As Orelhas do Rei Midas (http://www.algosobre.com.br/mitologia/midas.html). [Voltar]

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domingo, 4 de agosto de 2013

[Novel] No. 6 Volume 3 Capítulo 3

no.6 3

Passe o cursor sobre o texto sublinhado para ver informação.

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Capítulo 3: Finisterra

Os seres humanos nasceram pelo olho de Ra. Ra foi o criador do céu, da terra, e de todas as coisas. Por ser o Sol, e também o soberano dos deuses, decidiu-se que ele se tornaria o primeiro rei na terra.
- Mito egípcio "O Começo do Céu e da Terra" [1]

 

Estava embaçado. Estava tudo velado em uma névoa, e vago.

Mas eu tenho que acordar...

Safu lutou para abrir os olhos. Ela mordeu o lábio tão forte quanto pôde. Doeu levemente. Ela pôde sentir suas sensações retornando.

Safu percebeu que ela estava presa a uma maca. Uma porta branca se abriu e ela foi levada para dentro. Em sua visão embaçada, ela não pôde decifrar o que tinha lá. Sentiu seu corpo deslizando para o lado.

"Ah, está acordada?" Era voz de um homem. "Não precisa estar, no entanto. Vamos dar-lhe um anestésico, podemos? Então você poderá dormir de novo em paz."

"Onde... estou..?"

"Quer tentar um palpite?"

O que há de errado comigo? O que aconteceu?... Eu visitei a casa de Shion, e então...

Havia um homem com o uniforme da Secretaria de Segurança.

'Você é a Safu-san?'

Um choque em seu pescoço. A dormência havia se espalhado pelo seu corpo.

Safu quase gritou em horror. Seus lábios se separaram, mas nenhum som saiu. A voz dela estava presa na parte de trás de sua garganta.

"Insti... tuição... Correcional... "

Uma gargalhada estridente ecoou. O homem estava rindo.

"Você gosta da Instituição Correcional? Parece que você tomou um gosto por ela. Eu sei, já que esta cirurgia é longa, você pode viver em sua própria suíte especial até que você morra. Vou arranjar tudo."

Cirurgia?

"Cirur..."

"Sim. Você está deitada em uma mesa cirúrgica." A voz do homem ainda estava cheia de alegria. Um brilho branco encheu a sua visão. Safu presumiu ser a luz de uma lâmpada cirúrgica. Ela foi envolvida com horror... Mais forte que o horror que a havia invadido quando fora apreendida pela Secretaria de Segurança.

Uma lágrima derramou de seu olho.

"Não precisa chorar. Não haverá nenhuma dor ou desconforto. Agora, boa noite."

Shion. Shion. Shion.
Este nome vai me proteger de todas as coisas más.

Ele vai me salvar.
Ele vai me resgatar, e me tirar daqui ― Shion.

"Shion".

Seu nome foi chamado. Seus pés pararam. Seu guarda, um grande cão, deu um rosnado baixo.

"Rikiga-san."

Rikiga saia por meio de uma frágil porta de vidro de um restaurante debilitado. Mesmo debilitado, era um dos estabelecimentos mais decentes no bazar do Bloco Ocidental. A maioria dos estabelecimentos deste tipo era aglomerada de barris e caixotes colocados para se sentar, e os pratos eram todos de uma origem não identificável. O fedor forte de bebida e de um misterioso ensopado flutuava para a rua, e Shion muitas vezes encontrava-se apertando o nariz. Mas, mesmo assim, crianças famintas e mendigos velhos circulavam pelas lojas, alguns vagando na esperança de receber alimentos, outros olhando fixamente para os adultos que levavam comida à boca. O proprietário de uma loja levantou a voz com raiva, jogando água para fora de sua loja, e afugentou o povo como se fossem cães ou gatos abandonados.

E à frente dessas pessoas que passavam fome, os que eram capazes de ter em suas mãos o sustento do dia afundavam seus dentes em sua comida, pingavam gordura sobre a boca, e lambiam os dedos.

Ter dinheiro, e ter poder.

Ter comida significava cumprir essas condições.

Shion tinha aprendido isso nesses poucos dias aqui. Mas ele ainda não podia se acostumar com isso. Ele não podia suportar olhar para a cena diante dele. Não havia alternativa, senão desviar seu olhar, e olhar para o chão.

"Se isso faz você se sentir melhor, então, dê a eles uma esmola. Mas só se você puder encher a barriga de cada pessoa ali", Nezumi havia dito. Para Shion no presente, isso era uma tarefa impossível.

"O que você pode fazer com a sua compaixão indecisa? Você pode ser capaz de salvar um punhado de crianças da fome, por um curto período de tempo. Mas isso apenas significa que você está criando dois novos tipos de pessoas: aqueles que estão morrendo de fome, e aqueles que não estão. Deixe-me te dizer uma coisa interessante, Shion. É mais insuportável para pessoas que já encheram a barriga morrer de fome, do que para as pessoas que nunca a encheram. Nada é mais duro do que a fome depois da saciedade. Estas crianças aqui nunca comeram até ficarem cheias. Elas não sabem o que é ficar satisfeito. É por isso que elas podem se acostumar com isso. Compreende? Não há nada que você possa fazer aqui, absolutamente nada."

Nezumi cuspiu essas palavras, e saiu da sala. Mas antes disso, ele tinha parado bruscamente em frente à porta e se virou. Um cão marrom estava deitado de lado.

"Então Inukashi emprestou este cão para você como seu guarda-costas, hein? E eu soube que seu salário está um pouco mais nivelado do que o habitual. Parece que você se tornou o predileto dele."

"Ele disse que vai me deixar continuar a trabalhar para ele. Ele me pediu para limpar os quartos de hóspedes e cuidar dos cães."

"E você aceitou o trabalho?"

"É claro", Shion respondeu entusiasticamente. "Eu fiquei tão feliz, agradeci-lhe de novo e de novo."

Nezumi zombou.

"Olhe só para isso. O Sr. Elite da N° 6 está se alegrando por um trabalho de faxineiro e cuidador de cães. Deve ser interessante ver o quanto você vai se vergar."

"Eu não acho que eu estou me vergando," Shion disse prontamente. "Você concorda, não? Você não acha que eu estou ficando torto, apesar de tudo."

O rosto de Nezumi se contorceu um pouco. Ele encolheu os ombros.

"Ah, sim, Shion. Você foi pago por Inukashi hoje, não foi? Saia e compre um pouco de carne seca e pão."

"No mercado?"

"Você não sabe de nenhum outro lugar para comprar comida, sabe?" Nezumi disse sarcasticamente.

"Bem... sim, mas..."

"Carne seca e pão. Inspecione cuidadosamente quando derem a você. Se distrair, como você costuma fazer, receberá um tijolo de um pão bolorento. E pechinche. Pechinche como se não houvesse amanhã. Estou saindo."

A porta se fechou, e seus passos desapareceram longínquos.

Ele teria de comprar carne seca e pão na frente daquelas crianças.

Nezumi havia dito a ele para fazer isso.

Carne seca e pão.

O estômago de Shion rosnou insistentemente. Sua boca encheu de água. Ele tinha tido apenas uma fatia de pão e frutas que Inukashi lhe havia dado ao meio-dia, estava terrivelmente faminto. Ele não tinha comido carne nem pão macio fazia dias.

Seu estômago rosnou, sua boca aguou.

Ele queria comer. Ele queria saciar o estômago vazio.

Shion suspirou e puxou seu chapéu mais para baixo sobre sua cabeça.

O que você pode fazer com a sua compaixão indecisa?

Ele recordou as palavras de Nezumi de novo e de novo.

Você está certo. Eu não posso fazer nada. Eu só estou fingindo ter pena daquelas crianças para aumentar a minha autoestima. A verdade é que eu estou prestes a comprar carne e pão, bem na frente das crianças, para satisfazer a minha própria fome. Essa é a minha verdadeira forma ― esse é o tipo de pessoa que eu sou. Nezumi, é isso o que você quis dizer?

Havia algumas moedas no bolso que ele havia recebido de Inukashi. Fora seu dia de pagamento.

"Parte disso é um agradecimento por tratar do meu irmão. Nem sempre posso pagar tanto". Inukashi tinha dito isso um tanto secamente, mas Shion estava grato por sua bondade. Pode ter sido uma quantidade meio grande para um dia inteiro de trabalho. Mas, mesmo assim, era o suficiente para cobrir apenas algumas tiras de carne seca e duas ou três fatias de pão bolorento. Não havia quase nenhuma comida deixada no lugar, caso contrário, estaria enterrada em livros. Ele não seria capaz de viver sob a bondade de Nezumi para sempre. Ele tinha de garantir um meio de se sustentar, por pouco que fosse.

Shion abriu a porta e saiu. O cão lentamente se levantou, e se arrastou atrás dele. Quando Shion pôs o pé na rua do mercado, o cão foi para o lado de Shion e acompanhou-o de perto. Ele fora bem treinado. Era evidente que Inukashi tinha bastante controle de seus cães. Shion sorriu timidamente quando ele pegou a si mesmo, mais uma vez, sendo surpreendido ou impressionado como com tantas outras coisas desde que veio para o Bloco Ocidental.

Já estava anoitecendo. A escuridão estava se estabelecendo, e os murmúrios e berros de vozes ecoavam cada vez mais alto no ar. Sob tendas rasgadas, na frente de barracos, as pessoas vendiam e compravam coisas, comiam e bebiam. Assim que o calor da tarde caia abaixo do horizonte, o chão abaixo deles ficava mais frio a cada minuto. O negócio provavelmente estava crescendo no hotel de Inukashi. Para quem não tinha nada quente para dormir, ia ser uma noite desagradável. Mulheres de seios nus chamavam da escuridão dos becos, e as mulheres velhas vestidas em trapos se amontoavam no chão na mesma escuridão. Crianças surgiam, agilmente se enfiando no meio da multidão, e ocasionalmente ganhavam broncas. E as pessoas ainda compravam e vendiam, comiam e bebiam.

Não sei o que me espera amanhã. Mas pelo menos até hoje vivi.
Então, eu vou comer.
Então, eu vou beber. Neste lugar, isso é tudo o que temos.
Todas as coisas que eu disse, não poderei desfrutar quando eu tiver morto

Então, eu tô vivo e aproveitando hoje.

Isso é tudo.
Aqui, é tudo. Meu tudo.

Alguém estava cantando fora do tom. Shion parou, e inclinou o ouvido à voz. Ele abraçou a parcela de carne seca e pão que ele tinha acabado de comprar. Este clamor que parecia correr por ele e dominá-lo... Este clamor, esta confusão de ruídos que parecia estourar da terra por si mesma...

Estava tudo ligado a aqueles que tinham um forte apego à vida, e a energia que eles irradiavam. Aqui, todo mundo se agarrava à vida rápido. Eles avidamente apegavam à sobrevivência. Porque nada assegurava um amanhã para eles, estas pessoas viviam com ainda mais desespero. Esta energia, este clamor. Era algo que não existia, não era permitida a existir, na Nº 6.

Que tipo de sentimentos Nezumi tinha quando andava por estas ruas?

"Irmão".

Uma voz fraca chamou por ele. Ele se virou para ver uma criança magra com vestes desbotadas. Ele tinha cabelos longos e emaranhados, e um rosto sujo. Shion não podia dizer se era um menino ou uma menina.

"Poupe um pouco de pão para mim", implorou a criança sem forças, com uma voz que era quase um sussurro. "Eu não tenho comido por três dias. Por favor, apenas um pedaço."

O semblante da criança lembrou o de uma menina que ele se dava bem na Cidade Perdida. O nome dela era Lili.

"Um pedacinho..."

Um par de mãos pequenas se esticou em direção a ele. Quase que sem pensar, Shion estava colocando a mão em seu pacote. Assim que ele tirou um rolo, um impacto bateu em suas costas. Ele havia sido empurrado. Cambaleou. Quando Shion perdeu o equilíbrio, um par de mãos pequenas arrebatou o pacote dos braços de Shion. Ao mesmo tempo, ele foi empurrado violentamente pelas costas mais uma vez e caiu de joelhos.

"Corra!"

A criança gritou energicamente, quase que irreconhecível ao sussurro de momentos antes. Várias crianças gritaram logo após enquanto eles roubavam Shion. O cão saltou a frente de forma rápida e silenciosamente. Ele atacou a criança que havia roubado o pacote. Gritos saíram do grupo.

Ainda abraçando o pacote de pão e carne seca com ambas as mãos, a criança caiu no chão. Algumas tiras de carne e um pedaço de pão caíram e se espalharam pelo chão. O cão prendeu a criança no chão com as patas e mostrou os dentes.

"Pare com isso! Fica!" Shion tinha gritado sem pensar. O cachorro obedeceu, fechou a boca, e olhou para Shion o censurando. A criança não perdeu a sua chance. Ele se levantou, e partiu acelerado com o pacote em seus braços. Ele se moveu com a rapidez e agilidade de um animal selvagem. Em poucos momentos, suas costas pequenas tinham desaparecido na multidão. As outras crianças também se misturaram à multidão, fora da vista.

"Incrível..."

Shion não pôde deixar de murmurar aos seus modos espertos. É verdade, ele ficou impressionado. Logo percebeu que não era o momento de se impressionar, e se inclinou para recolher o que restou de sua carne e de seu pão. O que Nezumi diria, depois de ver isso reduzido a quase um terço de seu valor original? Será que ele não diria nada e encolheria os ombros? Será que ele zombaria?

Shion tirou o casaco e envolveu o pão e a carne com ele. Ele iria compartilhar isso com Nezumi para o jantar hoje à noite. Essas crianças provavelmente iriam fazer o mesmo. Eles compartilhariam entre si, e cada um teria um pedaço minúsculo de comida para o jantar. Simpatia ingênua e sem sentido. Ele sabia que Nezumi o criticaria severamente, mas Shion ainda estava um pouco aliviado.

Pelo menos esta noite, essas crianças teriam comida. Agora, ele não tinha como libertá-los da fome. Ele não podia fazer nada. Mas se a sua carne e pão iriam afastar seus estômagos vazios, mesmo que por um curto período de tempo... não era pelo menos um pouco significativo? Era aceitável desistir porque ele era incapaz de fazer qualquer coisa. Era aceitável, mas era arrogante. Será que você não pensa assim, Nezumi?

"Ei, você aí, cara."

A partir de uma barraca vendendo kebabs [espécie de espetinhos] assados, a lojista o chamava com a sua voz rouca. "Tu para na frente da minha loja feito tonto? Tu é um incômodo, tá. Interrompendo o negócio!"

"Ah, me desculpe", Shion curvou a cabeça às pressas em pedido de desculpas, mas a dona da loja já estava ocupada com outros clientes para notá-lo. Aqui, ninguém se importava com outros estranhos. Eles simplesmente não estavam interessados. Se há roubo na rua, ou um mendigo morrendo, ou uma luta começando, ninguém se importava. Tudo se misturava com o cenário de ocorrências diárias.

"Bem, vamos para casa, então," Shion chamou o cão e notou suas mandíbulas mastigando algo.

"Ei, espere um minuto, não me diga que você está..."

O cão engoliu a carne em sua boca, e olhou para ele com um brilho de um sorriso.

"Quando você conseguiu pegar essa carne? Muito mais rápido do que eu, hein."

O cão pendeu sua língua rosa, lambeu os beiços, e começou a trotar bruscamente à sua frente. Shion estava se divertindo, embora ele não tivesse certeza do porquê.

Ele vinha seguindo o cão por algum tempo quando foi parado por Rikiga. Externamente, o trabalho de Rikiga era publicar revistas lascivas para adultos. Mas, nos bastidores, atuava como um intermediário para a prostituição, o que era o seu sustento. Entre seus clientes disse que haviam funcionários mais elevados da Nº 6 também. Nas palavras de Nezumi, foi a partir desses tipos de pessoas que Rikiga astuciosamente juntou grandes quantidades de dinheiro.

Mas ele também era o homem que Karan, mãe de Shion, disse-lhe para ir pedir ajuda. De acordo com Rikiga, há muito tempo atrás, antes da Nº 6 e do Bloco Ocidental terem sido divididos com uma parede de metais especiais, ele conheceu e se apaixonou por Karan. Mas foi apenas ele quem tinha se apaixonado, Karan tinha apenas mostrado uma concordância com os artigos que Rikiga havia escrito como jornalista na época.

"Ele é um exemplo primordial de um homem corrompido." Estas também foram palavras de Nezumi, mas Shion descobriu que gostava da aura um pouco distante e sem medo do homem que um dia amou sua mãe. Este homem não era completamente corrompido. Ele ainda tinha o jornalismo em seus ossos. Isso era o que Shion sentia.

O rosto de Rikiga estava vermelho-beterraba pela embriaguez, e até mesmo seus olhos estavam vermelhos. Parecia que ele tinha bebido um pouco.

"Rikiga-san, será ruim para a sua saúde se você não afastar um pouco o álcool."

"Você é tão gentil Shion. Sinto como se fosse uma repreensão de Karan para mim. Ela estava dizendo para mim outro dia, 'Por favor, Rikiga, cuide da sua saúde'."

"Outro dia? Minha mãe?"

"No meu sonho. Desde que eu te vi, Karan começou a aparecer nos meus sonhos. E cada vez que eu a vejo, ela me repreende. Não beba, não seja leviano, não perca de vista como o seu trabalho realmente deve ser."

Um rubor que não era do álcool subiu nas bochechas de Rikiga. Ele virou o rosto, como se para evitar o olhar de Shion.

"Bem, um sonho é apenas um sonho. Karan seguiu em frente, fez um filho admirável como você. Eu tenho certeza que ela mudou de quando ela era mais jovem... Na aparência, e no coração também."

"Ela está envelhecida", Shion admitiu. "E ela ficou um pouco gorda. Mas, se ela fosse te ver de novo, Rikiga-san, eu tenho certeza de que ela diria a mesma coisa que ela disse para você no seu sonho. Esse é o tipo de pessoa que ela é."

Rikiga abriu a boca para dizer alguma coisa, e então apertou os lábios.

"Tudo isso sobre Karan... é... está tudo bem. Para dizer a verdade, é um pouco doloroso lembrar..." Ele parou abruptamente antes de mudar de assunto. "Então, você está sozinho hoje?"

"Estou com o cão."

"Esse que está olhando para mim desconfiado? Você não gostaria de me morder, vira-lata. Só para você saber, a minha carne é embebida em álcool, e está correndo em minhas veias. Afunde seus dentes nisso, e você vai à falência envenenado por álcool."

O cão olhou para o homem embriagado, contraiu o nariz com desdém, e fez uma careta. Shion olhou para baixo e sorriu para si mesmo.

"Qual é o seu problema?" Rikiga resmungou para o cachorro. "Então, ninguém mais com você hoje além do cachorro?"

"Você está falando de Nezumi?"

"É. Aquele ator espertinho-sarcástico. Nossa, eu não acho que eu já conheci alguém tão boca-suja como ele."

"Mas você era fã dele, certo?"

"Eu apenas não sabia a sua verdadeira identidade, isso é tudo. Quer dizer, Eve é muito cativante no palco. Eu nunca teria imaginado que ele fosse um idiota mal-educado. O garoto sai por aí dizendo o que quer, quando quer. Difícil imaginar como um rosto bonito como aquele pode ser tão ousado e brutal. Inacreditável, estou dizendo."

"Nezumi apenas diz a verdade."

Não importa o quão duras ou cruéis fossem suas palavras, elas nunca levavam uma mentira. Por isso que elas se tornavam lâminas e lanças que perfuravam o peito de Shion, e deixavam uma dor que ele não poderia esquecer. Era uma dor que ele nunca teria conhecido se não tivesse conhecido Nezumi. Toda vez que as incontáveis dores ​​agitavam inquietas no fundo de seu peito, Shion sentia algo em si mesmo mudando pouco a pouco. Uma parte desmoronava, enquanto outra parte reconstruía-se, e ainda outra parte nascia de novo. Cada palavra de Nezumi, e a dor que o acompanhava levava Shion a mudar, e o mantinha levando para frente. Shion poderia sentir-se vividamente sendo alterado e moldado pela força do outro.

"Você sabe, Shion. Se ficar muito insuportável, você pode ficar mais comigo", disse Rikiga enquanto caminhavam lado a lado. Sua respiração bateu na bochecha de Shion, e cheirava a álcool.

"Insuportável? O que você quer dizer?"

"Não, eu entendo", Rikiga disse abruptamente. "Você não tem que esconder isso. Eu não posso imaginar como não seria insuportável viver com Eve. Estou presumindo que suas condições de vida são menos do que o padrão. Você está recebendo o suficiente para comer? Agora, eu acho isso altamente improvável, mas se em caso de alguma desagradável mudança de eventos, você for influenciado por Eve e sua personalidade ficar tão retorcida quanto a dele... hm", ele resmungou para si mesmo. "É verdade. Não há como eu deixar que isso aconteça com o filho de Karan. Venha viver na minha casa. Vou te dar o de comer, e uma cama quente para dormir"

"Não, está tudo bem. Estou bem."

"Mas Karan mandou você vir me pedir ajuda, certo?"

"Sim, mas eu não quero ser um fardo para você, Rikiga-san", Shion insistiu. "Eu estou bem. Eu consegui até agora, e eu vou continuar conseguindo. E eu realmente gosto de ficar perto de Nezumi".

"Não há como você gostar de estar perto de um bunda como ele. Você não tem que fazer uma cara de corajoso. Você está tendo um momento difícil, não é? Olha, você não está nem mesmo usando um suéter. Pobrezinho".

"Ah, não, eu estou usando o meu suéter para enrolar a minha carne e meu pão..."

Mas Rikiga não estava ouvindo a resposta de Shion. Ele estava olhando em volta, e assentindo fervorosamente para si mesmo.

"Eu conheço uma boa loja. Vamos lá." Ele puxou Shion pelo braço, e entrou em uma loja que estava forrada com uma enorme quantidade de roupas. Parecia uma loja de roupas usadas e havia, ainda, roupas penduradas no teto. As roupas variavam de boas-vestimentas para quase novas.

"Dia." Uma mulher quase tão grande quanto a lojista da barraquinha de kebab se materializou das sombras de uma montanha de roupas. Assim que ela percebeu que era seu cliente Rikiga, ela colou um sorriso brilhante de negócio em seu rosto.

"Whah, Sr. Rikiga. Bom te ver de novo", ela demorou. "Se tu tá procurando um vestido para dar pra alguém, temos alguns muito bons, ô se temos. Um deles deixaria ela feliz da vida, sim senhor."

"Não, eu não estou procurando por roupas femininas hoje", respondeu Rikiga. "Você pode encontrar algo aquecido que iria ficar legal neste menino aqui?"

Os olhos da mulher se estreitaram e o seu olhar passou por Shion da cabeça aos pés.

"Whah, que adorável cavalheiro temos aqui", disse ela apreciativa. "E nóss, que cabelo foor-midável. Tá em moda entre os jovens de hoje em dia?"

Shion levantou o seu chapéu de lã para mais longe de seus olhos. Seu cabelo branco brilhante se destacou, mesmo na escuridão ofuscante da loja. Quando a vespa parasita tinha eclodido dentro dele, como um preço para a sua sobrevivência ou por algum tipo de efeito colateral, o cabelo de Shion teve sua cor drenada em uma única noite, e uma cicatriz vermelha tinha aparecido em sua pele, serpenteando o seu caminho de sua perna até seu pescoço. Ele poderia esconder a cicatriz com roupas, mas o cabelo não era tão fácil. Seu cabelo de neve e seu rosto jovem eram uma combinação incomum, e atraía olhares por onde passava. No Bloco Ocidental, não era particularmente incomum os jovens serem carecas ou terem o cabelo grisalho por causa da desnutrição. Havia muitas crianças que tinham o cabelo salpicado com branco que deveria ser mais comum àqueles que entram em seus últimos anos. Mas aqueles como Shion, cujo cada fio de cabelo era um branco puro e brilhante, era uma raridade.

"É mais transparente do que branco, eu diria. Acho que parece muito mais bonito do que antes, para dizer a verdade." Nezumi havia dito, ao tocar o cabelo com as pontas dos dedos.

"El’é seu garoto? Realmente não parece, eu diria," a mulher observava, seu sorriso artificial ainda estava grudado em seu rosto enquanto ela olhava para Shion. Ele sentiu como se estivesse sendo avaliado. Era um pouco desconfortável.

"Rikiga-san, hum, eu realmente não preciso de nenhuma roupa de inverno, podemos simplesmente..."

"Bobagem", Rikiga interrompeu. "Os invernos aqui são duros. Você tem carne apenas o suficiente sobre esses ossos para deixar você dentro dela. Você precisa de algumas boas roupas quentes para afastar o frio. Tá?" ele disse impaciente para a lojista. "Você vai procurar alguma roupa ou não? Se você não for, eu vou negociar em outro lugar."

Sob o olhar penetrante de Rikiga, a mulher se pôs apressadamente em movimento.

"Whah, claro que vou. Na verdade acabamos de receber um carregamento. Nestante". Atrás de uma cortina suja, a mulher encheu os braços de roupas.

"T’aqui. Escolha qualquer um que tu gostar. São todas de xcelente qualidade".

Shion tinha suas dúvidas sobre se elas eram de xcelente qualidade ou não, mas havia, certamente, uma grande variedade de peças de vestuário. Havia sobretudos, casacos, suéteres, xales pesados ​​e jaquetas esportivas de todos os tamanhos, materiais e cores, todos em um grande amontoado.

"Acho que você só tem que olhar para o lugar certo", Shion murmurou para si mesmo. Aqui tinha uma grande quantidade de roupas, no final da rua havia pessoas vestidas em trapos, tremendo de frio. Mesmo em um lugar extremamente pobre como o Bloco Ocidental, ainda havia uma divisão rígida entre os pobres e privilegiados.

"Shion, você não precisa ser modesto. Escolha qualquer coisa que chame a sua atenção."

"Mas Rikiga-san, não há nenhuma razão para você ser tão bom para mim"

"Não se preocupe com isso. Você é o filho de Karan... e para mim, é como se você fosse o meu filho também. Pense nisso como uma espécie de deleite de seu pai."

Shion piscou, e olhou para o rosto corado de Rikiga. Parecia que a bebida tinha acabado com algumas de suas inibições, o que ele estava dizendo agora era provavelmente como ele realmente se sentia. Talvez Rikiga tenha vivido sozinho durante todo esse tempo no Bloco Ocidental, sem família. E agora, ele estivesse tentando reencenar o tipo de vida familiar que ele nunca teve, com o filho de uma mulher que ele havia amado. Liberdade e solidão. Ele teve a astúcia que o levou ter sucesso no negócio subterrâneo com os funcionários da Nº 6 como seus patronos, mas ele tinha a fragilidade de alguém que havia se cansado de viver muito tempo na solidão.

Os seres humanos eram complexos. Eles alojavam em si ambos a resiliência e a fragilidade; ying e yang, luz e sombra; sagrado e pecado. Esta é a verdadeira forma de um ser humano que Shion nunca teria sido capaz de mapear pelo vasto mar de conhecimento que ele tinha adquirido na No. 6.

O que ele sabia do corpo humano - cerca de 32.000 genes, aproximadamente 100 mil tipos diferentes de proteínas, 300 milhões de sequências de bases de DNA; os neurônios; fibras de colágeno; macrófagos, a estrutura em camadas de músculos; o volume de sangue em circulação - ele não achava nada disso um desperdício. Ele não pensava assim. Mas compreender o ser humano é uma dimensão totalmente diferente. Era impossível compreender qualquer coisa sobre a complexidade ou a verdadeira forma de um ser vivo a partir de um conhecimento sistemático ou de informações que pudessem ser convertidas em números.

Era algo que Shion tinha aprendido em seus dias de vivência com Nezumi neste lugar.

"Bem, nesse caso, eu acho que eu vou escolher livremente."

"Isso mesmo", disse Rikiga jovialmente. "Qual você quer? Encontrou alguma coisa que você gosta?"

Shion tirou um casaco escuro e pesado.

"Eu vou pegar este. Parece quente."

"Tem certeza de que quer algo maçante assim? Tudo bem, então escolha um suéter chamativo. Você é jovem, ficaria melhor em cores brilhantes."

"Não, realmente..." Shion protestou: "Eu não preciso de muito."

"Bobagem. O casaco por si só não vai mantê-lo quente o suficiente."

"Eu diria isso tamém, senhor", a mulher entrou na conversa "Nossos suéteres são muitos quentes, olha só. Por que tu não veste uns?"

A mulher confiantemente puxou um suéter para fora da pilha. A montanha de roupas entrou em colapso, e derramou em uma avalanche sobre o chão.

"Ah, cara. Bom, peço desculpa..."

Rikiga estalou a língua em aborrecimento.

"O que você está fazendo?" disse ele, irritado. "Agora não podemos nem mesmo escolher nesta bagunça. Ridículo, hein, Shion." Ele fez uma pausa. "Shion... o que há de errado?"

Embora Rikiga tenha falado ao lado dele, suas palavras não chegaram aos ouvidos de Shion. Seu olhar estava colado ao que tinha aparecido sob as roupas espalhadas. Todos os sons e cores desapareceram de sua volta, e só uma coisa se levantou em sua visão.

Era um casaco meio cinza.

A cor suave com um toque de azul, a sua evidente qualidade premium ao toque, os botões grandes nos punhos das mangas... Ele já havia visto antes.

"Este é..." Sua mão tremia quando ele agarrou o casaco. Havia um rasgo no ombro que tinha sido costurado grosseiramente com linha preta. Também um botão faltando, que parecia ter sido arrancado. Suas mãos tremiam violentamente. Ele queria que elas parassem, mas não pararam.

"Isto chamou tu’atenção? Ah, mas issé um casaco pra garotas, olha só. Da melior qualidade, é claro... Mas pó ser um pouco desconfortável em ti, senhor. Eu não acho que vai caber. O último casaco, o preto, ficaria muito mais..."

"Aonde você..."

"Como?"

"Eu estou perguntando aonde você conseguiu isso!" Ele estava gritando. Ele não tinha intenção de intimidar a mulher, mas ela ergueu as sobrancelhas em surpresa, e deu um passo para trás.

"Este casaco... de onde... de onde você tirou isso?"

"Shion!"

Rikiga fechou a mão sobre o ombro de Shion por trás. "O que há de errado? Pra que você está ficando tão agitado? O que há de errado com o casaco?"

Shion engoliu em seco, e apertou o casaco nas mãos.

"Isto pertence a Safu".

"Safu? Quem é essa?"

"Minha amiga. Minha... muito preciosa..."

"Amiga? Você quer dizer, de quando você ainda estava dentro da cidade?"

"Sim".

"Você tem certeza de que não é um erro? Deve haver dezenas de casacos que se parecem com esse."

Shion rangeu os dentes na esperança de parar o tremor em seus dedos, e balançou a cabeça de um lado para o outro.

Não era um engano. Este era o casaco de Safu. Tinha sido um presente de sua única parente de sangue, sua avó, e até mesmo para um garoto como Shion, ele poderia dizer que era uma peça elegante que complementava o rosto bem-definido de Safu.

"Sua avó realmente deve te conhecer bem, Safu. Ela sempre escolhe as coisas que ficam melhores em você", ele disse.

"Sim, acho que sim. Quero dizer, ela me criou por toda a minha vida, afinal. Ei, Shion... se você fosse me dar um casaco, que tipo você me daria?"

"O que? Sinto muito, mas com o meu salário eu nunca vou poder ter um casaco tão agradável como esse."

"Eu estou apenas dizendo, "se"? Eu quero saber o que você escolheria."

"Hmm, pergunta difícil."

"Então, pense bem. Resolver questões difíceis é o que você gosta, não é?"

No ano passado, eles haviam andado no inverno tendo esse tipo de conversa. Os raios do sol de inverno tramitavam através dos ramos nus e brilhavam sobre Safu, fazendo o seu casaco brilhar fracamente. Essa foi a primeira vez que ele havia pensado que sua amiga de infância estava linda. O sol de inverno, o sorriso ardente, o casaco cinza. Era de Safu. Ele tinha certeza disso.

Por que... O que isto esta fazendo aqui? Por que, por que, por que...

"Por quê?" Shion pressionou urgentemente. "Onde e como você conseguiu esse casaco? Diga-me, por favor. Anda logo".

"Shion, acalme-se." Rikiga saiu na frente de Shion, e bloqueou o caminho da mulher. "Então, por qual rota isso veio? Será que ele veio da Nº 6, ou..."

O rosto da mulher se limpou de seu sorriso de plástico. Em vez disso, ele estava com uma suspeita ousada e desdenhosa.

"Whah, nunca. Aqui estou eu, sendo educada pr’ocê, Sr. Rikiga, e o qu’eu recebe em troca? É da sua conta ond’eu pego mias coisas? Ou o que... tentando encontrar todos defeitos que tu puder nos meus bens, e levar barato, suponho? Isto não é uma brincadeira, não, isto não é não. Não tô rindo nem um pouco."

"Por que diabos eu estaria querendo fazer você rir?" Rikiga estalou a língua. "Posso garantir que a chance disso acontecer é menor que um fio de cabelo da minha cabeça. Porque você não fala? Por que você está sendo tão cautelosa? Se é arriscado, é, mas de onde você está recebendo essas coisas?"

A mulher abriu a boca e soltou uma torrente de reclamações indignadas.

"Iss’é suficiente. Vou te deixar claro qu’eu tem um negócio decente com estas peças. Se você tem algo pra reclamar, você pó se dirigir pra porta. Dá o fora. Vá para casa!"

Antes que ela pudesse terminar, Rikiga tinha torcido o braço dela atrás das costas, e a colocou sobre o balcão.

"O que diabos tu tá fazendo? Seu bastardozinho estúpido!"

"Se você não quer seu braço quebrado, é melhor desembuchar", Rikiga disse sombriamente. "Como você conseguiu esse casaco?"

"Eu peguei na usina de eliminação de resíduos da Nº 6. Peguei porque tava flutuando no esgoto. Iss’é tudo, misericórdia, Jesus!" Ela fez uma careta de dor.

"Há um esgoto saindo daquele lugar? Não sei se eu já ouvi algo sobre isso."

"É o qu’eu tô dizendo, foi há muito tempo... iss’importa, de verdade? Eles jogaram isso fora porque era lixo, eu sô livre para fazer o que quiser com isso. Não é da conta de ninguém, nem sua especialmente."

"Você está mentindo!" Shion gritou. "É mentira! Este casaco era importante para Safu. Ela jamais jogaria fora!"

"Para que esse barulho todo?" Uma porta na parte de trás da loja abriu, e um homem entrou, ele era um gigante - pelo menos dois metros de altura. Parecia que ele pesava pelo menos cem quilos. Sua cabeça era completamente careca, e o seu rosto era estranhamente torcido. Apesar da temporada, ele só estava vestido com uma camiseta de manga curta. Tatuagens de um escorpião e um crânio decoravam seus braços grossos.

"Tu voltou, e bem na hora. Tu vai chutar esses dois pra fora daqui?" A mulher sorriu com desprezo, enquanto continuava sendo presa por Rikiga. "Vou te deixar claro que meu marido tem músculos poderosamente fortes naqueles braços. Pode quebrar um pescoço ou dois antes do café da manhã. Eu me daria o fora daqui se fosse vocês, antes que acabe morto."

Rikiga soltou a mulher, e deu de ombros casualmente.

"Ora?" disse a mulher, impaciente. "O que tu tá esperando? Bata neles té mal conseguirem ficar em pé, vá em frente."

O homem permaneceu em silêncio. Então, sem dizer uma única palavra, ele abaixou a cabeça.

"Quanto tempo, Conk", disse Rikiga momentaneamente. "Não sabia que você tinha se estabelecido. Então você é marido de uma comerciante de roupas agora, hein?"

"Casei há um mês", o homem murmurou.

"Ora, ora. Parabéns. Poderá ser gentil e perguntar à sua linda esposa, onde ela conseguiu esse casaco? Ela tem muitos nervos, a sua mulher. Estamos tendo um momento difícil para conseguir a verdade."

O homem a quem o Rikiga chamou de Conk olhou fixamente para o casaco nas mãos de Shion, e virou-se para a mulher.

"Diga a verdade para o Rikiga-san."

"Quê, que deu em tu tão de repente? Por que tu tem que ouvir eles?"

"Rikiga-san foi bom para mim há muito tempo. Se apresse. Diga logo."

Sob o olhar ameaçador de Conk, o rosto da mulher se retorceu em uma careta. Ainda carrancuda, ela virou o rosto ofensivamente.

"Eu só comprei d’um intermediário. Eu não sei d’onde ele deve ter conseguido."

Rikiga estalou a língua.

"Mentirosa. Não há como você não saber de onde veio a sua mercadoria."

"Eu não sei o que eu não sei", a mulher disse teimosamente. "De jeito nenhum eu saberia."

Rikiga colocou outra pergunta enquanto restringia Conk, que havia dado um passo para a frente com o punho fechado.

"Então me diga quem é intermediário", disse ele. "Eu poderei descobrir o resto."

A mulher não respondeu. Rikiga pegou algumas notas do bolso, colocou na mão da mulher, e fechou os dedos dela em torno do dinheiro.

"Você estava falando com você mesma, e deixou escapar o nome do intermediário. Apenas aconteceu da gente ouvir. Nós vamos manter assim. Não vai lhe causar problemas."

A mulher olhou para as notas na mão, e com o rosto ainda virado para o lado, resmungou uma resposta.

"É o guarda-cão. Um estranho miúdo que usa cães para fazer negócios."

O cão que estava enrolado aos pés de Shion levantou seus ouvidos. Rikiga deu um rosnado baixo.

"Inukashi, hein. Então ele deve ter vindo da Instituição Correcional".

"Instituição Correcional?" Shion repetiu em descrença.

"Sim", disse Rikiga. "Eu ouvi que o garoto passa pertences de prisioneiros para ao mercado subterrâneo".

O coração de Shion parou. Ou, pelo menos, parecia que tinha parado. Ele não conseguia respirar. Houve um zumbido maçante em seus ouvidos.

Instituição Correcional, prisioneiros, Instituição Correcional, prisioneiros, Instituição Correcional...

"Então Safu... ela está dentro da Instituição Correcional?"

"Provavelmente", respondeu Rikiga pesadamente. "E provavelmente ela não foi lá cordialmente como convidada, também. Ela provavelmente foi levada em custódia, tratada como uma prisioneira, sem dúvida."

Shion se disparou para fora da loja com o casaco cinza em seus braços.

Ele tinha que ver Inukashi imediatamente. Ele tinha que saber a verdade dele.

"Shion!"

Atrás dele, o grito de Rikiga se espalhou pelo vento e se dispersou em vão para o ar.

* * *

O homem estava andando estranhamente, e foi assim por algum tempo. Ele tropeçou nos pés vacilantes, como se estivesse bêbado.

Doze anos de idade, Juse inclinou a cabeça em perplexidade quando desmontou de sua bicicleta. Para a esquerda, ele podia ver o prédio onde ele e a sua família vivia. Ele estava em uma esquina de um parque, um dos muitos que pontilhava a área residencial. Embora não fosse tão grande como o Parque Florestal, era, no entanto, um recanto pacífico abundante em vegetação. Juse empurrou sua bicicleta ― uma bicicleta que ele tinha ganhado de seu pai por este décimo segundo aniversário ― e seguiu o homem com o seu olhar. Era inevitável ficar preocupado; ele não poderia simplesmente deixar o homem lá. Sua mãe estava sempre lamentando este hábito dele. 'Não se envolva nas coisas de outras pessoas', ela diria. 'Você parece querer meter o nariz em tudo, Juse. Eu me pergunto se você puxou isso de seu avô.' Mas se ele pegou isso de seu avô, para Juse seria a melhor coisa que ele poderia pedir. Ele sempre pensava assim em seu coração.

Juse amava o seu avô. Quando Juse ainda era jovem, seu avô, que fora um marinheiro, sempre sentava Juse em seu colo e lhe contava histórias. Ele falava sobre o mar, que Juse nunca tinha visto antes, de grandes baleias brancas que eram tão grandes como montanhas; terras que eram cobertas durante todo o ano em neve e gelo; bandos de dezenas de milhares de borboletas que fluíam pelo céu em uma grande massa; gigantes que vivam acima das nuvens; criaturas misteriosas que viviam nas profundezas do mar; fadas; magia; antigas guerras dos deuses - sua mãe odiava isso, mas houve um momento na vida de Juse quando ele se tornou completamente absorto nas histórias que seu avô lhe contava.

Ele cresceu, e não muito tempo depois ele começou a frequentar uma instituição selecionada pela Secretaria da Educação, ele recebeu uma advertência formal do instrutor dizendo que ele tinha tendências delirantes. Foi-lhe dito que isso era preocupante para o seu futuro. Sua mãe começou a chorar, e seu pai cambaleou com o golpe. Juse foi transmitido para o Programa Especial e recebeu instrução especial durante um ano inteiro. Isso foi mandatado para ele, e ele não tinha opção. Todos os livros antigos que tinha tomado emprestado das prateleiras de seu avô foram eliminados. E alguns meses depois, seu avô desapareceu completamente. Ele tinha sido levado para a Casa Crepúsculo. Juse sempre ouviu das pessoas que era a melhor coisa que qualquer pessoa idosa poderia pedir, mas ele chorou na cama por muitas noites de solidão por nunca poder ver seu avô novamente. E nas noites em que ele chorava até dormir, ele sempre sonhava com as histórias que seu avô costumava lhe contar.

Um ano depois, Juse tinha parado de falar sobre grandes baleias brancas, ou sobre fadas com asas transparentes. Os adultos suspiraram de alívio. Mas nas profundezas da alma do menino, as histórias permaneciam secretamente vivas, e respiravam dentro dele. Ele nunca seria capaz de lavá-las. Talvez fosse por isso que ele ainda se encontrava preocupado com outras pessoas, até agora. Ele não podia fazer outra coisa, senão perguntar, o que essa pessoa está fazendo? O que ele está sentindo? Mas ele também tinha adquirido o bom senso de não dizer isso em voz alta.

"Ah!" Juse gritou em voz baixa. O homem tinha caído ao pé de uma faia. O homem gemeu de dor. Juse deixou a sua bicicleta e correu para o lado do homem. Ele pensou ter visto algo preto voar para longe do homem, que estava deitado de bruços. Juse não teve tempo para verificar. O corpo do homem tinha começado a convulsionar, mas logo ficou imóvel.

"Hum... senhor..."

Juse o chamou hesitante. Ele olhou para o rosto do homem. No momento seguinte, Juse estava gritando.

Leia o capítulo 4.

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Notas

  1. Traduzido do Inglês que foi traduzido do Japonês. Não foi possível encontrar uma fonte. [Voltar]

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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

[Novel] No. 6 Volume 3 Capítulo 2 (Completo)

no. 6 volume 3

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(Parte A)

Capítulo 2: Cenas de tranquilidade

Sou o desesperado, a palavra sem ecos,
o que perdeu tudo, e o que tudo esvai.
Última amarra, ruído em ti minha ansiedade última.
Em mim gritas deserta e és tua a última rosa.

- Neruda, Vinte Poemas de Amor e uma Canção do Desespero [1]

 

Na Nº 6, pessoas com quarenta anos de idade consistiam a maioria da idade demográfica. Era uma cidade jovem. Devido a isto, a estranha pessoa idosa que passava na rua se destacava ainda mais intensamente.

Eu faria qualquer coisa para evitar o envelhecimento.

Ela estava farta de ver obesos, mulheres de cabelos brancos, nodosas; homens enrugados e similares.

A mulher trabalhava como enfermeira no Hospital Municipal Central, que era gerido diretamente pelos Serviços de Saúde e Higiene. Ela estava atualmente no comando da ala de idosos. Apesar do fato de que ela os abominava, tinha de lidar com os idosos a cada dia.

Por que eles se preocupam em permanecerem vivos?

A mulher passou a mão pelo seu longo cabelo marrom castanho o qual se orgulhava. Ela não podia suportar a ideia desse cabelo se tornar branco, e ter rugas e manchas aparecendo no rosto. Prefiro morrer antes de acabar ficando assim.

Ela estava falando sério. A Nº 6 tinha cuidados terminais de excelente capacidade profissional. Alguns diziam que não poderia se comparar à nenhuma outra cidade.

Uma vez que o idoso chegava a certa idade e recebia uma notificação da cidade, eles tinham o direito de viver em um lugar chamado Casa Crepúsculo, independentemente da sua classe social, sexo ou história pessoal.

A Casa Crepúsculo era uma instituição ideal que a cidade tinha construído para que os idosos pudessem passar o resto de suas vidas em abundância e conforto. As pessoas diziam que era como um paraíso para elas: instalações médicas para cuidados paliativos eram um dado; todas as coisas que ameaçavam machucá-los, seja a dor, o sofrimento ou a angústia, eram removidas. Era uma instalação sob o controle direto da cidade e do local de trabalho da mulher no Hospital Central, algumas pessoas idosas eram escoltadas até a Casa Crepúsculo cada semana. Não era divulgada a idade ou os critérios determinados para as pessoas serem enviadas para o chalé. Embora não muitos, ainda havia alguns idosos que morriam de doenças ou de fatalidades, antes mesmo de obter o direito de viver na Casa Crepúsculo. Era por isso que os idosos por unanimidade se alegravam ao receber a notícia de residência.

Foi o mesmo com a mulher, cujo pedido de residência aconteceu ontem. Ela estava com uma doença que tinha sido declarada incurável até mesmo pela tecnologia medica estelar da Nº 6.

"Eu estou tão feliz. Agora eu posso passar o resto dos meus anos em paz. Dou a minha gratidão a Deus e à cidade por sua compaixão."

A mulher, que tinha dito ser uma forte crente em Deus, apertou as mãos em seu peito, e murmurou palavras de oração antes de sair da ala hospitalar.

A Casa Crepúsculo. A mulher não sabia onde era localizada. A cidade também não tinha revelado seu endereço. Mas a mulher não tinha qualquer interesse na Casa Crepúsculo.

A mulher odiava as pessoas idosas. Seu desgosto era um lado da mesma moeda do medo que ela sentia em relação a envelhecer sozinha. A mulher era jovem e bonita. Ela queria ficar jovem e bonita para sempre. Através de seu trabalho, ela tinha ouvido rumores de que a cidade estava se concentrando mais do que nunca em sua pesquisa médica sobre a compreensão do mecanismo da vida. Ela também tinha ouvido falar que, a cidade estava investindo recursos consideráveis ​​na pesquisa das moléculas que têm a ver com o envelhecimento.

Se um medicamento para suprimir o envelhecimento fosse desenvolvido – se pudesse ficar assim, e nunca envelhecer - como seria esplêndido. Ela queria que sucedessem em breve, o mais rapidamente possível.

Ela estava quase na estação. Seus pais esperavam em seu lar, numa pequena casa em uma cidade de duas estações de distância. Um homem e uma mulher que acabaram de entrar em seus últimos anos, os dois tinham harpia, eram neuróticos e pretensiosos. Eles ainda se queixavam de que sua filha não tinha sido bem classificada pela cidade, em qualquer campo. Ela não queria envelhecer assim.

A mulher se viu refletida na janela da loja. Estou a caminho do trabalho para casa, então eu acho que não tem um jeito para não parecer um pouco cansada. Mas, ainda assim bonita. Meu cabelo, minha pele - ainda jovem, ainda bonita.

Ela deveria fazer algumas compras antes de ir para casa. Na vitrine, podia ver os vestidos luxuosos, sapatos elegantes e terninhos que ladeavam a loja. Nesta cidade, ela podia ter o que desejava. Claro, limitando a coisas dentro de seu alcance financeiro.

Excluindo a pequena parte da população que se revolvia penosamente na Cidade Perdida, os moradores da cidade não tinham nenhum problema em obter tudo o que precisavam desde que não estivessem atrás da maioria das coisas de classe Premium. Eles poderiam obter roupas, alimentos e residência sem dificuldade.

Não era tão bom como era para os residentes de Chronos, mas era muito melhor que para as pessoas da Cidade Perdida. Ela vivia uma vida relativamente confortável.

A mulher estava satisfeita com a sua posição. Ela queria desfrutar mais de sua juventude, sua beleza, seu conforto e sua vida que estava à sua frente.

Os pés dela pararam. Um par de sapatos exibidos na janela lhe chamou a atenção. Eles eram um rosa choque ofuscante. O inverno havia apenas começado, mas a coleção de primavera já estava sendo exibida. O rosa choque ofuscou: lá estavam eles, mais cedo do que em qualquer outra loja, mais rápido do que qualquer outra pessoa; convidando-a mais e mais.

A Celebração Santa era próxima semana. Era um dia que marcava a fundação da cidade. Festas e eventos comemorativos iriam ser realizados em toda a cidade. A mulher também estava planejando fazer duas coisas.

Eu vou comprar estes sapatos. E eu vou comprar um vestido leve de pêssego para combinar. Vou ficar esplêndida, eu sei disso.

Quando um sorriso satisfeito se espalhou em seu rosto, ela foi atingida com uma tontura repentina. Depois dessa breve crise, a base de seu pescoço ficou quente.

O que há de errado comigo? - Eu me sinto cansada - Meu corpo está pesado.

Suas pernas se sentiam fracas. Ela sentiu náuseas.

Eu tenho que descansar em algum lugar...

Ela entrou em um beco entre duas lojas. Supôs que lá seria uma clínica dirigida pelo Hospital Central.

Eu só tenho que chegar lá...

Seu pescoço estava queimando. Ela sentiu que havia algo se contorcendo debaixo de sua pele. Sentiu a sensação estranha e perturbadora de seu corpo sendo torcido secamente.

O quê?

Ela cambaleou e caiu. A bolsa se abriu, e seu conteúdo se espalhou. A mulher estendeu a mão para pegar as coisas dela, e gritou quando percebeu o que viu.

Manchas – manchas pretas, como placas senis, e várias delas, foram aparecendo. Sua pele rapidamente perdeu a umidade e começou a rachar.

Não pode ser... o que... o que está acontecendo?

A mulher pegou seu espelho e olhou para ele. Ela gritou novamente. Mas sua voz era rouca, e o que saiu foi apenas um sussurro.

Meu rosto, meu rosto...

Seu rosto, o qual momentos antes era tão bonito, estava mudando rapidamente diante de seus olhos. Rugas vincaram a sua pele, manchas a desfiguravam, e seu cabelo começou a cair.

Algo se contorceu na base de seu pescoço. Havia algo vivendo dentro de seu corpo. A mulher, tomada pelo medo, percebeu que seu corpo estava sendo tomado por outra coisa.

Não, me ajude... Mãe... Pai... Salvem-me...

Os rostos de sua mãe e de seu pai apareceram diante de seus olhos.

Mãe, Pai...

Seus dedos, estendidos em apelo, agarraram o ar. A inconsciência a dominou.

* * *

Karan se sentou no banco e soltou um suspiro, um dos muitos que ela havia soltado hoje. Ela sabia que suspirar era inútil. Poderia gritar, poderia se lançar no chão, mas a realidade não se mexeria. Não iria mudar. Então, pelo menos, ela poderia se manter desafiante. Ela iria levantar os ombros, manter a cabeça erguida, e não ter vergonha.

Isso foi o que ela havia pensado, mas logo depois, um suspiro escapou de seus lábios.

Eu não posso fazer nada. Eu sou impotente...

Karan tentou abrir as duas palmas das mãos viradas para cima em seu colo. Os raios suaves do sol de inverno brilhavam sobre as palmas das mãos brancas. Ela sentiu outro suspiro vindo.

Karan fechou a sua pequena padaria em um canto da Cidade Perdida hoje, e passou metade do dia andando por aí. Ela havia embarcado para visitar Safu, em sua casa e de sua avó, no bairro de luxo, Chronos.

Se os residentes eram reconhecidos pela cidade como sendo da categoria mais alta de um dos vários campos, eles eram autorizados a viver em Chronos, independentemente do sexo, educação, ou estrutura familiar. A cidade fornecia alojamento, bem como um ambiente ideal adequado para o crescimento e desenvolvimento de cada habilidade.

Quando seu filho Shion foi classificado com nível superior em inteligência nos Exames para Crianças de Dois Anos de Idade, Karan também havia recebido uma residência em Chronos. Condições de vida confortáveis, e uma vida inteira de segurança ― como uma elite, graças a seu filho que, provavelmente, eventualmente trabalharia trilhando o seu caminho até os altos escalões de Nº 6 ― Karan estava em uma posição que muitos invejavam e desejavam.

Uma posição que muitos invejavam e desejavam ― era uma vida de conforto, livre da necessidade de se preocupar das dores do amanhã, livre de fome ou de qualquer violência, uma vida onde o ambiente interior, segurança, higiene e condições físicas eram todas monitoradas.

Karan lentamente apertou sua mão. Seus dedos, que eram lisos e macios quando ela vivia em Chronos, tornaram-se ásperos e desgastados com o seu trabalho na Cidade Perdida, e sua pele, por vezes, rachava e sangrava.

Mas antes de perder Shion, eu era mais feliz do que quando eu estava em Chronos. Muito mais feliz.

Karan nunca tinha se ajustado bem a uma vida onde todos os aspectos dos minutos eram controlados e verificados, e tinha começado a sentir uma espécie de terror o qual seus nervos iam se desfazendo. Foi por isso que, quando Shion cometeu um tabu e engajou em um ato inacreditável de abrigar um fugitivo, ela sentia ― mais do que surpresa, mais do que desesperada ― uma sensação de alívio, mesmo. Ela ainda se deparou gostando disso.

É claro que ela sabia em sua mente racional que isso significava que todos os seus privilégios especiais seriam revogadas, bem como o direito de viver em Chronos, e que o caminho para o futuro de Shion seria fechado para sempre. Mas ela ainda gostava disso.

Ela queria louvar em vez de repreender as ações de seu filho, que foram tão tolas para alguém com tal nível de inteligência. Shion tinha jogado fora sua vida em Chronos tão facilmente. Ao contrário da sua vida estável e segura, ele havia escolhido o caminho de proteger alguém que havia fugido em seu quarto numa noite de tempestade. Foi um erro, mais do que qualquer outra coisa. Mas ele não estava errado em cometê-lo.

Isso significava que Shion também não tinha visto muito significado na vida em Chronos. Para ele, era algo que poderia jogar fora facilmente. Ele só tinha descartado o que era sem sentido para ele. E isso não estava errado, contudo.

"Mãe, me desculpe."

Em sua primeira noite de mudança para a Cidade Perdida, 12 anos, Shion abaixou a cabeça enquanto pedia desculpas à sua mãe.

"Desculpa por quê?"

"Porque... Mãe, você... você tem que sair e trabalhar agora."

O crime Shion foi ajudar a clandestinidade e auxiliar a fuga de um criminoso violento, chamado de VC na Nº 6. Pela relação à sua idade, ele havia sido poupado apenas com o exílio de Chronos. Mas, por sua vez, ele foi proibido de viver em qualquer outro lugar que não fosse a área da cidade de menor classe residencial da Cidade Perdida. Mãe e filho haviam deslizado a partir da crista do topo da montanha para o fundo do vale em apenas uma noite. Em primeiro lugar, eles tinham que pensar em um meio de vida para o futuro.

"Eu sinto muito."

Seu queixo desenhado, que ainda carregava um semblante de infantilidade, tremeu. Karan colocou o braço ao redor dos ombros de seu filho em um abraço firme.

"Que coisa estúpida de se dizer," ela disse suavemente. "Você não deve se desculpar por algo assim."

"Mas..."

"Shion, você é a mamãe aqui, ou eu? Eu acho que você misturou os papéis", ela o repreendeu na severidade fingida. "Sou muito mais resistente do que você imagina. Aposto que você não sabia disso, não é?"

"Não."

"Então, isso é algo que você pode esperar ansiosamente. Verá o quão resistente pode ser sua mãe em breve. Você vai se surpreender."

Em seus braços, Shion deu uma risada silenciosa.

Quantos anos haviam se passado desde que abraçara seu filho assim? Naquele dia, no quarto, escuro e úmido que uma vez fora uma despensa para materiais de construção, o que Karan sentia não era nem desespero nem dor. Era a alegria do calor de seu filho em seus braços, e o sentido de realização que somente a maternidade poderia trazer.

"Que tipo de pessoa era ele?"

"Hein?"

"A pessoa que você tomou sob sua asa. Eu estava me perguntando como ele era. Estou curiosa para saber... Mas você não irá me dizer, certo?"

O corpo de Shion encolheu para longe dela como se tivesse sido picado. Seu beicinho e suas bochechas coradas lhe pareceram tão engraçadas que Karan não poderia deixar de sorrir.

"Boa noite", Shion murmurou, e com a expressão ainda em seu rosto, trotou às pressas para fora da sala. Mesmo depois da porta raquítica ter se fechado com um ruído alto, Karan ainda estava sorrindo.

Ela se perguntava que tipo de menino era. Que tipo de garoto fez Shion deixar Chronos para trás? E por que esse menino atraiu Shion e o deslumbrou?

Ela queria saber, mas Shion provavelmente nunca colocaria isso em palavras. As crianças aprendiam a esconder seus sentimentos, ou encontravam algo que os faziam fazê-lo, e assim era como eles cresciam. Talvez ela nunca fosse capaz de puxar seu filho assim para perto de novo, sem hesitação.

Assim como um pássaro plenamente desenvolvido estende suas asas jovens para deixar o ninho, Karan sabia que ela teria de deixar Shion partir algum dia. Ela estava preparada. Poder ver o filho levantando voo, ela imaginava que seria uma coisa alegre como mãe. Então, a partir de amanhã, ela se serviria para o trabalho.

Fiel ao seu voto, durante quatro anos na Cidade Perdida, Karan trabalhou incansavelmente. Ela começou cozinhando pão e vendendo na rua, eventualmente, ela equipou um canto de sua residência em uma padaria, e aumentou a variedade de seus produtos. Seus pães acessíveis e bolos saborosos ganharam popularidade na Cidade Perdida, onde havia poucos luxos. O negócio cresceu, e sustentou a sua casa de dois.

Crianças pequenas apareciam para comprar bolinhos, sem fôlego e com moedas apertadas firmemente em seus pequenos punhos. Um trabalhador idoso vinha para comprar um bolo para dar de presente para seus netos. Havia clientes que iam à primeira hora na parte da manhã para comprar pães frescos.

Karan estava satisfeita com a sua vida na Cidade Perdida. Não era bravata, nem estava tentando enganar a si mesma. Ela não tinha um fio de ligação deixado com Chronos. Ela estava trabalhando e colhendo as suas recompensas. Era uma vida que havia construído com suas próprias mãos, com os pés firmemente plantados no chão. Ela não desejava nada mais.

Karan foi, à sua maneira, feliz - até que aquele dia chegou.

Um dia, Shion tinha simplesmente desaparecido. Ele havia partido pela manhã para seu local de trabalho no Escritório Administrativo do Parque Florestal, para nunca mais voltar para casa. Isso estava longe do tipo de despedida que havia se preparado para enfrentar como mãe. Esta não era uma forma natural de partir - era tão irregular, tão repentina, tão cruel. Ela percebeu o quão ingênua e sonhadora tinha sido ao pensar que iria ver seu filho levantar voo do ninho dos pais.

Ele foi levado para a prisão como suspeito de um crime violento, e foi encarcerado na Instituição Correcional.

Quando ela recebeu a notícia da Secretaria de Segurança, Karan experimentou toda a extensão da feiura do desespero. Se desesperar significava girar nas dobras da mais profunda escuridão. A escuridão deslizava em seu corpo, e entorpecia suas mãos e seus pés. Como irresistível pareceu ser a morte então.

Mas havia alguém que tinha dado a ela a esperança de viver. Nezumi. Ele entrou em contato com ela para deixá-la saber que Shion estava vivo e no Bloco Ocidental. Ele havia entregado uma curta carta de Shion para ela. Quão bela era a pequena luz que havia brilhado em meio a seu desespero escuro.

Mãe, me desculpe. Bem e vivo.

O rabisco apressado de poucas palavras se tornou um raio de luz que rasgou a escuridão, e tornou-se a voz que sussurrou vividamente em seu ouvido.

Karan abriu sua loja, e continuou a cozer o pão. Até que Shion chegasse em casa, ela cerraria os dentes e esperaria. Ela iria continuar esperando. Nezumi tinha trazido a força para que ela pudesse fazer isso. Às vezes, ela permanecia sobrecarregada com a ansiedade e a vontade de gritar, mas a vida diária de Karan foi gradualmente recuperando a sua estabilidade. Foi nessa época que Safu apareceu em sua porta.

Safu, como Shion, também foi reconhecida com o topo do rank por inteligência. Ela era uma menina cujos olhos grandes e negros se destacavam definidos em seu rosto, e também tinha um olhar honesto. Safu, com poucas palavras, mas com uma forte vontade, tinha falado de seu amor por Shion, e proclamou que ela estava indo para o Bloco Ocidental para vê-lo.

"Não importa para mim. Mesmo se eu nunca puder voltar aqui novamente, eu não vou me arrepender. Se Shion está no Bloco Ocidental, é para onde eu vou."

"Eu quero vê-lo. Eu quero ver Shion."

"Eu... eu o amo", Safu disse, sua voz tremendo. "Do fundo do meu coração, eu sempre, sempre, amei somente ele."

A menina de dezesseis anos de idade havia formado estas palavras, lutando para conter as lágrimas, e por suas simplicidade e estranheza, elas haviam tocado o coração de Karan ainda mais. Mas mesmo estando comovida, ela não poderia deixar Safu ir para o Bloco Ocidental. Como mãe de Shion, e adulta formada, ela tinha de parar ela.

Safu deixou sua loja, e Karan a seguiu pouco tempo depois. O que ela testemunhou foi o sequestro de Safu pelos funcionários da Secretaria de Segurança.

Já havia passado três dias desde então.

"Safu..." Ao final de sua sagacidade, Karan deixou outro suspiro escapar de seus lábios. Ela não fazia a menor ideia do que iria fazer a seguir. Ela tinha passado um memorando para o ratinho mensageiro. Isso era tudo o que havia feito.

Será que Nezumi salvaria a menina, como fez com Shion? Se ela já estivesse presa na Instituição Correcional, parecia ser quase impossível salvá-la. Se Shion descobrisse, e partisse para a Instituição Correcional para salvar Safu, talvez desta vez ele fosse realmente morto. Talvez eu tenha feito algo imprudente... Não havia nenhuma maneira de que Nezumi tomasse tal risco para salvar um completo estranho. Seus sentimentos se desfiaram em tiras pequenas, e fizeram seus dedos tremerem.

Karan passou estes últimos três dias quase sem dormir ou comer. Ela estava física e mentalmente exausta, ainda não era capaz de ficar parada, e tinha vindo até aqui, perto de onde Safu costumava viver.

O bairro de luxo de Chronos.

Vegetação abundante, e um ambiente tranquilo. Um sistema de segurança completamente funcional. Várias instalações, para cuidados médicos, entretenimento e compras eram fornecidas na íntegra, e os moradores poderiam usá-las livremente com apenas um cartão de identificação. Mesmo dentro da Cidade Santa de Nº 6, Chronos era de uma classe diferente, uma residência além dos sonhos mais longínquos.

Embora Karan tivesse sido uma residente daqui apenas a alguns anos atrás, desta vez havia sido impedida de entrar até mesmo nas ruas. Assim que ela pisou no caminho de pedras que levava a Chronos, os portões se fecharam.

Lamentamos muito. Devido a preocupações com a segurança, a área para além deste ponto é acessível apenas aos residentes de Chronos. Obrigada pela sua compreensão. Além disso, quem passa pelos portões sem uma licença de entrada para bairros residenciais especiais emitidos pelas autoridades está sujeito a remoção do local e punível pelo artigo 203 da Lei Municipal Cláusula 42. Repito ― Devido a preocupações com a segurança...

Uma voz suave feminina fluiu continuamente. A câmera de vigilância ligada aos portões brancos silenciosamente capturaram Karan enquanto ela estava com os pés enraizados no chão. Se ela permanecesse imóvel ali, a voz suave iria se transformar em um alarme estridente, e funcionários da Secretaria de Segurança entrariam em cena. Karan não tinha escolha a não ser virar as costas para o portão, morder o lábio, e voltar do jeito que ela tinha vindo.

E agora, em um canto do Parque Florestal, ela estava sentada em um banco sob uma árvore grande que havia perdido todas as suas folhas. Ela sentou-se, olhando distraidamente para as mãos.

"Shion... Safu..."

Por que sou tão impotente? Eu vivi por décadas, eu sou uma mãe, eu sou uma adulta, e eu não posso nem mesmo ajudar dois jovens que estão no meio de uma crise. Eu estive viva por tanto tempo, e agora...

Karan ergueu o rosto. Uma emoção muito diferente de medo ou ansiedade cruzou um canto de seu coração. Nos anos em que a Nº 6 se moldava e começava a amadurecer como uma cidade independente, Karan viveu em seu interior como residente.

Seis cidades foram fundadas neste mundo, construídas sobre os numerosos erros que a humanidade tinha causado. Era um lugar livre de guerra ou de fome, e as pessoas podiam viver aqui em paz e liberdade. Aqui, as pessoas poderiam viver, desde o nascimento até a morte, seguras, felizes e tranquilas. Era assim que deveria ser. Ela nunca havia pensado profundamente sobre isso. Todo mundo achava que enquanto permanecessem na Nº 6, seria prometido uma vida satisfatória.

Eles pensavam eles haviam pensado - eles foram ensinados a pensar.

Ela apertou os dedos e mordeu o lábio mais forte.

É tudo uma mentira. Tudo isso... é apenas uma aparência.

Ela sussurrou sem colocar em palavras. Embora estivesse à beira do inverno, ela estava começando a transpirar.

Eles eram divididos em incontáveis classes ​​por seus cartões de identificação para que não fossem nem mesmo livres para viajar dentro da cidade. Seu filho havia sido levado à força em custódia, e ela não era permitida nem mesmo fazer uma objeção formal. Ela nem podia confirmar a segurança de outra moradora que havia sido apreendida pelas autoridades. Onde estava a liberdade? Onde estava a paz, a segurança, e a vida de realizações? Em lugar nenhum.

Se isso for verdade, então o que estivemos fazendo todo esse tempo? Por que criamos uma cidade como esta? O que temos feito ― onde temos errado?

"Com licença..."

Karan foi trazida abruptamente de volta à realidade por uma voz.

"Desculpe. Eu te surpreendi?" Uma senhora idosa usando um pequeno chapéu azul-claro estava sorrindo para ela. Era um rosto que ela não conhecia.

"Ah... oh não, não é nada", disse Karan apressadamente. "Eu sinto muito, eu só estava um pouco perdida em pensamentos... Há alguma coisa...?"

"Você se importaria se eu me sentasse ao seu lado?"

"Nem um pouco, por favor."

A mulher, ainda sorrindo, abaixou-se em seu assento ao lado de Karan.

"O tempo está esplêndido, você não acha? Muito bom".

"Sim, está." O tempo era a última coisa em sua mente. Nesses últimos dias, ela não sentia nada na cor do céu, no som do vento, ou na vista das árvores.

"Você deve ter pensado que sou uma velhota bastante rude para de repente falar assim com você, não é?" a mulher disse suavemente.

"Não, não, claro que não. Eu só estava um pouco surpresa. Eu estava pensando sobre alguma coisa, e não tinha percebido que você estava aí."

A senhora empurrou os óculos redondos no nariz e seu rosto ficou sério.

"Vê, é exatamente por isso que decidi falar com você."

"Desculpe?"

A mulher estava usando um anel de prata. Seus dedos se estenderam para apertar em torno da mão de Karan.

"Por favor, eu não quero que você fique ofendida. Eu sei muito bem que estou sendo intrometida." Ela hesitou. "Mas você tinha um olhar tão desamparado em seu rosto, eu não pude ficar sem fazer alguma coisa."

Ah, Karan disse suavemente, com a mão ainda entrelaçada com a da mulher.

"E foi por isso que você tomou tempo para falar comigo?"

"Ah, sim. Lá estava você, em um dia tão bom, em uma tarde esplêndida, parecendo tão preocupada como nunca. Você estava sentada sozinha, hesitando no banco, com a cabeça baixa. Não tinha como eu ficar sem dizer alguma coisa."

A mulher idosa apertou os dedos em torno das mãos de Karan, e envolveu-as ternamente em suas próprias mãos.

"Por que uma mulher tão jovem e bela como você, está sentada com esta feição? Aconteceu alguma coisa?"

O par de olhos por trás dos óculos era suave e gentil. Acima de suas cabeças, os galhos de uma árvore de faia estavam balançavam.

"Obrigada por se preocupar. Acabei de passar um pouco de dificuldade..."

"Sim, eu entendo", disse a mulher com simpatia. "Houve um tempo em minha vida também que eu estava terrivelmente sobrecarregada com problemas." Seu semblante envelhecido, mas digno, nublou ligeiramente. O coração de Karan pulou por um instante.

Havia outras pessoas chocadas como ela? Havia outras pessoas que sofriam como ela? Havia outras pessoas que perceberam contradições na cidade também?

"Foi devastador, mesmo que tenha acontecido décadas atrás. Eu perdi o meu filho por uma doença."

"Nossa, uma doença", murmurou Karan.

"Sim, e ele tinha apenas três anos. Quando morreu, eu ainda me lembro de ter chorado incontrolavelmente quando vi o quão pequeno era o caixão. Você iria entender, não é, os sentimentos de uma mãe que perdeu seu filho?"

Karan tentou assentir, e parou o queixo a tempo. Shion ainda estava vivo. Eu não perdi meu filho ainda.

"Eu não consigo dizer que entendo...", ela disse lentamente, "mas você deve ter sofrido tanto."

"Sim. Palavras não podem descrever o que eu passei. Muitas vezes, pensei o quão melhor seria se eu estivesse morta. Mas agora, eu estou feliz por estar viva. Eu não poderia estar mais feliz, vivendo em uma cidade tão brilhante, cercada por meus filhos e netos."

A mulher sorriu, e lançou o olhar ao seu redor.

"Eu sempre quis que meu filho tivesse a experiência de crescer aqui. Não... se o cuidado médico de Nº 6 fosse naquela época o que é agora, tenho certeza de que ele não teria morrido."

Karan puxou sua mão de volta brevemente. O olhar da senhora idosa vagou no céu enquanto ela continuava a falar. Em seus lábios ainda aparecia um sorriso vago.

"Eu realmente acho que este lugar é uma utopia. Sabe, eu digo isso para os meus netos constantemente. Eu digo, você deve ser grato por ter nascido aqui. Eles só ficam duvidando, é claro... É quando eu lhes digo sobre Bloco Ocidental".

"Bloco Ocidental?" O coração de Karan se acelerou novamente, por uma razão completamente diferente desta vez.

"Sim, o Bloco Ocidental. Você sabe que tipo de lugar é?"

Karan se inclinou para frente. Ela queria saber. O Bloco Ocidental era onde Shion estava, e ela queria saber dos detalhes, que tipo de lugar que era.

"Eu não tenho a menor ideia. Por favor, me diga."

A senhora franziu a testa e balançou a cabeça.

"Eu não sei muito sobre isso. Mas meu sobrinho trabalha no Serviço de Controle de Acesso, e eu ouço histórias dele às vezes. É um lugar horrível, eu ouço."

Karan conteve seu coração impaciente, e murmurou em concordância. Ela queria incentivar a senhora para continuar sua história.

"A higiene de lá é absolutamente atroz, e eu ouço que as crianças têm que beber água contaminada."

"Contaminada..."

"Sim, não é horrível? Eu sinto tanta pena deles, meu coração dói. Comparado a isso, as crianças desta cidade não poderiam estar mais feliz. Você não concorda?"

"O que? Quero dizer... sim, mas..."

"É por isso que lá eles são atormentados com doenças contagiosas o tempo todo, que nós nunca poderíamos imaginar dentro da Nº 6. O crime é uma ocorrência diária, e a segurança é quase inexistente. Os moradores do Bloco são todos ignorantes, selvagens, e até mesmo matam um homem sem pestanejar se isso significar dinheiro para eles. Recentemente, eu soube que um grupo de homens violentos tentou forçar o caminho para o Serviço de Controle. Naturalmente, já que seu sistema de segurança é perfeito, eles foram presos antes mesmo de colocar o pé lá. É assustador, de verdade."

A senhora colocou os braços em volta de si e estremeceu.

"Meu sobrinho me disse que o lugar é como um inferno, o ambiente mais vil, o pior possível. Deve ser sempre tão diferente daqui. Devemos nos contentar, também, por sermos moradores de Nº 6... Não apenas nossos filhos. Eu não tenho medo de contar aos meus netos como sortudos eles são como habitantes de Nº 6, em comparação com o Bloco Ocidental."

O Bloco Ocidental. O ambiente mais vil, o pior possível.

Karan fechou os olhos. A caligrafia de Shion flutuou em sua mente. Era um rabisco simples, e apenas uma linha. Era uma mão ligeiramente inclinada, distintiva.

Mãe, me desculpe. Bem e vivo.

As cartas eram cheias de energia. Eram escritas que irradiavam o vigor juvenil para a vida. Ele estava vivo no Bloco Ocidental. Sempre tão forte, neste instante, ele continuava a viver.

"Aconteceu alguma coisa?"

Ela abriu os olhos ao ouvir as palavras da senhora.

"Está se sentindo mal? Devo contatar o Departamento de Saúde e Higiene?"

Karan balançou a cabeça lentamente.

"Eu não acho."

"Perdoe-me?"

"Eu não acho que o Bloco Ocidental é o mais vil, nem o pior."

"Ora, o que..."

"E eu não acho..."

Eu não acho que esta cidade é uma utopia, também.

Assim quando ela estava prestes a dizer essas palavras, houve um som, uma onda de asas batendo, e um objeto preto veio voando para ela de cima.

(Parte B)

A mulher idosa deu um pequeno grito.

"Céus, um corvo!"

Um corvo com asas negras brilhantes havia pousado aos pés de Karan.

"Como perturba", disse a mulher, inquieta. "Sempre teve corvos no Parque Florestal?" Ela franziu a testa.

"É um ambiente natural afinal de contas. Há corvos, embora provavelmente não muitos deles", respondeu Karan. O corvo levantou voo novamente. Ela pensou que ele iria voar para longe, mas em vez disso, ele bateu suas asas bruscamente e desceu outra vez sobre o ombro de um homem.

Foi Karan que dera um grito de surpresa desta vez. Com tudo isso, ela não havia notado que tinha alguém por perto. Durante sua conversa com a mulher idosa, houve outros transeuntes: um homem idoso com o seu cão, uma menina inclinando-se para pegar uma folha colorida, um grupo do que parecia ser estudantes - mas ninguém com um corvo em seu ombro. Quando ele tinha chegado tão perto? Há quanto tempo ele estava lá? Era um tanto enervante.

O homem era alto e magro, vestido com uma jaqueta marrom-claro com calças da mesma cor. Ele tinha uma cabeça cheia de cabelos, mas com manchas cinza que se destacavam. O bigode também era salpicado com cinza. Além do fato de ter um corvo empoleirado em seu ombro, ele parecia como um homem de meia-idade comum. E ele era um completo estranho.

Mas o homem estendeu as duas mãos em direção à Karan com um sorriso no rosto. Ele ainda mencionou o nome dela enquanto falava.

"Karan, eu senti sua falta."

"Hein?"

Antes que ela pudesse dar uma resposta decente, o homem agarrou Karan pelo braço e a puxou para ele. A estatura pequena de Karan se aninhou facilmente nos longos braços do homem quando a cercaram. Ele a estava segurando tão apertado que ela não conseguia respirar.

"Perdoe-me", ele implorou. "É tudo culpa minha. Eu nunca vou fazer algo que vai fazer você se sentir mal novamente. Prometo. Você vai ser a única que eu amarei para o resto da minha vida."

"Desculpe, o que?" Karan gaguejou em alarme. "O que você está fazendo?"

"Eu não percebia o quanto eu a amava até você se for. Por favor, estou implorando. Diga que vai ficar de novo comigo, Karan".

Ora, ele enlouqueceu.

Seu primeiro pensamento foi de que ele estava fora de si. Mas se alguém estivesse louco, não seria capaz de andar nas instalações da cidade. Assim quando o pensamento cruzou sua mente, ela notou os batimentos cardíacos do homem. Eles estavam tão perto um do outro que ela pôde sentir seu coração batendo em seu próprio peito. Batia com um ritmo constante. O homem não era nem louco, nem excitado com nervosismo. Ele estava despejando essas linhas clichês muito fria e calmamente.

"Eu não acredito nisso. Já basta!" Karan enfiou os braços a sua frente e empurrou o homem. "Já basta dessa sua fala mansa. Estou te deixando. Nunca mais quero vê-lo novamente."

"Karan, eu te amo. Estou muito apaixonado por você, de verdade." O corvo no ombro do homem crocitou estridentemente, como que para zombar deles. O homem limpou a garganta sem jeito e inclinou a cabeça para a senhora idosa que estava olhando para eles com a boca escancarada.

"Lamento muito por ter que mostrar uma cena tão feia."

"Oh... ah, você não precisa...", a mulher disse vacilando. "Então, er, vocês dois são...?"

"Nós somos noivos", respondeu o homem. "Eu fui um idiota, e lhe causei muita dor. Eu só queria pedir desculpas a ela e começar de novo."

"Certo. Bem, isso é..."

"Nós temos algumas coisas importantes para discutir, então se você nos dá licença..."

O homem agarrou o braço de Karan e ela foi meio que arrastada para longe de cena. O corvo crocitou alto novamente. Eles pegaram uma rota de volta por trás do Posto do Parque – antigo local de trabalho de Shion – e saíram pela parte de trás do parque. O homem não pronunciou uma única palavra durante todo o caminho. Karan também se manteve em silêncio enquanto era puxada pelo braço.

Havia um carro branco estacionado no meio-fio. Era um modelo muito antigo, raramente visto nas ruas da cidade. O homem abriu a porta e falou sem qualquer hesitação.

"Entre"

"Não, obrigada."

"Entre", repetiu o homem. "Tem algo que eu quero falar com você." Com um grande swing de suas asas, o corvo voou ruidosamente do ombro do homem para o banco de trás do carro. Então, ele olhou para Karan e empurrou sua cabeça, como se a convidá-la a seguir.

"Ele parece ser um pássaro inteligente", observou Karan.

"Ele é um pouco inteligente demais para o seu próprio bem." O longo tom sofredor do homem contou quantos problemas a ave devia ter-lhe causado. O corvo abriu bem o bico e fez um som cacarejante. Parecia que estava rindo. Karan encontrou-se rindo um pouco também. Só depois de rir ela percebeu o quanto tinha ficado nos últimos dias sem rir, e nem mesmo sorrir.

Karan continuou sustentando o olhar do corvo enquanto deslizava para o banco do passageiro. O carro híbrido deslizou para frente silenciosamente. Quando imergiram na estrada, o homem pressionou o botão da direção automática e tirou as mãos do volante.

"Você sabia? Uma nova lei está sendo posta em prática, e não seremos mais permitidos usar gasolina começando já no ano que vem. Isso significa que não poderei mais conduzir este carro."

"Eu ouvi dizer que os combustíveis fósseis quase se esgotaram, exceto o carvão", disse Karan. "Eu acho que nós não temos outra escolha a não ser mudar para outra fonte de energia."

"De quem você ouviu isso?"

"De quem...? Bem, isso foi anunciado na política de energia da cidade..."

"Exatamente. Um anúncio das autoridades. O discurso do prefeito sobre sua política administrativa, palavra por palavra." O homem contraiu o bigode em um sorriso cínico. "Ninguém o questiona. Todo mundo aceita como é tudo o que a cidade anuncia, concordando sem pensar. Deus, todos nesta cidade maldita são tão obedientes e ingênuos. Duvidar de seus superiores é a última coisa em suas mentes. Eles provavelmente nem podem se imaginar fazendo isso, nem querem. Suspeitar toma energia. É mais fácil apenas se sentar e dizer, sim, sim, eu concordo, com tudo."

Karan lançou um olhar de esguelha para o rosto do homem.

Então está dizendo que você está suspeitando da cidade? Em vez de concordar obedientemente, você diz que está parando para questionar isso?

Ela resistiu ao impulso de perguntar a ele. Não era aconselhado dizer coisas tão imprudentes para alguém que ela mal conhecia. Tinha que ser cautelosa como um herbívoro encolhido.

Karan se ergueu e tentou mudar o rumo da conversa.

"Posso lhe fazer uma pergunta?"

"Manda."

"Quem é você, e como você sabe o meu nome? O que te fez ir tão longe a ponto de fazer uma encenação meia-boca para me trazer aqui?"

"Meia-boca é um pouco árduo, não?" disse o homem com ironia. "Eu acho que encenei muito bem. Você interpretou muito bem, também. É a essência do Prêmio de Melhor Atriz".

"Ora, obrigada", disse Karan agradavelmente. "O papel da heroína romântica não é um que eu interpreto muitas vezes nessa idade."

"Bem, eu não vejo por que não. Você é jovem e bonita o bastante, muito mesmo. Você pode interpretar qualquer heroína que quiser, Karan".

"Onde você aprendeu o meu nome?"

"Pela minha sobrinha."

"Sobrinha?"

"Diz que é uma fã sua", disse o homem. "Ou eu provavelmente deveria dizer, uma fã de seus muffins."

Um rosto pequeno e redondo flutuou na mente de Karan – a menina que sempre chegava à loja com moedas apertadas em seu punho.

"Senhora, você não vai fechar esta padaria, não é?" – A menina que havia mostrado uma preocupação sincera por Karan. Ela, junto com palavras e olhares de encorajamento de outros, a apoiou em seus dias negros após Shion ter sido levado sob custódia pela Secretaria de Segurança.

"Lili".

"É essa mesmo", afirmou o homem. "A adorável Lili. Ela é a filha de minha irmã mais nova. Diz que gosta de seus muffins de queijo cem vezes mais do que os desse velho tio aqui. Ela me disse isso na última vez que a vi."

"Ah, querida."

"Eu fiquei chateado, então pus meus próprios dois centavos nestes seus muffins para dar uma mordida para provar..." A boca do homem fez um movimento de mascar. Ele levou a ponta de sua língua para fora e lambeu os beiços.

"Eles eram bons, não eram?"

"Eles eram. Eu odeio admitir isso, mas eles estavam deliciosos. Acho que não pode se fazer nada ao fato de Lili gostar mais deles do que os de um velho tio que só aparece de vez em quando."

"Bem", disse Karan, "pelo menos agora eu sei que você é tio de Lili, e que você aprendeu meu nome pela sua adorável sobrinha."

"Obrigado pela compreensão. Você achou que eu era alguém suspeito, por acaso?"

"Eu ainda acho. O que foi aquela atuação? Você queria tanto assim me tirar daquela admirável senhora?"

"Pode apostar. Ela era perigosa."

"Perigosa?"

O carro virou lentamente. Ele estava indo para a Cidade Perdida. Parecia seguro acreditar que este homem pretendia levá-la para casa.

O carro velho voltou pelo mesmo caminho em que ela tinha tomado esta manhã, imersa em pensamentos. Ela havia tirado um dia de folga da padaria hoje. Lili estaria decepcionada?

"Você estava a um fio perto de expressar o seu descontentamento para com a cidade. Estou certo?"

Eu não acho que esta cidade é uma utopia.

De fato, ela estava prestes a falar essas palavras. Mas havia sido interrompida naquele momento pelo som de asas batendo.

"Isso foi perigoso?"

"Há uma possibilidade de que poderia ter sido. O que você teria feito se essa senhora decidisse que você era um problema?"

"Problema? O que você quer dizer?"

"O que eu estou dizendo é que ela teria ido para as autoridades e dito que a mulher sentada no banco do parque tem uma insatisfação com a cidade."

"Você quer dizer que ela ia secretamente me entregar?"

"Acha difícil de acreditar?"

"É claro", desabafou Karan. "Isso é um absurdo. Aquela senhora estava preocupada comigo. Falou-me com bondade."

"Exatamente, porque você parecia bem deprimida. Nesta utopia, na Nº 6, todo mundo tem que ser feliz. Mesmo pessoas seriamente doentes ou feridas têm quase todas as suas dores removidas por tecnologia médica de ponta. Pessoas que estão incomodadas, ou que meditam, ou que se perdem em pensamentos – esses tipos de pessoas não existem. Elas não estão autorizadas a existir."

"Isso não é..." Karan protestou. "Quero dizer, há sempre pessoas no banco que parecem estar perdidas em pensamentos."

O homem sacudiu a cabeça e tocou num canto do pequeno monitor do painel do carro que exibia as informações da estrada. Dígitos pequenos que expressavam as horas apareceram na tela.

"Você lembra por quanto tempo você ficou sentada naquele banco?"

Karan olhou para os números e balançou a cabeça. Ela havia se esquecido completamente do tempo. Ela tinha se sentado naquele banco, contemplando, lutando com seus pensamentos, e fora incapaz de encontrar uma resposta. Ela havia perdido a vontade de se levantar e de continuar caminhando.

"O prazo é de 30 minutos", o homem murmurou.

"Hein?"

"Os cidadãos são permitidos a ficarem aéreos por trinta minutos, no máximo. Se eles ficam pensando profundamente ou se perdem em pensamentos por mais tempo do que isso, as bandeiras se levantam e alguém aparece para checar."

"Então você está dizendo... que aquela senhora se aproximou de mim para investigar, porque eu estava pensando por um tempo muito longo?"

"Eu não poderia dizer", respondeu o homem. "Tudo o que sei é que tinha essa possibilidade. Talvez ela fosse apenas uma velhinha que pensou estar sendo gentil e generosa... Do tipo que não se importa em fazer algo de bom, desde que não seja um problema para elas."

"Que maneira horrível de dizer."

"É a verdade. Esta cidade está repleta desse tipo de autoproclamados bons samaritanos. Há muitos deles, o que torna muito difícil distinguir os que são realmente bons. Ainda assim, se aquela senhora fosse um desses, não seria um problema. Mas e se ela fosse uma informante? Isso teria sido um triz para você, não é?"

Karan não o respondeu. Ela não queria suspeitar da senhora idosa. Ela queria acreditar que a mulher tenha sido uma alma caridosa que havia falado com ela, uma estranha, por causa duma preocupação genuína.

Ela tinha olhos tão suaves, sorrindo por trás de seus óculos...

Karan desenhou uma respiração afiada.

"Aqueles óculos..."

"Você finalmente percebeu? Eles eram um pouco grandes e desajeitados para uma senhora sofisticada como ela, você não acha? Talvez eles fossem construídos com um microfone e um dispositivo de gravação."

Karan fechou os olhos e soltou um longo suspiro.

Trinta minutos era o seu limite de tempo. Ela não era permitida mais que isso.

Para contemplar profundamente, para lutar com os pensamentos, para mergulhar no reino da mente, e de lá, encontrar sua própria resposta – tudo isso era proibido.

A mesma pergunta brotou dentro de seu peito novamente.

O que estivemos fazendo esse tempo todo? Por que criamos uma cidade como esta? Onde temos errado?

Ela engoliu seu suspiro. Ela se sentia exausta, e sentia como se a sua vontade mental se retaliasse, e a sua força para ficar com raiva tinha toda se murchado dentro dela.

"Eu provavelmente fui monitorada pelas autoridades esse tempo todo", disse ela calmamente. "Eles devem ter me mantido sob vigilância, e não apenas porque eu estava perdida em pensamentos. Eu sou a mãe de um assassino condenado, afinal de contas."

"Não é nada disso", disse o homem fortemente. "Não se deprima." Seu tom era como o de um pai repreendendo a filha. "Você realmente acha que seu filho é um criminoso como as autoridades lhe disseram?"

Karan levantou o olhar do chão e balançou a cabeça. Ela não acreditou, nem por um instante, que seu filho havia assassinado alguém.

"Isso também é algo que eu ouvi de Lili", continuou o homem. "Ela diz que seu filho – Shion o nome, certo? – Diz que ele é muito bom. Quando ela quebrava seus brinquedos, ele sempre os consertava para ela. Diz que gosta dele muito mais do que desse tio aqui, embora não tanto quanto os seus muffins. Ela queria saber se ele tinha uma namorada."

"Ela queria? Ah, querida", disse Karan, com uma sugestão de um sorriso em sua voz.

"Insolente, hein? Agindo mais velha que sua idade. Mas por tudo o que é mais sagrado, ela não consegue perceber o quão atraente seu próprio tio pode ser. Não sei como minha irmã a criou para ela ficar assim."

"E se eu pedisse a Lili, será que eu conseguiria descobrir o nome deste tio atraente e o que ele faz?"

O homem riu das palavras de Karan e bateu levemente no painel novamente.

"Só Deus sabe o que pode acontecer se você perguntasse à Lili. Ela provavelmente diria que o tio Yoming é um homem estranho que perambula por sua casa de vez em quando, come até que esteja satisfeito e foge do lugar logo depois."

"Yoming. Esse é o seu nome."

"É. E este é o meu trabalho."

O painel se encheu de imagens de pães, bolos e outros pratos leves, seguido por informação nutricional e conteúdo calórico, preço e nome das lojas que lhes serviam.

"Eu produzo um feed de notícias eletrônico para todos os tipos de entretenimento nas regiões, todas, exceto Chronos. O que não é muito, quero dizer, são restaurantes e eventos sazonais que é o que eu mais faço. Já que a cidade supervisiona todas as peças de teatro, concertos e publicações impressas, não há muito que se possa escrever sobre outras coisas além de comida e bebida. Trabalhar na Secretaria de Alimentos está fora de questão, de maneira nenhuma eu poderia entrar naquele lugar – Então é só coisas como onde comer bons bolos, ou bons lugares para almoçar, ou coisas assim. Eu faço o melhor que posso. É realmente muito popular. Quero dizer, afinal, na Cidade Perdida, não há muito a fazer para se divertir além de comer ou beber, por isso todos são ávidos por informações."

"Então, por acaso, você está..."

"Exatamente", o homem disse energicamente. "Eu quero produzir uma matéria sobre os pães e bolos de sua padaria, com um foco de luz sobre os muffins. Você vai me deixar entrevistá-la?"

"Tem certeza de que quer escrever sobre minha loja?" Karan disse preocupada. "As autoridades não vão virar o olho para você também?"

"Eu não me importo se as autoridades virarem o olho para mim, ou se quiserem sumir comigo, ou qualquer outra coisa. Eu não posso deixar que esses deliciosos muffins fiquem sem publicidade." Ele fez uma pausa. "Embora Lili provavelmente não fosse ficar muito feliz se uma multidão de clientes chegasse e limpasse seus muffins. Tio, você nunca faz nada certo, é o que ela provavelmente diria."

"Nunca", sorriu Karan. "...Mas minha padaria já foi noticiada antes, com o incidente de meu filho e tudo mais. As pessoas da Cidade Perdida ainda podem vir... mas e as pessoas de outras áreas?"

Yoming encolheu os ombros e apagou a imagem na tela do painel de toque.

"Karan, as pessoas desta cidade não são muito boas em lembrar as coisas." Sua voz era rouca e difícil de entender.

"Elas se esquecem de tudo num piscar de olhos. Não importa o quão sério for um incidente. Já passou. Além do mais, elas nem mesmo veem a possibilidade de ter algo debaixo dos panos. Lembrar, duvidar, contemplar. É difícil para elas fazerem isso. Mas nem precisam fazer... o dia ainda continua, e pacificamente. É um lugar terrível, este."

As palavras de Yoming soaram tanto como uma crítica aberta da condição atual que Karan se encontrou se endireitando na cadeira. Se esta conversa atingisse ouvidos forasteiros, seria mais aterrorizante do que qualquer outra coisa. Como se percebendo a agitação de Karan, Yoming relaxou seu rosto em um sorriso e acenou com a mão despreocupadamente.

"Não se preocupe. Este carro é equipado com um dispositivo anti-vazamento. Mas quem sabe, talvez todos os carros novos que forem fabricados no próximo ano terão gravadores instalados dentro deles."

"Yoming, por que você critica tanto a cidade? Como você pode ter tanta certeza de que este é um lugar assustador?"

Depois de um breve silêncio, Yoming tapeou a tela de toque três vezes.

A imagem de uma mulher jovem, de rosto delicado, apareceu. Um bebê estava dormindo em seus braços, embrulhado num cobertor branco. O sorriso da mulher estava preenchido com a alegria da maternidade. Seu cabelo castanho, cortado em um bob curto, emoldurava seu rosto alerta e enérgico, e o seu sorriso gentil era memorável.

"Minha esposa. Esse é o nosso filho em seus braços. Esta foto é de muito tempo atrás."

"Aconteceu alguma coisa com a sua...?"

"O mesmo que com o meu filho, ela saiu de casa um dia e nunca mais voltou. A única coisa de diferente do seu caso é que ela desapareceu junto com o nosso filho, e que ela foi dada como uma pessoa desaparecida."

A respiração de Karan ficou presa na garganta. A forma calma e nivelada de Yoming falar fez o fato ainda mais chocante.

É o mesmo que Shion... Existe alguém que já passou pela mesma coisa...

"Ela era uma professora de escolinha", Yoming disse calmamente. "Ela ensinava arte e música para crianças como Lili. Dizia que nenhum outro trabalho poderia adequá-la melhor. Ela sempre dizia às crianças a valorizar o que sentiam em seus corações. Quer seja para fazer um desenho ou para escrever uma canção, dizia que o mais importante era olhar diretamente para seus sentimentos e emoções e expressá-los verdadeiramente."

"Isso é lindo", Karan respirava. "Eu não acho que eu tenha ouvido tantas palavras tocantes há muito tempo."

"É. Era uma mulher admirável, tocava muita gente. Tinha convicções firmes, e ensinava suas crianças com base nelas. Mas começou a receber cada vez mais advertências severas e orientações do Departamento de Educação... eles diziam-lhe para ensinar as crianças seguindo o livro estritamente. O livro que eles tinham publicado, é claro. Naturalmente, ela resistiu, e foi demitida do local de trabalho. Ela teve sua licença revogada também, por ser considerada como imprópria para o ensino. Acho que nesse tempo houve muito poucos professores como ela, que foram removidos de seus postos de trabalho. Você não sabia, não é?"

"Eu não fazia ideia... eu nem me lembro..."

"Não precisa se vergonhar. É natural que você não saiba," Yoming disse severamente. "Isso não foi noticiado. As autoridades já estavam começando a manipular informações nesse tempo. Era daí onde brotavam as sementes de um sistema que, eventualmente, evitaria que algo inconveniente fosse divulgado como uma informação tangível".

O carro já estava entrando na Cidade Perdida. Este distrito sempre foi o menos mantido e o último a ter suas instalações desenvolvidas, e era uma área de casual miscelânea. Em meio a seu zumbido inquieto, Karan se viu suspirando aliviada.

"Ela planejava construir uma escola para as crianças com outros professores exilados... estava tentando ensinar em um lugar onde as autoridades teriam menos influência Ela saiu para uma reunião para discutir os planos para a escola naquele dia... e nunca mais voltou."

Yoming cerrou o punho e bateu no volante. O corvo gritou melancolicamente no banco de trás.

"Eu nunca vou esquecer", disse ele com os dentes cerrados. "Não importa o que aconteça, eu nunca vou esquecer. Vou manter isso vivo em minha memória. O tempo estava nublado de manhã e parecia que iria chover a qualquer minuto. Eu deveria ter ido ao dentista porque minha dor de dente estava ficando insuportável. Eu estava de folga naquele dia, então eu deveria estar cuidando de nosso filho em casa. Mas ela o levou junto para que eu não precisasse fazer isso. Ela o colocou em um carrinho de bebê com uma capa azul e ela estava vestindo um casaco bege. Havia pequenas flores bordadas no peito. Nós prometemos que, se minha dor de dente parasse no período da tarde, e não chovesse, nós iríamos para o Parque Florestal para dar um passeio. À porta, nos beijamos e dizemos adeus. Beijei o meu filho no rosto, também. Ele riu e chutou seus pés. Ele estava vestindo meias brancas minúsculas. Havia padrões de flores costurados sobre eles que também eram roxas. Ainda me lembro. Ainda não me esqueci de um único detalhe. Eu nunca poderia esquecer."

"Yoming..."

O carro parou.

Você chegou ao seu destino, anunciou o navegador de carro. Eles estavam em frente à padaria de Karan.

"Eu sinto muito, eu fiquei um pouco agitado", Yoming disse. "Rude de minha parte, já que nós acabamos de nos conhecer."

"Não" Karan disse suavemente. "Obrigada por me trazer para casa."

Ela fez uma pausa, hesitante. Perguntou-se se seria certo dizer-lhe sobre Safu. Ela se notou incapaz de decidir se podia confiar plenamente no homem à sua frente.

"Senhora!"

Alguém bateu em velocidade total na cintura de Karan quando ela saiu do carro.

"Ora, Lili".

"Senhora, por que tirou um dia de folga hoje? Você está doente?"

Yoming falou de dentro do carro.

"Lili, ela está bem. Essa senhora aqui só tinha algumas coisas para fazer. Ela vai assar muffins para você amanhã, tenho certeza."

Lili piscou e sua boca se abriu.

"Ei, é você tio Yoming? Você veio para jantar de novo? Por que você sempre vem quando temos frango e cogumelos?"

"Veja, é isso o que eu recebo. Horrível, não é?" Yoming sorriu ironicamente, e inclinou-se para olhar para o rosto de Karan. "Se puder, abra sua padaria novamente amanhã. E permaneça nela. Você tem um trabalho a fazer, Karan".

"É claro."

"Nunca se desespere. Você não pode desistir, não importa o que aconteça. Você pode perder tudo somente quando você se desesperar e pensar que não há mais nada que se possa fazer. Desistir pode parecer mais fácil nessa situação..."

Karan colocou uma mão em cima da cabeça de Lili e assentiu com firmeza.

"Não, eu não vou desistir. Tenho minhas responsabilidades."

"Responsabilidades?"

"Sim, eu sou uma adulta crescida, e vivi ao lado dessa cidade por um longo tempo. Eu fiz o meu melhor para viver decentemente. Mas se o resultado disso é o que esta cidade se tornou... então nós cometemos um grande erro em algum lugar ao longo do caminho. Eu não tenho certeza em onde nós fizemos isso... mas eu sei que eu tenho que assumir a responsabilidade por isso. Não podemos deixar que crianças como Lili sofram por um crime que não cometeram, certo?"

"Shh...!" Yoming levantou um dedo de advertência. Uma jovem em uma bicicleta passou pelo carro. "Eu entendo como você se sente, mas não diga esse tipo de coisas em voz alta aqui. Você não sabe quem pode estar ouvindo."

Lili riu e puxou a saia de Karan.

"Tio Yo é sempre cauteloso. Ele é um gato assustado, mesmo sendo adulto."

"Quando você crescer, Lili, vai começar a ver como as coisas realmente são assustadoras."

"Bem, eu acho que o que é mais assustador é a mamãe quando ela está com raiva", disse Lili acompanhando o assunto com naturalidade. "Ela é muito assustadora, sabe. Papai diz que a mamãe é quem mais assusta ele também."

"Ah, isso é verdade", respondeu Yoming solenemente. "Eu concordo, sua mãe pode ser muito assustadora."

Karan começou a rir. A mãe de Lili muitas vezes repreendia seus filhos em um tom tão potente que era difícil imaginar que vinha de um corpo esguio.

"Lili, Yoming, e Sr. Corvo, também... se vocês tiverem tempo sobrando, o que vocês gostariam para um lanche? Eu não posso servi-los muffins, mas eu poderia preparar algumas panquecas."

"Sério? Yey!" Lili apertou a mão de Karan com força. Suas mãos estavam macias. O coração de Karan inchou com a demonstração de amor.

Eu não posso deixar que essa menina passe pelo que Shion e Safu passaram. E eu tenho que salvar os dois, de alguma forma. Sim... temos uma responsabilidade a cumprir.

Seus olhos se encontraram com os de Yoming. Eles olharam para ela, tinham a cor das penas do corvo. Karan assentiu e abriu a porta.

"Lili, entre. Você também, Yoming. Ainda tenho coisas para falar com você."

Só então, uma pequena mancha preta cruzou sua visão. Ela ouviu um zumbido de asas.

"O que há de errado?" Yoming seguiu o olhar de Karan e olhou de relance quando saiu do carro.

"Foi um inseto... Eu pensei que tinha visto uma abelha voando aqui."

"Abelha? Pode estar quente ainda, mas eu não acho que elas ainda estejam em atividade."

"Eu acho que você está certo."

Era inverno. Não havia maneira de abelhas estarem voando por aí. Mesmo se houvesse, provavelmente fosse um único inseto que tinha vagado ao relento, atraído pela luz solar e pelo calor. Mas ela não pôde afastar a sensação de mau agouro em seu coração.

"Senhora?"

Lili olhou para ela de baixo enquanto permanecia parada na porta.

"Ah, desculpe por isso. Vamos entrar."

Meus nervos apenas estão no gume. Eu devo estar cansada. Karan tranquilizou-se e abriu a porta. Ela entrou e balançou a cabeça violentamente, como se afastando do som vibrante que havia se alojado em seus ouvidos.

Leia o capítulo 3.

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Notas

  1. Neruda, Pablo. "VIII: Abelha Branca." Vinte Poemas de Amor e uma Canção do Desespero . Trans. William S. Merwin. New York: Penguin Books, 2004. (http://www.psb40.org.br/bib/b329.pdf) [Voltar]

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