quinta-feira, 29 de setembro de 2011

[Novel] No. 6 Volume 2 Capítulo 1

No.6 volume 2

Agora traduzindo do blog 9th Avenue.

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Capítulo 1 – Vida e Morte

Tu vives; perante os descontentes, justifica-me e à minha causa.
- Hamlet, Ato V Cena II

Shion fechou o livro. Ele podia ouvir o som da chuva.

Este quarto subterrâneo era desprovido da maioria dos sons externos. Mas por alguma razão, os sons do vento e da chuva sempre pareciam ecoar através das paredes.

Um rato correu para cima da perna de Shion e empoleirou em seu joelho. Ele contraiu os bigodes e esfregou as patas da frente, bem como um pedido.

"Você quer que eu leia este livro para você?"

Cheep.

"Você realmente gosta tragédias, não? Por que não escolhe algo mais divertido?"

O rato olhou para ele e piscou seus olhos cor de uva. Shion ajustou-se na cadeira e cruzou as pernas, com o rato ainda em seu joelho.

A cadeira era uma parte da mobília fina.  Era evidente a partir de sua construção robusta e os padrões delicados esculpidos atrás da cadeira.  Mas agora, ela era usada e velha, a cor estava descascando em vários lugares, e a almofada havia desaparecido tanto que era impossível dizer qual a cor que tinha antes.  Ainda assim, era uma das poucas peças de mobília que esta sala tinha.  Uma semana atrás, Shion desenterrou isso entre os livros que cobriam dois terços do espaço do lugar.

"Pode haver um tesouro ainda maior escondido nestes livros, se você arrumar eles"  Shion tinha um tom sério, mas Rato zombou.

"Por que você não se preocupa com ganhar um pouco de força antes de pensar em coisas estúpidas como esta? Você é um garotinho que provavelmente nunca teve que fazer qualquer trabalho físico desde o dia em que você nasceu"

"Eu era encarregado da limpeza no parque. Tinha que fazer trabalho físico o tempo todo"

Os ombros do Rato se curvaram.  Sua voz tinha um tom de desprezo.

"Limpeza? A limpeza conta como trabalho físico na nº 6? Tudo o que você tinha que fazer era operar os robôs que faziam a manutenção e a limpeza. O trabalho físico, garotinho,..."

Rato agarrou o braço de Shion e apertou seus dedos com tanta força que ele estremeceu.  Os dedos de Rato, magro à primeira vista, tinha uma pegada surpreendentemente forte.

“... É com estes braços, estas pernas, e colocando as costas nisso. Usando o seu próprio corpo. Lembre-se disso"

O modo cortante e sarcástico de falar do Rato não incomodava muito Shion depois que ele se acostumou a isso.  Na sua dureza e cinismo, havia muitas vezes uma verdade que não podia deixar de concordar com, e muitas vezes saia mais convencido do que ofendido.  Era verdade, o trabalho que Shion fez na Cidade Santa Nº 6 era apenas tocar nas teclas do painel de controle.  Ele nunca tinha experimentado algum trabalho que fez ranger seu próprio corpo.  Ele não sabia como era ficar úmido de suor, ter a pele de suas mãos com bolhas, seus músculos doerem de exaustão; ficar insuportavelmente faminto, e cair em um sono confortável depois de um dia de trabalho.

Ele nunca tinha experimentado isso nem uma vez.

"É por isso que eu vou fazer isso", disse determinadamente Shion, apontando para as montanhas de livros empilhados por toda a sala.  "Vou organizá-los, classificá-los, e arquivá-los em ordem. Se isso não é trabalho físico, eu não sei o que é"

"Vai demorar até cem anos."

"Vou fazer em uma semana."

Rato encolheu os ombros novamente. 

"Como você quiser", ele suspirou. "Faça o que quiser. Mas só mexa nos livros e nas estantes. Não toque em qualquer outra coisa."

"Você não tem muito mais do que livros e estantes aqui."

"Como você disse, pode-se encontrar algum tesouro incrível. Para dizer a verdade, eu não sei o que está enterrado sob esses livros."

Os ratinhos estavam conversando uns com os outros em pequenos espaços entre os livros.  Shion pegou um pequeno livro verde-claro.

"Rato."

"Hm?"

"Há quanto tempo você vive aqui?"

Estas paredes de concreto, milhares de livros, esta sala no subsolo não pareciam bem adequados para ser uma habitação humana.

"Você não cresceu aqui, não é? Onde você estava..."

Shion fechou a boca.  Ele notou que os olhos cinzentos do Rato estavam com um brilho de aço.

"Desculpe."

Rato arrebatou o livro da mão de Shion e jogou-o de lado.

"Se você está pensando em ficar aqui", ele envolveu seus ombros no pano de superfibra, e deu um suspiro impaciente.  "Então, faça algo sobre esse seu hábito de interrogatório. Eu não sei quanto mais posso passar vexame de você bisbilhotando cada pequena parte da minha vida."

"Eu não estou bisbilhotando. Eu só queria saber."

"Se entrometer e questionar as pessoas sobre cada pedaço de informação que você quer é chamado de bisbilhotar. Lembre-se disso também."

Shion sentiu um golpe de irritação com a forma que as palavras do Rato parecia afastá-lo.  A indignação brotou dentro dele.  Não estava bisbilhotando.  Shion agarrou o braço de Rato como ele fez para sair da sala.

"Eu mal sei de nada ainda. É por isso que eu queria saber."

"E eu estou dizendo do que é chamado"

"Se fosse algo que eu pudesse ficar sem saber", Shion interrompeu: "Eu não gostaria de saber. Mas eu quero saber. Para mim, isso é algo que preciso saber. Quero saber, e por isso..." Ele mordeu a língua.  Fechou a mão sobre a boca e se agachou no chão com dor.  Lágrimas escorreram de seus olhos e a dor ardia em sua boca.  Rato desatou a rir.

"Nossa, você é um natural de primeira classe. Nunca me canso de olhar para você... Você está bem?"

"Um pouco. Morder a língua é muito doloroso."  Quando ele estava na N° 6 – que foi desde quando ele nasceu até idade de dezesseis – Shion nunca uma vez tropeçou em suas palavras o suficiente para morder a língua.  E foi a primeira vez, também, que ele tinha agarrado o braço de alguém, sem pensar, pelo desejo de dizer o que seu coração disparou para dizer, as suas palavras incapazes de juntar com seus pensamentos.

"Então?"

Rato ajoelhou-se, e olhou para o rosto do Shion.  A luz em seus olhos tinha diminuído para um brilho suave.

"O que você quer saber?"

"Você" Shion respondeu.  "Eu quero saber sobre você."

A boca do Rato caiu aberta.  Ele piscou várias vezes.

"Shion, você tem lido nenhum livro estranho ultimamente?"

"Estranho?"

"Como romances, do tipo que são clichê. Você sabe, quando um príncipe trata de salvar uma donzela em perigo, ou quando os amantes estão determinados a superar tribulações para se reunirem novamente."

"Eu não acho que já li nenhum desses."

"Então, onde diabos você achou isso? 'Eu quero saber sobre você'", Rato ecoou em descrença.

"Eu não tenho que aprender isso de qualquer lugar para dizer isso."

"Você está falando sério sobre isso?"

"É claro. Rato" Shion limpou os lábios e olhou diretamente em seus olhos cinzentos.  "Eu quero saber. Quero saber por que ainda há tantas coisas que eu não sei. Tudo o que sei sobre você é que me salvou. Não sei seu nome verdadeiro, ou como cresceu, ou por que está vivendo aqui sozinho, ou o que está pensando agora, ou o que está planejando fazer... Não faço ideia. Não sei uma única coisa sobre você"

Ele foi agarrado pelo pulso.  Os dedos do Rato eram sempre frios e rígidos.

"Então eu vou lhe dizer algo. Coloque a mão aqui."  Shion fez como lhe foi dito, e colocou a mão no peito do Rato.

"O que você sente?"

"Sentir... Bem, parece o peito de um homem, por exemplo. É duro, e plano".

"Eu sei, eu sei. Muito ruim para você, eu não tenho seios grandes. O que mais?"

"Bem..."

O que ele sentia na palma da mão através do tecido áspero da camisa do Rato?  Era a sua pulsação, seu calor, e a firmeza da sua carne.  Shion hesitou em colocar em palavras.  Não sabia por quê.  Ele retirou sua mão, e enrolou os dedos sobre a palma da mão.  Rato deu uma risadinha.

"Meu coração estava batendo, e era quente. Certo?"

"É claro. Você está vivo. É normal que o seu coração bata e que você fique quente."

"É. Estou vivo, e eu estou bem aqui na sua frente. Isso é tudo o que você precisa saber. O que mais você quer?"

Rato se levantou, e olhou para Shion.  Seu olhar, como os dedos, estava frio.

"O que você quer é informação", disse ele friamente.  "Minha data de nascimento, minha história de desenvolvimento, a minha altura, peso, índice de minha inteligência, DNA. Você só quer a informação que possa converter em números. Essa é a única maneira que você sempre tentou entender os outros seres humanos. É por isso que você não pode entender as pessoas vivas que estão de pé na sua frente."

Shion se levantou também.  Ele cerrou o punho mais rigidamente.

"Você é cheio de sarcasmo, e amor para fazer as pessoas se divertirem. Você não gosta de peixe, e é uma pessoa que dorme inquieto."

Houve um momento de silêncio.

"... Hum?"

Shion continuou.

"Você tem uma quantidade enorme de conhecimento, e uma ampla variedade disso também, mas nada disso é sistemático. Às vezes você está instável e mais sensível, mas outras vezes você é preguiçoso e descuidado com os detalhes. Você adora sopa chiando de quente, e fica realmente mal-humorado quando não tem a quantidade certa de sal. E ontem à noite, me chutou três vezes em seu sono"

"Ei Shion, espere um minuto"

"Desde que cheguei aqui, isso foi o que aprendi sobre você. Não são números. Eu nunca os substituí por números. Não é isso o que quero fazer."

O olhar do Rato deslizou para longe dele.

"Eu sou apenas um estranho para você", disse ele.  "Você não deve estar interessado em estranhos. Quatro anos atrás, você salvou minha vida, e eu lhe devo uma dívida grande por isso. É por isso que, desta vez, te ajudei. Então pode ficar aqui durante o tempo que quiser e fazer o que você quiser fazer. Mas nunca pense em querer saber mais sobre outro estranho".

"Por que não?"

"Porque ele fica em seu caminho."

"Fica em meu caminho? Saber coisas das pessoas, elas ficam no caminho?"

"Sim, para pessoas como você. Você é bom em amontoar conhecimento, mas se entrega facilmente para suas emoções. Você é rápido para confiar nas pessoas, e para tentar se anexar a elas. Eu lhe disse antes, não disse? Jogue fora tudo o que você não precisa."

"Sim, mas..."

"Mas o que você está fazendo agora é exatamente o oposto. Está começando a ter interesse em mim e quer saber mais. Você está tentando adicionar ainda mais a sua carga. Está irremediavelmente estúpido, apenas desesperado."

Shion não conseguia entender o que Rato estava dizendo.  Era mais confuso e difícil de entender do que qualquer livro erudito que tinha lido.

"Rato, eu não entendo o que você está falando."  Ele expressou seus sentimentos com sinceridade.  Rato encolheu os ombros ligeiramente.

"Quanto mais você souber, mais emocionalmente ligado você vai ficar. Então não seremos estranhos mais. E isso vai ser um problema para você."

"Para mim, por quê?"

"Quando nos tornarmos inimigos, você não será capaz de me matar."  Houve uma sugestão de riso em sua voz.  Shion cavou seus pés firmemente no tapete gasto. "Enquanto você está ocupado sendo apanhado em suas emoções, posso ir em frente e cavar uma faca em seu coração. Você sabe, uma faca é uma arma muito antiga, mas pode vir a calhar, às vezes."

"Por que você e eu temos que nos tornar inimigos? Isso é simplesmente absurdo. Isso que é estúpido"

"Sério? Eu acho que é bastante plausível."

"Rato!"  Shion disse acaloradamente.

Houve um barulho como se caísse uma pilha de livros.  Um rato pulou no ombro do Rato.

"Bem, se você realmente vai organizar estes livros, então mãos à obra. Uma semana não será o suficiente. Estou indo para o trabalho."  Rato virou agilmente nos calcanhares e saiu pela porta.  Shion sentiu toda a tensão sair de seu corpo.  Ele estava frio e úmido.  Conversar com Rato às vezes o fazia ficar tão forjado de nervos que começava a suar frio.  Shion lambeu os lábios secos.

"Eu nem sei que tipo de trabalho você faz", ele murmurou para si mesmo.  "Eu só queria saber. Quem é o estúpido aqui?"  Ele deixou sair suas palavras por um momento, então se estabeleceu para organizar as pilhas de livros.

"Shion".  A porta se abriu, e a voz do Rato o chamou.  Um par de luvas de trabalho foi atirado em sua direção.

"Você vai quebrar uma unha se usar as mãos."  A porta se fechou antes que Shion pudesse dizer obrigado, e o silêncio pairou sobre a sala de novo.  Este ato casual de bondade, ou aquelas frias, desapaixonadas palavras de alguns minutos atrás, em qual era o que ele deveria acreditar?  Shion não poderia compreendê-lo.  Foi por isso que ele queria estender a mão e pegar firme.  Shion colocou as luvas em suas mãos, e levantou alguns livros do chão.

É claro.  É bom usar luvas ao fazer este tipo de trabalho.  Isso é outra coisa que eu nem sabia.

Você só quer a informação que possa converter em números. Essa é a única maneira que você sempre tentou entender os outros seres humanos. As palavras que haviam sido jogadas em sua cara minutos antes permaneciam teimosamente em seus ouvidos.  Este método de analisar as pessoas através de dados era algo que Shion tinha aprendido em toda a sua vida na Nº 6, desde que ele havia sido considerado alto escalão no Exame de Crianças e lhe foi dado um ambiente de aprendizagem de primeira classe.

O corpo humano é composto de 274 tipos diferentes de células, em número de 60 bilhões no total.  Lembrou-se perfeitamente os nomes, formas e funções de cada um.  Ele sabia os locais e funções de cada órgão, e também tinha aprendido sobre os caminhos de transmissão de sinais entre a amígdala, o córtex periférico e o hipocampo.

Mas não era de nenhum uso para ele.  Não importa o quanto ele colocava o seu conhecimento em prática, era incapaz de compreender a pessoa com quem tinha vivido por quase um mês.

Rato honestamente pensava que eles iam se tornar inimigos algum dia?  Que eles iriam acabar matando um ao outro, isso era possível?  As palavras e ações do Rato sempre foram envoltas em mistério, e confudiam muito a Shion.

Ele não conseguia compreendê-lo.  Foi por isso que queria estender a mão e pegar firme.  Queria saber as partes do Rato que não poderiam ser substituídas por números ou símbolos.  Shion balançou a cabeça.  Os ratos correram apressados sobre seus pés. Eu tenho que parar.  Remoer isso não vai ajudar.  Agora, eu tenho que travar uma guerra com esses livros.

Ele logo ficou úmido de suor.  Suas costas doíam, e seus braços estavam pesados.  Mas o que interrompeu Shion de seu trabalho não era a dor em seu corpo ou a exaustão, mas as páginas dos livros que passou.  Ele casualmente virou para a história, e se pegou afundando no chão para ler o restante.  Totalmente absorvido, logo perdeu a noção da hora.  E cada vez, um pequeno rato pulava para cima da página em repreensão.

"Me dê mais um minuto. Vou guardá-lo assim que eu terminar de ler esta parte."

"Cheep cheep!"

"Tudo bem, tudo bem. Vou guardar, ok? Está satisfeito agora?"

E no terceiro dia, ele descobriu, sob uma velha cópia de uma revista científica, uma pequena caixa prata.  Seu kit de emergência.

Naquela noite de tempestade, há quatro anos, Rato tinha aparecido, ensopado, um intruso súbito na casa de Shion.  Seu ombro manchado de sangue, o menino à sua frente parecia que estava prestes a entrar em colapso.  Shion tinha estendido a mão sem pensar.  Seu instinto de proteção tinha mexido tão fortemente que tinha até esquecido de sentir medo do intruso.  Mesmo depois de descobrir que ele era um VC – considerado um criminoso violento e perigoso na Nº 6 – aquele sentimento não mudou.  Shion cuidou de Rato, e providenciou um tratamento para sua ferida e uma pausa momentânea.  Ele não hesitou.  Não podia ajudar, mas fez o que fez.  Como resultado, Shion perdeu a maior parte do que tinha, assim como grande parte de sua vida segura e privilegiada.

Naquela noite, Shion tinha tratado da ferida, dolorosamente evidente que uma bala causou isso, com as ferramentas e medicação desse kit de emergência.  Na manhã seguinte, havia quatro coisas que Shion deu falta – uma camisa vermelha quadriculada, uma toalha, o kit de emergência, e o próprio Rato.  Deles, dois estavam de volta em suas mãos.  Ou melhor, tirando o kit de emergência, talvez não fosse certo dizer que Rato estava "de volta" em suas mãos.  Shion foi o único que tinha caído em uma armadilha, e estava prestes a ser transportado para o Estabelecimento Correcional da Secretaria de Segurança – Rato foi quem o salvou, e o trouxe para fora da N° 6.

Não foi ele o que voltou.  Fui eu que me  refugiei aqui. Essa era a realidade dele.  Ele havia caído da cidade utópica – também chamada por alguns se Cidade Santa - para esta sala subterrânea, onde não brilha a luz do sol.  Provavelmente nunca será capaz de voltar à N° 6 legitimamente novamente.  Havia deixado sua mãe lá.  Karan ainda pensava nele, mesmo depois de ter sido escalado como um criminoso?  Shion sabia que era inútil pensar sobre isso, mas, no entanto, seu coração doía.

Ele não podia jogar tudo fora como Rato.  Ele não poderia desistir.  Ele não poderia viver assim.  Tinha de se agarrar a alguma coisa, senão iria ruir e cair.  Tinha que ter alguém em seu coração sempre, senão ele ficaria louco.

Shion abriu a tampa da caixa.  Parecia que o esterilizador automático ainda estava funcionando.  Um bisturi e um rolo de gaze brilhava vagamente sob a luz avermelhada da lâmpada estéril.  Um sentimento nostálgico brotou em seu peito como se ele fosse encontrar um velho amigo.

"Cheep-cheep! Chit-chit-chit!"

"O quê? Eu sei, eu sei. Estou chegando lá. Puxa, você é rigoroso."  Shion riu.  Como que em resposta, o rato levantou as patas dianteiras e chiou.

 

Uma semana passou, Shion tinha conseguido organizar quase todos os livros que estavam dominando a maior parte do chão.  Claro, era impossível encontrar espaço nas prateleiras para todos eles, e muitas pilhas de livros ainda permanecia no chão – mas tinha desaparecido uma quantidade considerável de espaço vital.

"Então o que você acha?"  Shion estufou o peito com orgulho.  Rato estava sentado preguiçosamente na cadeira.  Ele bocejou.

"O kit de emergência, cobertores de casal, uma caneca e um aquecedor velho. É tudo que você conseguiu encontrar?"

"Isso é muito", respondeu indignado Shion.

"Pena que você não pôde encontrar um visto de entrada para N° 6."

Shion se moveu na frente do Rato, e olhou diretamente nos olhos.  Se ele iria falar sério, não deveria desviar o olhar do outro.  Foi uma das coisas que tinha aprendido em seu mês de vida com Rato.  Shion se inclinou, e apertou cada mão em torno do apoio de braços da cadeira.

"O quê?"

Shion estava bloqueando Rato de frente.  Rato deslocou desconfortavelmente na cadeira.

"Rato, minha mãe ainda está na N° 6. Ela é minha única parente de sangue. Não importa o quanto você vai rir de mim, mas eu nunca vou ser capaz de esquecer ela. Mas... mas deixe-me dizer isso. Eu não tenho anexos para a vida na cidade mais. Mesmo se alguém me dissesse que eu pudesse voltar no tempo, eu não gostaria de voltar a quando tive o privilégio de viver na N° 6 como cidadão legítimo. Estou falando sério, eu não gostaria nem um pouco de voltar."

Os olhos cinza que Shion mirava não piscou nem uma vez.

"Você disse que a minha vida na Nº 6 era falsa. Agora eu experimentei isso por mim mesmo. E nunca, nunca quero voltar a uma vida falsa, que só é pacífica e privilegiada na aparência."

"Então você está preparado para viver a vida fora da Cidade Santa, é isso o que você está me dizendo?"

"Sim".

"Você sabe que tipo de lugar é este?"

Ele hesitou em responder.  Os Lábios do Rato torceu em um sorriso frio.

"Você não sabe nada", ele disse suavemente.  "Você não sabe como é a fome, o tremer de frio, o gemer de uma ferida que infeccionou porque foi deixada sem tratamento por muito tempo; você não sabe o sofrimento que se segue quando a ferida torna-se infestada de vermes, e você começa a apodrecer em vida; você não sabe como se sente ao ver alguém morrer na sua frente, enquanto não há nada que você pode fazer para ajudá-lo. Você não sabe uma única coisa. Vive apenas dizendo palavras bonitas... Já experimentou por si mesmo, você disse? Você só descascou a superfície daquela cidade e cheirou-a, e já está agindo como se você soubesse tudo sobre ela. Pode ser uma cidade de mentira, mas na N° 6 você tinha uma cama quente, muita comida e água limpa. Você tinha instalações médicas totalmente equipadas, instalações recreativas, instituições de ensino. Tudo o que os moradores aqui nunca seriam capazes de ter, não importa o quanto eles queiram. E você diz que não tem anexos a isso? É arrogante. Tão arrogante que me dá arrepios. Ou isso, ou você é um mentiroso."

Shion respirou. Ele apertou ainda mais os braços da cadeira.

"Posso ser arrogante, mas não estou mentindo. Independentemente de que tipo de lugar é, eu ainda quero continuar vivendo aqui. Não é porque fui expulso da N° 6 como um criminoso. Não importa quão horrível esse ambiente acaba por ser, eu quero ficar aqui".

"Qual é a sua razão?"  Rato revidou.  "Se você não está mentindo, e se você não está tentando me impressionar com um modelo de resposta, o que leva você a tomar essa decisão?"

"Eu estou atraído por você."

"Hum?"

"Você sabe coisas que eu não sei. Você me ensinou coisas que ninguém nunca me ensinou antes. Eu não posso dizê-lo bem, mas" ele hesitou.  "Eu estou atraído por você. Muito. É por isso que eu quero ficar aqui. Eu quero ver o que você vê, comer o que você come, e respirar o mesmo ar que você. Eu quero ter nessas mãos o que eu nunca fui capaz de ter na N° 6."

Rato lentamente piscou duas vezes.  Então, ele colocou uma mão em sua testa e balançou a cabeça lentamente em exasperação.

"Shion, eu notei isso há algum tempo, mas"

"Sim?"

"Sua capacidade de linguagem é pior do que a de um chimpanzé".

"Eu ouvi antes que o genoma de um ser humano e do chimpanzé são apenas diferentes de 1,23%", disse o Shion, imperturbável.  "Eu não acho que você deveria zombar dos chimpanzés."

"Eu estou zombando de você. idiota. Não tem ideia das expressões corretas a se usar?"

"Havia algo estranho no que eu disse?"

"Não use palavras como 'atraído' tão facilmente. É uma palavra muito importante. Você só deve usá-la para uma pessoa especial, insubstituível em sua vida."

"Então como é que vou dizer? Digo eu te amo?"

Rato soltou um suspiro longo e exagerado.  "Não importa", ele murmurou.  "Me confundo quando eu falo com você. Aqui", ele empurrou um livro grosso nas mãos de Shion, e se levantou.  "Hamlet. Leia-o."

"Eu já li."

"Então leia novamente. Dê a sua capacidade linguística aleijada algum treinamento bom. Aprenda algumas palavras."

"Eu estava tão fora de propósito assim?"

As palavras de Rato se aceleraram.

"Você só está fascinado por coisas novas e incomuns. Você é como um estudioso que descobriu um novo planeta, ou um novo tipo de bactéria. Você tem apenas uma coceira de curiosidade, porque já conheceu alguém que é diferente de todas as pessoas que costumavam cercá-lo. É isso. Você não está atraído por mim, e não está apaixonado por mim. Só está animado com os animais exóticos que descobriu. Será que não consegue dizer a diferença?"

Essas foram palavras duras.  Elas se tornaram espinhos afiados que esfaquearam os tímpanos de Shion.

"Eu não confio em você", disse Rato.

Shion levantou o rosto, e o seu olhar colidiu com o de Rato.  Ele estava mordendo o lábio, sem pensar.

"Eu não confio em nada que você diz. Você é alguém que está vivendo em abundância artificial desde que nasceu. E é arrogante o suficiente para ser capaz de dizer que pode jogar fora essa fortuna facilmente. Shion", disse ele de repente.  "Quando fazia a limpeza no parque, você tinha que fazer esse ritual todas as manhãs, não é?"

O ritual era sempre a primeira tarefa do dia no trabalho de Shion.  Ele tinha que colocar uma palma na imagem da Câmara Municipal - ou Gota da Lua, informalmente - que era exibido no monitor do sistema de manutenção e comprometer a sua fidelidade.

"Eu constava e sempre colocava minha devoção inabalável para a cidade N° 6."

"Nossa gratidão pela sua lealdade. Se envolva em seu dia de trabalho com sinceridade e orgulho como um bom cidadão da cidade."

Era isso.  Todas as manhãs, ele repetia a mesma tarefa.  Tinha sido um desconforto dolorido para ele.  Seu orgulho juvenil foi picado por ter de repetir estas palavras banais e grandiosas, e por este ritual em si, que parecia tolice.

Rato deu uma risada curta.

"Você odiava, não?"

"Sim".

"Sentia sufocado, não é, sendo forçado a declarar sua lealdade."

"É ... agora que você mencionou."

"Mas você se submeteu a isso", disse Rato.  "Em vez de revidar, você recitou essa promessa, todas as manhãs, e fingiu que não te incomodava. Deixe-me lhe dizer algo, Shion: palavras não são coisas que você pode atirar casualmente. Não pode se deixar ser forçado a dizer alguma coisa, e apenas se conformar com isso. Mas você não sabe disso. É por isso que eu não vou confiar em você."

A mão do Rato de repente se estendeu.  A palma de sua mão tocou a face do Shion.

"Isso magoou?"  ele perguntou suavemente.

"Um pouco".

"Não tenho qualquer rancor contra você. E também não te odeio."

"Eu sei..."  Shion respondeu calmamente.  "Isso eu posso dizer."

"Shion".

"Hm?"

"Se sente como se tivesse ido lá fora?"

Seus dedos acariciaram o cabelo de Shion.

"Você está totalmente recuperado, agora, não é? Sente como se visse por si mesmo o lugar que decidiu continuar vivendo?"

A mão do Rato lentamente se afastou.  Várias vertentes de cabelo branco se agarrou a seus longos dedos.  O cabelo do Shion ainda tinha um brilho, apesar de sua cor ter sido drenada, e certos olhos achavam que poderia ser bonito.  Mas ele sentiu a sua beleza ser cruel.  Em uma única noite, a cor tinha desvanecido de seu cabelo, e ele tinha sido marcado com uma faixa vermelha que deslizava como uma serpente sobre seu corpo inteiro.  Ele foi visto por crianças, que gritaram ao ver ele.  Não conseguia esquecer os olhares naqueles olhos.  Estavam cheios de consternação e horror como os olhos de quem viu um monstro deformado.  Mas ele tinha que sair.  Queria ver o mundo que ia viver com seus próprios olhos, ouvir os sons com seus próprios ouvidos, sentir o cheiro com o seu nariz, e senti-lo em sua própria pele.  Então, talvez, ele falaria com Rato sobre isso novamente.

Não importa que tipo de lugar é esse, eu quero continuar vivendo aqui.  Ao invés de ser cercado por falsidades, e sendo forçado a engolir palavras banais, eu quero viver aqui... mesmo se isso significa que tenho de lutar...

"Nós podemos pintar o cabelo, se for fazer você se sentir melhor de qualquer modo", disse Rato.  "Preto, marrom, verde... qualquer cor que você quiser. O que quer fazer?"

"Não, está tudo bem."

"Você vai deixar assim?"

"Sim, eu vou manter meu cabelo assim. Cabelo branco não é tão ruim. Eu acho que é melhor do que ficar totalmente careca."

Rato abaixou a face.  Seus ombros tremiam.

"Você é muito engraçado, sabe disso?"  ele disse, sua voz tremendo por prender o riso.  "Sério. Quero dizer, realmente."

"Sou?"  disse Shion em dúvida.  "Ninguém nunca me disse que sou engraçado..."

"Você é um comediante natural. Deveria jogar fora os livros de teoria e estudar comédia no lugar."

"Vou pensar sobre isso."

"Você deveria. Certo... amanhã, então, eu vou lhe mostrar os arredores".

"Certo", Shion concordou.

"E há um lugar que você definitivamente precisa ir."

"Edifício Latch", Shion respondeu por ele.

Perto de LK - 3000, Latch Bl. 3A Não tenho certeza -K.

Era um memorando de Karan, e era um enigma – Shion não sabia onde ficava, ou o que estava lá.

"Você vai descobrir onde o Edifício Latch fica?"

"Não", respondeu Rato.  "Nós não temos qualquer numerações imaginárias para os nossos edifícios aqui. Mas a um tempo atrás este lugar costumava ser uma cidade decente, e eu fui capaz de conseguir um mapa a partir de então. E há uma região marcada com LK-3000."

"Você olhou tudo isso até..."  Shion murmurou com admiração.

"Só para matar o tempo."

"Eu não acho que você tem tempo para matar. Parece ser sempre tão ocupado"

"Ah, e escreva uma carta," Rato interrompeu indiferente.

"Huh?"

"Para a sua mamãe. Mas mantenha dentro de 15 palavras. Apenas uma nota simples. Esse ratinho aqui diz que sente falta do pão caseiro de sua mãe."

"Você vai entregar a carta para mim?"

"É mais como um memorando", disse ele bruscamente.  "Sob 15 palavras. Não posso garantir que vamos chegar lá com segurança."

"Rato."

"O quê?"

"Obrigado."

Rato se encolheu longe de Shion e o fixou com um olhar horrorizado.

"Por favor, poderia parar de me olhar assim? Isso me dá calafrios. O que acontecer amanhã irá acontecer amanhã. Eu vou tomar um banho. Ah, e antes que você escreva uma carta para sua mamãe, leia uma história para esse pobre garotinho. Ele está esperando todo esse tempo."

Rato desapareceu no banheiro.  Shion sentou em uma cadeira, e abriu o livro que tinha acabado de ler mais cedo.  Havia um cheiro fraco de papel.  Ele se concentrou instantaneamente, e logo perdeu-se em suas páginas.

Se algum dia em teu peito me abrigaste,
Priva-te por um tempo da ventura
e respira cansado mais um pouco neste mundo tão duro,
para a todos contares minha história.
[1]

Hamlet deu seu último suspiro nos braços de seu amigo.  Shion lentamente fechou o livro.  Havia o som da chuva.  Ele se perguntou por que sempre parecia ecoar através das paredes para esta sala subterrânea.  Atravessava e repercutia, como o som suave da música.

E neste mundo cruel, desenhas a tua respiração na dor – talvez isso é o que viver neste mundo significava – sofrer com dores.  Rato sabia disso.  Isso havia se impregnado em seu corpo.  Um rato chiou em seu pé.

"Oh, desculpe. Qual deles você quer que eu leia?"

O rato subiu em seu joelho, e esfregou as patas dianteiras.

"Quer que eu leia este livro para você?"

Cheep.

"Você realmente gosta tragédias, não? Por que não escolhe algo mais divertido?"

Ele cruzou as pernas, com o rato ainda empoleirado em seu joelho.

"Leia-lhe a tragédia", A voz do Rato falou atrás dele.  Ele não tinha sequer notado Rato saindo do banheiro.  Não tinha ouvido um som ou sentido qualquer presença.

"Você tem uma boa voz. Este rapaz gosta quando você ler. E ele gosta de ouvir você lendo tragédias."

"Sério?"

O rato piscou seus olhos cor de uva para ele.  Shion adivinhou que era sua maneira de dizer sim.

"Ok, ok. Em seguida a partir do topo do Top Cinco..."

"Shh" Rato pressionou a toalha úmida sobre a boca do Shion.  "Ouço algo."

"Huh?"

Antes que Shion pudesse perguntar o que era, o som alcançou seus ouvidos.  O som de passos subindo os degraus. Alguém estava batendo no centro da porta pesada, e seu som era frenético, embora não totalmente forte.

Uma criança.

A criança estava batendo desesperadamente na porta.  Shion se levantou, e ia para a entrada.

"Não tão rápido".  Rato o deteve.  Sob a sua franja molhada, seus olhos cinzentos viu a porta cautelosamente.

"Não abra a porta ainda."

"Por que não?"

"É perigoso. Não abra a porta sem qualquer defesa."

"É uma criança batendo na porta. E é urgente. Algo deve ter acontecido."

"Como você pode ter tanta certeza? Um soldado armado pode bater na metade inferior da porta, não há problema."

O olhar de Shion viajou do rosto do Rato para a porta.

Ajude-me.

Ele pensou ter ouvido uma voz fraca chorar em apelo.  Ele engoliu em seco.  Destrancou a porta, e agarrou a manivela.

"Shion!"

Ele abriu a porta.  Uma corrente de ar fria soprou no quarto.  Estava ficando escuro lá fora, e um vento frio soprava.

A menina estava em pé na escuridão crescente.  Seus olhos se encheram de lágrimas quando ela olhou para Shion.  Ele a tinha visto antes.  Ela morava no barraco no fundo da encosta.  Ela era a garota que não fora capaz de esquecer – a menina que tinha gritado para os cabelos brancos de Shion e a cicatriz vermelha que serpenteava até o pescoço.  Pela primeira vez, neste olhar, ele havia sido contemplado como uma deformidade.  Mas agora, seus olhos grandes estavam cheios de lágrimas, e continha nenhum indício de terror.  Em vez disso, eles brilhavam com urgência frenética.

"Me ajuda, por favor, ele está morrendo."

Shion rapidamente tomou a menina pela mão, e começou a subir pelas escadas.  Ele gritou por cima do ombro.

"Rato, traga o kit de emergência e alguns cobertores!"

Então ele irrompeu para fora, para as madeiras de galhos nus e folhas caídas.

 

Continua em: Capítulo 2 – O Reino dos Deuses

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Notas do texto

[1] Shakespeare, William. Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Ed. Philip Edwards.

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2 comentários:

Anally-Chan disse...

Demorou hein?
Mas claro que mesmo com a demora esta perfeito, como sempre!
Simplesmente hilário o Shion com o Rato! ( Rato, sei que no fundo vc confia e preza e muito a companhia do Shion!).
Ah e ando procurando tb outros sites que estejam traduzindo No.6 para o inglês, no caso deste site que te passei parar de repente como o outro ok?
Bjs e continue sempre com um bom trabalho!

Luna Solista disse...

óun que lindo!! \^__~/ Eu não consigo explicar essa sensação maravilhosa de ver esses dois juntos! é uma amizade é um amor...é tão lindo rsrsrs. E a eloquência empregado pelo Nezumi em tentar negar um sentimento que se estampa obvio em sua cara é tão divertida. Parabéns pela tradução! Esta perfeita!

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